Como o leitor do História Islâmica está acostumado já há anos, não é novidade para muitos que na história do Islã podemos encontrar uma quantidade abundante de pensadores e intelectuais das mais diversas áreas, como medicina, química, teologia, filosofia, direito, física, matemática, astronomia e assim por diante. No presente texto que se segue, iremos listar cinco grandes nomes que o Islã concebeu à humanidade, que por sua vez são membros de uma lista infinitamente maior de grandes gênios provindos do dar al-Islam (terras do Islã).

Avicena

É necessário observar que a lista não está organizada em uma ordem de importância, genialidade ou contribuições gerais. Apesar disso, muitos considerariam o polímata que se segue como sendo, talvez, o maior nome que já surgiu da religião islâmica, principalmente no que diz respeito a suas contribuições que afetaram o Ocidente [1].

Nascido em 980 em uma vila próxima de Bukhara, no que hoje é o atual Uzbequistão, na época capital do Império Samânida, uma dinastia persa localizada na Ásia Central e no Grande Khorassan, Avicena (ou Ibn Sina), foi um grande polímata persa e um dos mais importantes pensadores da Era de Ouro Islâmica.

Avicena começou a estudar ainda cedo, demonstrando ser um grande prodígio nas áreas que se dedicava. Assim, estudou o Alcorão e também literatura, e segundo sua autobiografia havia memorizado o Alcorão inteiro quando tinha 10 anos de idade. Aprenderia ainda aritmética indiana juntamente com um indiano chamado Mahmou Massahi, assim como aprenderia mais coisas com um sábio andarilho da época. Indo mais além, Ibn Sina estudaria jurisprudência islâmica (fiqh) com um sábio sunita da madhhab (escola de jurisprudência) Hanafi, chamado Ismail al-Zahid. Ainda viria a estudar algumas obras filosóficas, como a de Porfírio, estudando também as obras de Euclides e Ptolomeu com um filósofo não muito popular da época, Abu Abdullah Nateli.

Obcecado pelas obras de Aristóteles, Avicena leria a Metafísica mais de 40 vezes, se frustrando inúmeras vezes por não conseguir compreender o livro do sábio grego. Seu entendimento só seria possível após ler o comentário de al-Farabi sobre a Metafísica aristotélica. O encontro do sábio persa com a obra de al-Farabi foi por acaso, encontrando-a em uma tenda de livros por 3 dirhams de prata, algo relativamente barato para a época. Dessa forma, tão grande foi sua felicidade após ter entendido a obra de Aristóteles que louvou a Allah e doou esmolas aos pobres como forma de agradecimento pelo esclarecimento que havia recebido de algo que há tanto tempo estudava e se dedicava a compreender.

Com base em seus estudos de Aristóteles, Ibn Sina desenvolveu sua própria versão do primeiro motor aristotélico, argumentando pela existência de um Ser Necessário, isto é, Deus, do qual o resto da existência flui através do processo de emanação (por isso chamado de Teoria da Emanação). Assim como o sol emana raios de luz em graus variados, onde quanto mais perto você estiver dele, mais brilhante ele será, esse processo de emanação, argumentava Avicena, é parte da Essência de Deus.

Porém, além do grande interesse pela filosofia, Avicena também se interessou pela medicina. Aos 16 anos seu interesse pela ciência médica despertou, mas não focou somente no aprendizado das teorias médicas, indo também atender aos pobres e necessitados de maneira gratuita e voluntária, e consequentemente aprendendo novos métodos de tratamento de enfermidades no processo. Já aos 18 anos, Avicena atingiria a qualificação médica.

Avicena foi um escritor prolífico, sendo também um grande polímata. Seus escritos totalizam cerca de 450 obras, que além de filosofia e medicina englobaram astronomia, alquimia, geografia e geologia, psicologia, teologia islâmica, lógica, matemática, física e até mesmo poesia.

Entretanto, apesar de tantos escritos, seria conhecido principalmente pelas suas obras de medicina e filosofia. No Ocidente cristão, por exemplo, seu Cânone de Medicina seria usado durante séculos nas faculdades de medicina, sendo um verdadeiro manual para os médicos europeus, considerado como a obra mais importante de medicina escrita por um médico muçulmano.

Imam al-Ghazali

Figura relativamente conhecida no Ocidente, mas de extrema importância para a civilização islâmica, Abu Hamid al-Ghazali (1058-1111) geralmente é citado na academia ocidental como sendo um dos responsáveis pelo declínio da Era de Ouro Islâmica. Esse mito já foi endereçado em textos da página.

