No verão de 634, no lado de fora de Damasco, o general muçulmano Khalid ibn al-Walid confrontou reforços bizantinos após a captura de seu melhor guerreiro, Dirar ibn al-Azwar. De repente, um cavaleiro vestido com roupas pretas, cingido com um cós verde e armado com uma lança, apareceu sobre um grande cavalo. O cavaleiro mergulhou no lado bizantino, rompendo suas fileiras, desapareceu e saiu brandindo uma lança ensanguentada. Os guerreiros muçulmanos, encorajados pelo misterioso cavaleiro, atacaram o inimigo e derrotaram-no; o tempo todo, o cavaleiro atravessava as linhas bizantinas como uma chama. 

Ao fim desta cena, do livro Futuh al-Sham (As Conquistas da Síria), somos introduzidos à temível guerreira Khawla bint al-Azwar. Ela acompanhou o exército muçulmano e decidiu se juntar à batalha quando escutou que seu irmão, Dirar, foi capturado. Seu amor fraternal e seu desejo de libertá-lo a estimulou a entrar em ação. Para fazê-lo, nesta história, Khawla precisava ocultar sua feminilidade. Testemunhando seu valor, o general muçulmano permitiu que ela liderasse os exércitos na perseguição dos captores de seu irmão. 

Apesar de não existirem traços de Khawla bint al-Azwar nos tratados históricos e legais lidando com as conquistas muçulmanas anteriores ao século XII, seu personagem é construído sobre exemplos similares não-fictícios de mulheres presentes nos campos de batalha da época. Suas histórias ocorrem nas primeiras biografias e crônicas muçulmanas existentes do período da conquista. Essas mulheres pertenciam à primeira geração de muçulmanos e acompanharam Muhammad e os primeiros exércitos em sua conquista da Arábia e demais territórios. Ao contrário de Khawla, essas mulheres não precisaram esconder seu gênero se vestindo como homens, mas estavam presentes enquanto mulheres. No entanto, como Khawla, essas mulheres só foram chamadas para se juntar à batalha em circunstâncias excepcionais.  

Umm Umara é um exemplo de uma mulher real cujas façanhas militares se assemelham às de Khawla, sua irmã fictícia no Islã. Umm Umara Nusayba bint Kaab foi uma das primeiras convertidas ao Islã e uma das mulheres que fez o juramento de fidelidade a Muhammad. 

Seus biógrafos destacaram sua participação em várias capacidades nas principais batalhas enquanto Muhammad estava vivo, incluindo Uhud (625), Khaybar (628) e Hunayn (630) e durante o curto califado de Abu Bakr al-Siddiq (632-634) na Batalha de Yamama (632). Ela participou como uma combatente não-intencional com a motivação de vingar a morte de seu filho na Batalha de Yamama. 

Durante a Batalha de Uhud, os mequenses politeístas sobrecarregaram as forças muçulmanas, deixando Muhammad exposto. Umm Umara entrou em ação. Ela pegou um escudo e uma espada para defender o Profeta e enfrentou em combate individual aquele que intencionava matar Muhammad, até ser ferida. Apenas suas feridas a impediram de voltar à luta enquanto as forças muçulmanas se reuniam em torno deles. Mais importante, ela ostentou suas feridas como um distintivo de sua participação em batalha, marcando sua devoção ao Islã e ao Profeta em seu corpo. Após a batalha, o Profeta, pessoalmente, foi ter com Umm Umara, que estava machucada, e elogiou suas ações, sinalizando sua aprovação. 

De fato, muçulmanas lutando para defender seus irmãos são retratadas como representantes de uma fé verdadeira e inabalável, ao invés de ser usada como evidência de uma fraqueza militar. Quando o biógrafo de Umm Umara perguntou se as mulheres do inimigo também lutaram, ela zombou e afirmou que tudo que elas fizeram foi ficar de pé, nas margens, tocando seus tambores, provocando os homens. 

