Banu Qurayza e o massacre antissemita do Profeta
29/09/2023Depois do casamento com Aisha, a execução dos judeus da tribo Banu Qurayza talvez seja o evento mais polêmico que gira em torno do legado do Profeta Muhammad. O ocorrido foi tema de bastante material polemico em anos recentes, que visam não só depreciar o caráter de Muhammad como figura histórica, como também o próprio Islã como religião. Tais polêmicas sugerem que, num surto de maldade e fanatismo extremo bem comum a sua pessoa, o Profeta de Allah teria ordenado a execução sumária de vários judeus inocentes, em mais uma expressão de sua natureza sanguinária.
Sendo uma das muitas tribos judaicas que emigraram para a Arábia durante conflitos com os romanos na Judeia, a tribo de Banu Qurayza chegou a cidade oásis de Yathirb estabelecendo morada na região e fundando uma prospera colonia agrícola. No entanto, no século V, as tribos árabes iemenitas Banu Aws e Banu Khazraj vindas do sul da Arábia, se estabeleceram no mesmo oásis e ganharam o domínio. Após anos de presença e convivência relativamente pacífica entre estes árabes pagãos e as mais proeminentes tribos judaicas que habitavam o local, as duas tribos árabes se envolveram em conflito umas com as outras, as tribos judaicas, agora clientes ou aliadas dos árabes, lutaram em lados diferentes, os Qurayza tomando o lado dos Aws.
A contenda contínua entre os Aws e os Khazraj foi provavelmente a principal causa para vários emissários convidarem a Muhammad, que era conhecido como um influente conciliador de conflitos de Meca a Yathrib para julgar nos casos disputados. A ida do Profeta a Yathrib ficou conhecida doravante como Hégira, no contexto da partida de Muhammad da hostil Meca após 12 anos de duras perseguições a cidade mais amistosa que desde então passou a ser conhecida como Medinat al-Nabi, “Cidade do Profeta”, ou simplesmente, Medina. Após sua chegada em 622, Muhammad estabeleceu um pacto, a famosa Constituição de Medina, que comprometia as tribos judaicas e árabes, agora muçulmanas, à cooperação mútua e ao não auxilio a inimigos das partes signatárias.
Durante os primeiros meses após a chegada do Profeta a Medina, os Banu Qurayza estiveram envolvidos em uma disputa com outra tribo judaica, os Banu Nadir: a mais poderosa Nadir aplicava rigorosamente o talião contra os Qurayza, sem permitir que fossem aplicados contra eles mesmos em casos de homicídio. Além disso, o dinheiro de sangue pago por matar um homem dos Qurayza era apenas metade do dinheiro necessário por matar um homem dos Nadir, colocando os Qurayza em uma posição socialmente inferior. Os Qurayza apelaram a Muhammad como árbitro, que lhes ofereceu o arbítrio da surata 5: 42-45 do Alcorão, e julgou que os Nadir e os Qurayza deveriam ser tratados da mesma forma na aplicação do talião e elevou a avaliação dos Qurayza à quantia total de dinheiro de sangue em casos de assassinados de membros de uma tribo contra a outra.
As tensões se acumularam rapidamente entre o crescente número de muçulmanos e tribos judaicas, enquanto Muhammad se viu em guerra com sua tribo nativa de Meca, os coraixitas. Em 624, após sua vitória sobre os pagãos na Batalha de Badr, os judeus da tribo Banu Qaynuqa ameaçaram a posição política de Muhammad e agrediram uma mulher muçulmana, o que levou à sua expulsão de Medina por quebrar o tratado de paz da Constituição de Medina. Os Qurayza permaneceram passivos durante todo o caso dos Qaynuqa, aparentemente porque os Qaynuqa eram historicamente aliados dos árabes da tribo Khazraj, enquanto os Qurayza eram os aliados dos Aws.
Logo depois, Muhammad entrou em conflito com os Banu Nadir. Ele teve um dos chefes dos Banu Nadir, o poeta Ka’b ibn al-Ashraf executado por conspiração explícita com seus inimigos e após a Batalha de Uhud, acusou a tribo de traição e conspirando contra sua vida e os expulsou da cidade. Os Qurayza permaneceram passivos durante este conflito, talvez até felizes com a saída de uma tribo judaica rival que os desprezava.
Em 627, os habitantes árabes pagãos de Meca, acompanhados por aliados tribais, bem como os Banu Nadir, que tinham sido muito ativos no apoio aos habitantes de Meca traindo o pacto por eles feito com Muhammad, marcharam contra Medina, a fortaleza muçulmana, e sitiaram-na, intentando um cerco e depois, sua aniquilação. Um seguidor do Profeta de origem persa, Salman, deu a ideia a Muhammad de uma eficaz estratégia de defesa: cavar uma trincheira em volta de Medina para impedir a cavalaria coraixita e o grosso do exército de adentrar a cidade. Inicialmente, os judeus de Banu Qurayza permaneceram neutros ao conflito entre árabes muçulmanos e pagãos, porém, após serem convencidos por um emissário judeu vindo de Khaybar de que Muhammad estava sobrecarregado e não venceria o cerco, começaram a se comunicar com o exército invasor para formar uma aliança e traição, fornecendo-lhes meios para adentrar Medina.