Como a maioria dos outros pensadores muçulmanos, ele estudou uma ampla gama de tópicos, mas é conhecido principalmente pelos seus tratados místicos, frutos de seu apreço pelo sufismo, a ciência mística propriamente dita do Islã sunita. Embora incluído nesta lista de filósofos, o mesmo não se considerava um filósofo. Apesar disso, ele escreveu extensivamente sobre o assunto, vindo a criticar alguns dos autores que ainda serão abordados aqui no texto.

Al-Ghazali foi considerado por muitos como um mujaddid, isto é, alguém que aparece a cada século para reviver a religião. De fato, uma de suas obras se chama O Reavivamento das Ciências Religiosas. Não somente, mas o autor escreveu diversas obras espirituais, como um comentário aos 99 nomes de Deus na tradição islâmica, um clássico até os dias atuais que gera reflexões em milhões de muçulmanos por todo o globo, e que por sinal possui uma primorosa edição em português através da editora brasileira e islâmica Bismillah.

Contudo, al-Ghazali é mais conhecido no Ocidente pela sua obra Tahafut al-Falsafa, ou “A Incoerência dos Filósofos”, onde o mesmo avança a crítica à ciência aristotélica, trazendo postulados filosóficos que só viriam a ganhar força com David Hume no século XVIII ou um pouco antes com pensadores europeus do século XIV.

Seu livro marca uma grande virada na epistemologia islâmica. O encontro com o ceticismo em uma certa etapa da sua vida levou al-Ghazali a investigar uma forma de ocasionalismo teológico, ou a crença de que todos os eventos causais e interações não são produto de conjunções materiais, mas sim da vontade imediata e presente de Deus. Muitos atribuem a David Hume o empreendimento cético e o escrutínio de “causa” e “efeito”, mas foi Al-Ghazzali quem realmente aprofundou a discussão centenas de anos antes.

Um total de cerca de 70 obras podem ser atribuídas a Al-Ghazali, dentre elas uma autobiografia, onde relata como uma vez uma crise de ceticismo foi resolvida por "uma luz que Deus Altíssimo lançou em meu peito...a chave para o conhecimento".

Averróis

Ibn Rushd, mais conhecido como Averróis no Ocidente, foi talvez o filósofo muçulmano mais influente na Europa, tendo até o “averroísmo” sido condenado pela Igreja em um determinado período, uma vez que o pensamento do autor muçulmano foi quase como uma “febre” na Europa cristã medieval por um tempo.

Ao estudar a história da filosofia islâmica de Ibn Sina em diante, é impossível ignorar Ibn Rushd. Suas obras e argumentos lidam com as questões mais polarizadoras que dividiram muitos, incluindo os já mencioan dos Avicena e Al-Ghazzali.

Ibn Rushd (1126 -1198) ou, como é mais conhecido no Ocidente, Averróis, foi um filósofo e pensador muçulmano ibérico que escreveu sobre muitos assuntos, incluindo filosofia, teologia, medicina, astronomia, física, jurisprudência e direito islâmico e linguística. Além disso, ele serviu como juiz e médico da corte do califado almóada, e foi um grande defensor do aristotelismo. Muitas das obras de Ibn Rushd em árabe não sobreviveram, mas sim as suas traduções para o hebraico ou latim.

O pensador escreveu pelo menos 67 trabalhos originais, incluindo 28 tratados sobre filosofia, 20 sobre medicina, 8 sobre direito, 5 sobre teologia e 4 sobre gramática, além de seus comentários sobre a maioria das obras de Aristóteles e seu comentário sobre “A República de Platão”.

Opondo-se às tendências neoplatônicas de pensadores muçulmanos anteriores, como Al-Farabi e Ibn Sina, Averróis tentou restaurar aqueles que considerou como sendo os ensinamentos originais de Aristóteles. Por esse trabalho, o filósofo se tornou conhecido no Ocidente.

Como bem sabemos, pensadores medievais cristãos como São Tomás de Aquino beberam muito das fontes islâmicas, principalmente no que tange ao pensamento aristotélico, motivo pelo qual o averroísmo passou a ser condenado, sendo também uma espécie de triunfalismo do tomismo contra o pensamento de Averróis, sendo, consequentemente, o triunfo do catolicismo romano contra o Islã.

Por questões geográficas e intelectuais, seu legado ao mundo islâmico pode ser considerado modesto. Ibn Rushd vivia na Ibéria, no extremo oeste da civilização islâmica, longe dos centros das tradições intelectuais mais prolíficos do século XII, que estavam no Oriente islâmico, e geralmente era de lá que as inovações tecnológicas e intelectuais eram importadas para al-Andalus, e não ao contrário.

O pensamento de Ibn Rushd era visto como um conhecimento ultrapassado no mundo muçulmano oriental, que já examinava Aristóteles desde o século IX e agora estava se envolvendo profundamente com novas escolas de pensamento, especialmente a de Ibn Sina (Avicena).