A última participação militar de Umm Umara foi na Batalha de Yamama contra o inimigo de Muhammad, Musaylimah, um homem que dizia ser profeta na Arábia Oriental. Musaylimah desmembrou e matou seu filho, a quem Muhammad tinha enviado numa missão diplomática. Para se vingar da morte de seu filho, ela entrou na expedição e procurou Musaylimah no campo de batalha. Ela perdeu sua mão na tentativa fracassada de o matar. Mesmo assim, seu filho sobrevivente, Abdullah, matou o assassino de seu irmão e vingou sua mãe. 

Enquanto o caso de Umm Umara é o mais proeminente, ela não foi a única das primeiras muçulmanas conhecidas por participar de batalhas. Na Batalha de Hunayn (630), entre o recentemente vitorioso Muhammad e a consideravelmente grande confederação de Hawazin, uma certa Umm Sulaym, grávida, entrou na batalha e presumivelmente lutou junto ao seu marido. Ela montava o camelo do marido enquanto bradava uma adaga para atingir desertores enquanto eles tentavam abandonar o campo de batalha. Ela, inclusive, chegou a encorajar Muhammad a fazer o mesmo. 

Mulheres empunhando armas e matando o inimigo como uma necessidade também aparecem nos relatos das batalhas das conquistas muçulmanas na Síria e no Iraque. Durante a Batalha de Yarmuk (636), que provou ser um ponto de inflexão entre as forças bizantinas e muçulmanas na Síria, as mulheres muçulmanas precisaram lutar. Soldados bizantinos entraram no acampamento muçulmano, forçando as mulheres a lutar; algumas mulheres pegaram espadas para afastar o inimigo, enquanto outras recorreram aos postes das tendas. Uma mulher, Asmaa bint Yazid, matou nove soldados bizantinos com o poste de sua tenda. A maioria dos cronistas elogiaram a intervenção das mulheres, com apenas um autor legitimando-o, afirmando que foi uma estratégia de Khalid ibn al-Walid concebida para incentivar seus soldados. Por outro lado, na crítica batalha travada em território sassânida, na Batalha de al-Qadisiyya (637), as mulheres parecem ter iniciado a ação. Uma das mulheres presentes relatou: “Amarramos nossas roupas e nos armamos com varas. Então, viemos aos homens mortalmente feridos [caídos no campo de batalha]. Para aqueles que eram muçulmanos, demos-lhes água e os carregamos; quanto aos que eram politeístas, acabamos com eles”. 

GHAZW 

Mas como essas mulheres foram parar no campo de batalha? Foi, parcialmente, porque o negócio da guerra para os exércitos muçulmanos durante as primeiras conquistas ainda era algo de natureza comunal, quase que familiar. As mulheres acompanhavam seus pais, irmãos e maridos para realizar alguns dos serviços essenciais e necessários para o funcionamento do exército. Muhammad estabeleceu o exemplo. Sábios muçulmanos nos dizem que ele tirava a sorte entre as suas esposas sempre que ia para a batalha e a sorteada o acompanhava. Portanto, no grande compilado de hádices do século X, de al-Bukhari, há um relato de que Aisha, a esposa mais proeminente de Muhammad, estava no campo de batalha em Uhud. Ela e sua companheira, Umm Sulaym, são vistas correndo no campo, entre os combatentes, com odres d'água e com suas vestes arregaçadas, expondo seus pés. É esta vinheta que exemplifica o envolvimento mais típico das mulheres na guerra. 

Estas companheiras de Muhammad garantiam o bom funcionamento dos exércitos. Elas estavam no plano de fundo, certificando-se de que os homens e suas montarias estavam alimentados. Umm Atiyya al-Ansariyya, que também participou de incursões com Muhammad, relata que ela ficava com as montarias e preparava comida para os combatentes. Como visto anteriormente, as mulheres também eram responsáveis por manter os soldados bem hidratados no campo de batalha. Esperava-se que, e de fato serviram como, as mulheres servissem seus correligionários como enfermeiras. Uma mulher, chamada Rufaida, montou sua tenda como uma espécie hospital de campanha no pátio da Mesquita de Muhammad durante a Batalha da Trincheira (627). Ele enviava os feridos para ela. Mesmo a guerreira Umm Umara estava no campo de batalha pronta para cuidar dos feridos com bandagens presas na cintura. Além de cuidar dos vivos e dos feridos, há evidências de que as mulheres participavam da retirada dos mortos do campo de batalha e, em alguns casos, até do enterro deles. Durante a vida de Muhammad, é relatado que algumas mulheres transportaram seus parentes mortos para serem enterrados em Medina. Após a Batalha de al-Qadisiyya, no Iraque, mulheres e crianças cavaram os túmulos para aqueles que morreram no campo de batalha e enviaram os feridos para as enfermeiras. 