Durante o cerco, os Qurayza receberam secretamente seu antigo inimigo, Huyayy ibn Akhtab, atual chefe dos Banu Nadir, que havia sido exilado pelo Profeta. Huyayy persuadiu o chefe dos Qurayza, Kab ibn Asad, a ajudar os habitantes de Meca a conquistar Medina. Kab foi, inicialmente relutante em quebrar o contrato e argumentou que Muhammad nunca quebrou nenhum acordo com eles ou os expôs a qualquer vergonha. Porém, devido às promessas de Huyayy de que se o cerco falhasse os Banu Nadir em pessoa viriam matar Muhammad, Kab decidiu apoiar os pagãos.
Rumores dessa renúncia unilateral do pacto se espalharam e foram confirmados pelos emissários do Profeta, Sad ibn Mua’dh e Sad ibn Ubadah, líderes dos Aws e Khazraj, respectivamente. Sad ibn Mua’dh supostamente emitiu ameaças contra os Qurayza, mas foi contido por seu colega. Como isso teria permitido que os sitiantes tivessem acesso à cidade e, assim, significasse o colapso da estratégia dos defensores, Muhammad se via agora numa situação fatal que punha em risco não só sua vida, como a de todos os muçulmanos presentes na cidade caso os pagãos nela adentrassem. O Profeta então enviou Nuaym ibn Masud, um ancião respeitado da tribo inimiga de Ghatafan que se converteu secretamente ao Islã, para ir aos inimigos e semear discórdia entre eles. Nuaym foi para os Qurayza, que o reconheceram como um aliado, e os aconselhou a se juntarem às hostilidades contra Muhammad somente se os sitiantes fornecessem reféns de entre seus chefes, para garantir que não seriam traídos. Ele então correu para os invasores e os avisou que se os Qurayza pedissem reféns, era porque eles pretendiam entregá-los aos defensores de Medina, os traindo. Quando os representantes dos pagãos coraixitas e dos Ghatafan chegaram aos Qurayza, pedindo apoio na planejada batalha decisiva com Muhammad, os Qurayza de fato exigiram reféns. Os representantes dos sitiantes recusaram-se, quebrando as negociações e fazendo com que os Banu Qurayza se tornassem extremamente desconfiados do exército sitiante. Os judeus dos Banu Qurayza não tomaram nenhuma medida para apoiá-los até que as forças sitiantes, desistiram do já longo e duro cerco, e recuaram. Assim, a ameaça de uma segunda frente contra os defensores nunca se concretizou.
Após a partida dos pagãos, Muhammad liderou suas forças contra a fortaleza dos Banu Qurayza em Medina em retaliação. Os judeus recuaram para sua fortaleza e suportaram o cerco por 25 dias. À medida que seu moral diminuía, Kab ibn Asad, seu líder, sugeriu três caminhos alternativos para sua situação: abraçar o islamismo; matar seus próprios filhos e mulheres, então correr a uma investida para ganhar ou morrer; ou fazer um ataque surpresa no Sábado, enquanto os muçulmanos pensassem que os judeus estavam em retiro sabático. Os Banu Qurayza não aceitaram nenhuma dessas alternativas. Em vez disso, eles pediram para conversar com Abu Lubaba, um de seus antigos aliados dos Aws, que agora era muçulmano. Abu Lubaba, ao chegar na fortaleza judaica e ver o estado dos sitiados, sentiu pena das mulheres e crianças da tribo que estavam chorando e quando perguntado se os Qurayza deveriam se render a Muhammad, aconselhou-os a fazê-lo. No entanto, ele o disse fazendo um sinal com a mão em direção à sua garganta, indicando que seu destino nas mãos do Profeta por sua traição não seria o exílio das outras tribos judaicas, mas a pena de morte.
Na manhã seguinte, os Banu Qurayza se renderam e os muçulmanos tomaram suas fortalezas e suas lojas. Os homens – entre 400 e 700 aproximadamente, as fontes além de posteriores, divergem bastante – foram amarrados e colocados sob a custódia de Muhammad ibn Maslamah, que havia matado Kab ibn al-Ashraf, antigo líder dos judeus de Banu Nadir, enquanto as mulheres e crianças – num total de aproximadamente 1.000 – foram colocados sob os cuidados Abdullah ibn Sallam, um proeminente ex-rabino judeu que havia se convertido ao islamismo tempos atrás.