Seu pouco impacto no mundo Islâmico medieval pouco tem a ver com as polemicas acusações de heresia dos juristas almóadas, visto que outros pensadores, como ele, al-Ghazali e Ibn Arabi, também foram chamados de hereges e até mesmo apostatas em algumas cortes, contudo, por estarem geograficamente melhor posicionados, suas ideias tiveram impacto maior, e ninguém em sã consciência diria que tais pensadores foram rejeitados pela civilização islâmica inteira por uma acusação de heresia num tribunal local.

Na Europa cristã, seus tratados, primeiramente traduzidos por Michael Scott (1175 -1232), geraram controvérsias na cristandade latina e desencadearam um movimento filosófico chamado averroísmo, baseado em seus escritos e que posteriormente seriam condenados pela Igreja, conforme já abordamos.

Shahab ad-Din al-Suhrawardi

Muito embora o filósofo que será abordado agora não seja tão famoso quanto os já mencionados, isso em nada reduz sua capacidade intelectual ou até mesmo grau de importância dentro da civilização islâmica. 

Filósofo iraniano, al-Suhrawardi foi mais um dos grandes pensadores muçulmanos que desenvolveria críticas ao pensamento aristotélico, chegando a criar sua própria escola de pensamento filosófico. Muito embora tenha morrido antes dos 40 anos, foi tempo o suficiente para produzir uma série de obras que o estabeleceram como o fundador de uma nova escola de filosofia, chamada "Iluminacionismo" (hikmat al-Ishraq).

Em 1186, com a idade de trinta e dois anos, ele completou sua obra-prima, A Filosofia da Iluminação. Proveniente da filosofia peripatética idealizada por Ibn Sina, a filosofia iluminacionista de Suhrawardi critica várias das posições do mesmo e se afasta radicalmente dele ao criar uma linguagem simbólica (principalmente derivada da antiga cultura iraniana) para dar expressão de sua sabedoria (hikma).

Como alguém que tentava resgatar a intelectualidade persa, o projeto de Suhrawardi teria grandes influências de longo prazo para a filosofia islâmica no Irã xiita. Seus ensinamentos tiveram uma forte influência no pensamento esotérico iraniano subsequente e acredita-se que a ideia de “Necessidade Decisiva” seja uma das inovações mais importantes na história da especulação filosófica lógica, enfatizada pela maioria dos lógicos e filósofos muçulmanos. Para se ter uma ideia da influência de al-Suhrawardi no Irã, seus pensamentos viriam a influenciar uma versão iluminacionista zoroastriana no século XVII através de Azar Kayvan.

Não somente, mas influenciaria também o próximo filósofo a ser abordado neste breve texto: Mulla Sadra, o grande místico, filósofo e teólogo xiita duodecimano [2].

Sadr ad-Din Muhammad Shirazi (Mulla Sadra)

Mulla Sadra nasceu em Shiraz, no que hoje é o Irã, em uma notável família de funcionários da corte em 1571 ou 1572. Seu nome de nascimento é Sadr ad-Din Muhammad Shirazi, é amplamente conhecido em todo o mundo hoje por Mulla Sadra, com sua filosofia influenciando muitos pensadores muçulmanos no século passado.

Desde cedo Mulla Sadra demonstrou ser um garoto prodígio, e isso pode ser notado em seu “apelido”: Mulla significa “grande cientista”, e não é para menos: o mesmo dominou todas as lições relacionadas à literatura persa e árabe, bem como a arte da caligrafia, em muito pouco tempo.

Como era oriundo de uma família aristocrata, sendo seu pai um influente político no Império Safávida, Mulla Sadra foi enviado logo cedo para estudar com os melhores nomes de seu tempo. Seguindo tradições de seu tempo, e antes da puberdade, ele também aprendeu equitação, técnicas de caça e luta, matemática, astronomia, um pouco de medicina, jurisprudência e lei islâmica. No entanto, ele foi atraído principalmente pela filosofia, particularmente pela parte mais mística da filosofia e também da gnose.

Em 1591, Mulla Sadra mudou-se para Qazvin e depois, em 1597, para Isfahan para buscar uma educação tradicional e formal em filosofia, teologia, hadith e hermenêutica.