Além de atender às necessidades físicas do exército, também era esperado que as mulheres realizassem outros serviços. A presença das mulheres como espectadoras que despertam os participantes é um exemplo. A infame Hind bint Utba, a mãe do primeiro califa omíada, Muawiya ibn Abi Sufyan (r. 661-680), era conhecida por seu papel em liderar as mulheres com cantos e poesia para incentivar os homens e, em alguns casos, para envergonhá-los até entrarem em ação. Ela desempenhou este papel tanto do lado muçulmano quanto do lado não-muçulmano. É relatado que estas mulheres ficavam atrás dos homens, recitando poesias em que prometiam sexo aos corajosos combatentes e provocava os covardes ameaçando não fazer sexo com eles. A disponibilidade sexual também parece ter sido uma característica da presença das mulheres nos campos. Fontes muçulmanas relatam casos de noivados e casamentos antes ou depois da batalha. Durante as campanhas da Síria, Umm Hakim recebeu propostas de casamento dos dois principais comandantes, Yazid ibn Abi Sufyan e Khalid ibn Said. Seu casamento com Khalid ibn Said foi realizado na véspera da Batalha de Marj al-Suffar (634), a batalha na qual ele morreria e deixaria sua noiva vestida em seus trajes nupciais e perfumada. Em um caso, na Batalha de al-Qadisiyya, 700 mulheres desarmadas da tribo de Bajila estavam presentes na batalha. A maioria dessas mulheres eram casadas com homens que participavam nas campanhas. 

Apesar de o tratamento das mulheres nas seções sobre a guerra dos manuais legais focarem em seu destino como cativas de guerra, juristas muçulmanos medievais reconheciam que as mulheres muçulmanas estavam presentes no campo de batalha e participavam no esforço de guerra numa função de serviço. Como resultado disso, estes sábios debateram algumas questões sobre o serviço das mulheres. Uma das principais questões era se a participação da mulher era um ato de jihad ou não. Por exemplo, quatro dos autores dos seis livros canônicos da tradição de hádices sunitas falaram sobre a presença feminina em seções relacionados ao tópico dentro dos capítulos sobre a jihad. No entanto, estas seções eram notavelmente chamadas de “mulheres em expedições militares (ghazw)”, ao invés de, por exemplo, “jihad das mulheres”, como você pode ver em discussões contemporâneas do tema. Este título era representativo do consenso acadêmico legal de que o serviço das mulheres não era jihad. Elas não eram sujeitas ao dever de lutar pela fé. Este consenso emergiu no final do século VIII e início do século IX e, ao fim do século IX, a masculinidade se tornou uma das condições primárias para a realização da jihad. Na prática, para estes sábios, isso significava que quando um líder muçulmano chamava pela jihad, as mulheres, bem como escravos e jovens, não eram legalmente obrigadas a participar; sua não-participação não era um pecado. 

Um dos primeiros juristas a falar sobre isso em detalhes foi o renomado jurista muçulmano al-Shafi. Ele argumentou que as mulheres não tinham obrigações em relação à jihad baseado em sua leitura do versículo do Alcorão que diz, “Ó Profeta, exorta os fiéis a lutar”. Ele entendia que o uso do plural masculino em “os fiéis” (al-mu'minun) neste versículo e em outros que lidavam com a guerra é indicativa da exclusão das mulheres deste dever. Outros sábios optaram por aproveitar um ditado profético, um hádice no qual o Profeta teria informado à sua esposa, Aisha, de que “a jihad das mulheres é a peregrinação para Meca”. As mulheres eram, portanto, excluídas do dever da jihad que incumbia à sua contraparte masculina, apesar de terem sido incluídas no campo de batalha. 