Como parte do acordo de rendição, os judeus receberam a opção de escolher um árbitro para decidir seu destino. Eles então escolheram o proeminente membro de sua velha tribo aliada, Sad ibn Mua’dh. Sad então, de maneira pragmática, decidiu que os homens deveriam ser mortos, a propriedade dividida, e as mulheres e crianças tomadas como cativas, seguindo os próprios preceitos judaicos para traição em tempos de guerra e pós-sítio (Deuteronômio 20: 10-14). Muhammad não podia mais repetir seu tratamento anterior extremamente piedoso com prisioneiros de guerra e traidores, os quais apenas libertava e exilava. Se uma terceira traição judaica fosse tratada da mesma forma, isso seria visto como extremo sinal de fraqueza, se não de loucura (no dia de partida das tribos judaicas anteriores, estes deixaram Medina em festa, ornando tudo o que tinham de riqueza, como uma forma de zombaria dos muçulmanos que não lhes tiravam a vida ou os bens ainda que desobedecessem ao pacto. Este pode também ter sido um agravante para a pena da terceira traição). Era temido também que, se fossem expulsos, os Qurayza se juntariam aos Nadir na luta contra os muçulmanos, fortalecendo ainda mais os pagãos de Meca.
Então, a sentença foi cumprida, e todos os homens adultos da tribo que tinham tomado parte na traição foram mortos, junto com apenas uma mulher, executada por ter atirado uma roda de moinho num dos muçulmanos defensores e o matado durante o cerco. Um grande arsenal dos Banu Qurayza, que consistia de 1500 espadas, 2000 lanças, 300 armaduras e 500 escudos, foi confiscado pelo Profeta, um verdadeiro tesouro para muçulmanos que lutavam na época com um equipamento militar bem precário, e as vezes revezam o uso de espadas em batalha.
Os espólios da batalha, incluindo as mulheres cativas e as crianças da tribo, foram divididos entre os guerreiros muçulmanos que participaram do cerco. Mohammad coletou um quinto do butim, que foi então redistribuído para os pobres em caridade, como era de seu costume. Uma das mulheres judias feitas cativas, Rayhana bint Zayd, foi liberta e casou-se com o Profeta, tendo posteriormente aceitado o Islã, e ficado honrosamente conhecida como “Mãe dos Crentes”. Algumas das mulheres e crianças dos Banu Qurayza foram posteriormente compradas por judeus, em particular os Banu Nadir, que se sentiam responsáveis pelo destino de seus irmãos de fé devido ao papel de seu chefe nos eventos da traição, que eles haviam incentivado. Até aqui, é o sumário de uma linha historiográfica do que se tem disseminado há séculos sobre o massacre da tribo judia. Mas não é tudo.
Segundo alguns dos primeiros biógrafos medievais da vida do Profeta, toda a história do massacre dos homens judeus e cativeiro em massa de suas mulheres e filhos não passa de pura lenda inventada para legitimar retroativamente sentimentos antissemitas de épocas posteriores (algo comum para outros temas também, onde califas omíadas e abássidas criaram hàdices legitimadores de suas ações e profecias políticas). A evidência para o não acontecimento de tal massacre vem de várias tradições que datam do período medinense posterior registradas em al-Bukhari, em que o Profeta teria sido convidado por membros do clã judaico, supostamente exterminado a esta altura, para mediar suas questões. Numa destas narrações, Rifa’ah al-Qurazi (membro masculino do clã que supostamente já deveria ter sido morto pois já era adulto na época do cerco) que se divorciou da esposa, amiga de Aisha, esposa do Profeta, pede a interseção deste em seu litígio matrimonial. O célebre e autoritativo historiador e tradicionalista islâmico levantino Abd al-Rahman al-Awza'i (707-774) comentando o valor das narrações e hádices que falam do massacre antissemita já no século oitavo postulava: “até onde sei, não existe um decreto Divino para castigar muitos pela culpa de poucos, mas pra repreender poucos pela culpa de muitos.’’ O especialista em hádices biográficos de Muhammad, Ibn Hajar al-Asqalani (1372-1449), "cuja obra de vida constitui o somatório final da ciência de hádice", em seu Tahthib ut-Tahthib, chamou a história de ‘’conto distorcido’’, e at-Tabari, que dispensa apresentações aos conhecedores dos biógrafos medievais do Profeta, classificou o registro ‘’alegação infundada’’. Para uma análise mais completa, W. N. Arafat no artigo ‘’New Light on the Story of Banū Qurayẓa and the Jews of Medina’’ dá uma boa sumarizada do porque o massacre dos Banu Qurayza não tem sentido islâmico em diversos de seus aspectos, e histórico a luz de inúmeras contradições.
Bibliografia:
- Jebara, Muhammad (2023) “Maomé - O transformador do mundo: Uma biografia reveladora sobre o fundador da religião islâmica”
- W. N. Arafat, ‘’ New Light on the Story of Banū Qurayẓa and the Jews of Medina’’
- Guillaume, Alfred, The Life of Muhammad: A Translation of Ibn Ishaq’s Sirat Rasul Allah. Oxford University Press, 1955
- Hodgson, Marshall G.S., The Venture of Islam. University of Chicago Press, 1974.
- Khadduri, Majid, War and Peace in the Law of Islam. Johns Hopkins Press, 1955.
- Lings, Muhammad: His Life Based on the Earliest Sources, p. 229-233.
- Peterson, Daniel C., Muhammad: the prophet of God. Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans, 2007.
- Ramadan, Tariq, In the Footsteps of the Prophet. New York: Oxford University Press, 2007.