Amplamente influenciado por al-Suhrawardi, a filosofia de Mulla Sadra possui grandes semelhanças com o pensamento ilumacionista de seu conterrâneo persa. Talvez sua obra mais célebre seja conhecida como Asfar (al-Asfar al-arbat al-aqliyyah) ou as "Quatro Jornadas Intelectuais". Inclui uma grande variedade de assuntos nos quais Mulla Sadra discute de forma aprofundada, no centro dos quais está o aperfeiçoamento da alma humana. Sua filosofia não é totalmente ilumacionista e nem peripatética, mas uma reconstrução sólida de ambos, que sintetiza muitas de suas ideias. Em alguns dos assuntos que abordava, dentre os quais alguns que divergia com Avicena, o mesmo afirmava que havia adquirido pleno conhecimento do tema por meio de revelação, mas que não teria divulgado tudo por ser muito complicado para ser compartilhado. De fato, o pensamento de Mulla Sadra era de fato de altíssima complexidade, uma vez que sintetizava o avicenismo, a filosofia iluminacionista de Shahab al-Din Suhrawardi, a metafísica sufi de Ibn Arabi e a teologia Kalam da escola teológica sunita Ashari, tudo isso inserido na estrutura do xiismo duodecimano.

Mulla Sadra trouxe uma nova visão filosófica ao lidar com a natureza da realidade e criou uma grande transição do essencialismo para o existencialismo na filosofia islâmica, não devendo o termo “existencialismo” aqui ser confundido com o que conhecemos no ocidente, principalmente através de autores como Sartre, Camus, Heidegger e dentre outros. O existencialismo no qual Mulla Sadra se preocupou era uma questão cosmológica, mais especificamente no que se refere a Deus e, portanto, difere consideravelmente das questões individuais, morais e/ou sociais que vemos nos autores europeus, russos ou americanos no existencialismo moderno.

Conclusão

Muito embora alguns dos pensadores expostos nesse texto sejam de amplo conhecimento geral e tenham recebido textos próprios na página, nunca é demais lembrar de sua genialidade e influências tanto para o Ocidente quanto para a civilização islâmica.  Alguns dos autores aqui abordados, como os dois últimos, não são tão conhecidos para muitos dos leitores brasileiros, mas isso não significa que não tiveram seu impacto de forma profunda na civilização, principalmente a islâmica.

Por vezes negligenciados ou abordados somente no que tange a sua influência no lado ocidental do globo, podemos encontrar nesses autores nascidos sob a tradição islâmica inúmeros traços de elevada sofisticação intelectual que dificilmente seriam atingidos até mesmo nos dias atuais na era da informação, por vezes possuindo ideias originais que só seriam alcançadas séculos depois por outras civilizações, como é o caso da civilização ocidental cristã e pós-cristã.

Assim, fica o convite ao leitor em se aprofundar na vida de cada um desses filósofos, que por sinal foram também grandes polímatas, seja através dos artigos publicados no próprio História Islâmica ou através de fontes diversas. De fato, é uma pesquisa que pode se revelar enriquecedora para o leitor, mas não somente no sentido intelectual, uma vez que algumas dessas figuras foram grandes nomes do misticismo islâmico, seja sunita ou xiita, mas de grande elevação espiritual.

 

NOTAS

[1] Uma vez que, ao que parece, para muitos, um pensador muçulmano só é verdadeiramente influente se de alguma forma o Ocidente teve contato com ele e ainda pôde aproveitar algo de seus escritos. Esses resquícios orientalistas nos impedem de conhecer e apreciar inúmeros outros pensadores que são importantes “exclusivamente” para o contexto islâmico, mas de uma genialidade e importância ímpar.   

[2] Algo curioso sobre al-Suhwardi é a sua morte: alguns afirmam que ele tenha sido condenado e morto por heresia, enquanto outros afirmam que o mesmo optou por morrer por inanição, dentre outras teorias a respeito de sua morte precoce aos 37 anos. O mais comum de se encontrar é a afirmação de que o mesmo teria sido condenado e executado por heresia.

REFERÊNCIAS

ADAMSON, Peter. Philosophy in the Islamic World: A History of Philosophy Without Any Gaps. Oxford University Press, 2016.

CORBIN, Henry Corbin. History of Islamic Philosophy. Routledge. 2014.

DUIGNAN, Brian. Medieval Philosophy. The Rosen Publishing Group. p. 89. 2010.

FAKHRY, Majid. Averroes (Ibn Rushd) His Life, Works and Influence, Oneworld Publications, 2001.

GRIFFEL, Frank. Al-Ghazali’s Philosophical Theology. Oxford University Press, 2009.

NAFISI, S. Avicenna in Europe. In: Jashn Nameh Ibn Sina., editor. Vol. 2. Tehran: Council of National Works Press; 1334 A.H.

NASR, Seyyed Hossein. Three Muslim Sages: Avicenna, Suhrawardi, Ibn Arabi. Caravan Books, 1976.

SAFAVI, Seyed G. Mulla Sadra’s Life and Phiosophy. London Academy of Iranian Studies, 2012.