A literatura dos hádices preserva os ecos de protesto contra esta exclusão. Uma mulher anônima foi até uma reunião de Muhammad para protestar que ela não recebeu nenhuma recompensa mundana ou espiritual. Ela disse: “Eu sou a emissária das mulheres para você. Por Deus, todas as mulheres estão de acordo com o que falarei para ti. Por Deus, o Senhor dos homens e das mulheres, por Adão, o pai dos homens e das mulheres, e por você, o Mensageiro de Deus para os homens e para as mulheres, Deus prescreveu a jihad para os homens. Se eles matam, são recompensados, e se morrem, sua recompensa está com Deus. Se são martirizados, estão vivos com Deus, recebendo provisões, enquanto tomamos conta deles e recolhemos grama para seus animais, mas não recebemos nada de sua recompensa”. É relatado que Muhammad respondeu que as mulheres ganham recompensas semelhantes por serem boas esposas. 

UMA PARTE JUSTA 

Como resultado da exclusão das mulheres do dever da jihad, juristas questionaram se seu serviço lhes tornava elegíveis à remuneração financeira. A questão da remuneração para outros participantes na guerra – jovens, escravizados, não-muçulmanos e trabalhadores contratados – preocupou os juristas. As mulheres que participaram, servindo ao exército, deveriam receber alguma coisa? No compêndio jurídico, um combatente recebia uma parte (sahm) em espólios, com a cavalaria recebendo, tipicamente, o dobro do soldado de infantaria após a remoção de um quinto reservado ao líder. Conforme a discussão acadêmica avançava, os sábios ligaram a eligibilidade a uma parte aos espólios ao combate, assim, excluindo as mulheres e outros não-combatentes. No entanto, a conexão entre o combate e a remuneração também levantou a questão da eligibilidade dos combatentes que ficavam doentes, morriam antes da batalha e outros casos. 

Apesar disso, as mulheres não eram totalmente privadas da recompensa por seu trabalho. A maioria dos sábios do século IX concederam que enquanto as mulheres não deveriam receber uma parte igual à dos combatentes, elas deveriam receber um presente que fosse retirado dos espólios. Fosse em dinheiro ou de outra forma, este presente deveria ter menos valor que toda a parte destinada aos combatentes. O bem ou a quantia estavam a critério do líder da campanha. Um dos precedentes proféticos primários que os juristas muçulmanos usavam para justificar o desembolso de um presente da pilhagem foi o caso da Batalha de Khaybar (628). Ao fim desta batalha, Muhammad recompensou uma parte às vinte mulheres que o acompanharam, embora uma parte menor. Em um relato, os homens receberam dez dinares e meio, enquanto as mulheres teriam recebido dois. Além do dinheiro, Muhammad deu contas, roupas e outros presentes em espécie para mulheres como Umm Umara. 

Os exércitos muçulmanos das conquistas precisavam ser alimentados, cuidados e enterrados. Este trabalho essencial para qualquer exército era realizado, primariamente, em geral, pelas mulheres, neste caso, parentes dos combatentes. É nesta luz que devemos ver esta presença feminina das primeiras muçulmanas no campo de batalha e em suas margens. Nesta situação, a participação das mulheres na guerra se dava, parcialmente, por causa do caráter não-profissional da organização militar. Mesmo assim, apesar dos motivos por trás da participação das companheiras muçulmanas nas primeiras batalhas da comunidade, como os homens, elas eram modelos exemplares e elementos principais na formação e reformação da identidade muçulmana. Portanto, os sábios muçulmanos tiveram de aceitar e abordar a inclusão das mulheres por Muhammad em suas campanhas. Os juristas tiveram principalmente de enfrentar as implicações de tal presença para todas as mulheres muçulmanas. 

Texto original: Women's Jihad? - Medieval Warfare Magazine