Texto de: Guilherme Freitas

Antes do Islã os árabes da Península não contavam seus anos em calendários organizados, marcando o tempo através de coisas que fossem dignas de nota. E com toda certeza, um exército de etíopes montados em elefantes vindo arrasar seu local mais sagrado seria uma delas. No mesmo ano em que nasceu o Profeta Muhammad (570), Meca foi invadida por Abraha al-Ashram, general independente do Império de Axum na Abissínia, que recentemente havia fundado para si um reino em Himiar do Iêmen, num episódio que ficou conhecido posteriormente como o “Ano do Elefante”.

Tendo cultivado uma astuta e bem calculada diplomacia, conhecida como hilm, os coraixitas de Meca se tornaram a mais poderosa tribo da Arábia no século VI. Estando convenientemente localizada num ótimo ponto comercial entre as rotas do sul da Arábia e do Levante ao norte, Meca ainda evitou atritos com os vizinhos, conseguindo inclusive a proteção dos beduínos através de suas alianças. Além do mais, a existência da Caaba em Meca trazia peregrinos de toda a Arábia no período do hajj, criando um clima propício ao comércio.

Aparentemente os coraixitas tentaram manter uma posição neutra a respeito do conflito entre Pérsia e Bizâncio ao norte. Entretanto, as relações com o Império Bizantino regrediram muito por volta de 560, quando a Arábia do Sul ainda era província da Abissínia, que por sua vez era Estado cliente de Bizâncio.

Conforme alguns historiadores, Abraha al-Ashram, o governador cristão da Arábia do Sul que recentemente havia cortado sua submissão aos axumitas, viu o sucesso comercial de Meca como uma oportunidade para fortificar mais ainda suas pretensões de criar um novo império na Arábia, tentando assim invadir a cidade no ano de 570.

Segundo o historiador David L. Lewis, para poder estabelecer o Cristianismo em solo Iemenita, os etíopes construíram uma grande igreja em Sanaã, atual capital do Iêmen. A igreja foi construída com o objetivo de se tornar um grande centro de peregrinação e uma “fonte de receitas” para rivalizar com a própria Meca. Ao finalizar o templo, Abraha expressou seu desejo de prosseguir com seu projeto imperial destruindo a Caaba pagã, pois assim, acreditava-se, que sem seu templo, os árabes tornariam-se facilmente cristãos, e leais súditos do Reino de Himiar.

É narrado a história de que um coraixita furioso com a construção da igreja, e sabendo das pretenções do general etíope de destruir a Caaba, foi até Sanaã, adentrou no local a noite e a profanou, muito provavelmente defecando dentro do templo cristão. Irado, Abraha teria enviado 40 mil homens para Meca com o objetivo de destruir a Caaba.

            Várias tribos árabes ao longo do caminho tentaram parar a incursão abissínia em direção à Meca, mas todas as tentativas falharam. Em pânico, os mecanos evacuaram a cidade quando souberam que os cristãos estavam próximos, e dentre os refugiados, estava Aminah, mãe de Muhammad, com este ainda em seu primeiro ano de vida. Eis que Abraha finalmente chega aos portões de Meca, se aproximando da cidade com seu grande exército juntamente com elefantes de guerra, promovendo alguns saques, como roubo de rebanhos.

Dentre esses elefantes, o que estava à liderança se chamava Mahmud. Segundo consta em algumas tradições, assim que o elefante pisou no solo sagrado em Meca logo caiu de joelhos, recusando-se a se mexer. Após isso, já entrando no campo teológico islâmico, Deus teria enviado uma revoada de pássaros que jogaram pedras nos abissínios, afugentando-os em pavor diante do milagre. Tal ocorrido ficou marcado para sempre na memória dos coraixitas de Meca, sendo mais tarde narrado pelo Alcorão na Surah 105, Al Fil (O Elefante):

”Não reparaste no que o teu Senhor fez, com os possuidores dos elefantes?Acaso, não desbaratou Ele as suas conspirações,Enviando contra eles um bando de criaturas aladas,Que lhes arrojaram pedras de argila endurecidaE os deixou como plantações devoradas?”

            De acordo com o historiador árabe do século VIII Ibn Ishaq, um dos primeiros biógrafos do Profeta, após o milagre ocorrido na invasão os beduínos passaram a respeitar cada vez mais os coraixitas, afirmando que eles eram “o povo de Deus” e que “Deus lutou por eles e frustrou o ataque inimigo”. Abraha faleceu pouco depois, em circunstancias desconhecidas.

Na analise do famoso historiador britânico Edward Gibbon, a invasão de Meca por Abraha foi um daqueles momentos que poderiam ter alterado a história para sempre: “Se uma potência cristã tivesse sido mantida na Arábia, Maomé teria sido esmagado em seu berço, e a Abissínia teria impedido uma revolução que mudou o status civil e religioso do mundo (ou seja, o Islã).”

Conclusão

Lembrado como uma data importante e decisiva tanto para os pagãos coraixitas de Meca quanto para os muçulmanos posteriormente, o Ano do Elefante demonstrou ser uma dos acontecimentos mais importantes da história islâmica, mesmo ocorrendo décadas antes do início da Mensagem do Profeta.

Apesar de alguns historiadores ocidentais divergirem no que de fato ocorreu para que a invasão abissínia fosse infrutífera, a tradição islâmica através dos seus mais exímios escritores nos apresenta o evento milagroso. O que para muitos no mundo moderno poderia soar apenas como uma “coincidência”, para alguns opositores do Islã a falha de Abraha foi uma “oportunidade perdida” para esmagar Muhammad ainda quando bebê, evitando assim o nascimento da religião islâmica. Mesmo com o perigo de ter sido morto ainda no berço, conforme os anseios de Gibbon, a vida de Muhammad e a cidade de Meca foram preservados para que mais tarde o mundo pudesse conhecer a mensagem do Islã e Seu Profeta, nascido no ano de uma agressão cristã ao coração da Arábia.

Bibliografia:

O Alcorão Sagrado, Surah 105 (Al Fil; O Elefante);

ARMSTRONG, Karen. Maomé. Uma Biografia do Profeta. 1991;

LEWIS, David Levering. God’s Crucible. Islam and the Making of Europe. 570-1215.W.W Norton. 2008. p.26.

IBN ISHAQ, Muhammad. Sirat Rasul Allah 38, em A. Guillaume. The life of Muhammad.