Embora seja habitualmente contada como um episódio da Reconquista, a batalha de Graus, no século XI, acaba se provando justamente mais outro caso do complexo panorama geopolítico da Península Ibérica; neste caso, até mais significativo que o episódio da batalha de Cabra.

Conforme explicado anteriormente, o século XI estabelece um novo cenário para a realidade politico-militar da Península Ibérica: o Califado de Córdoba está progressivamente sendo fragmentado em pequenos potentados conhecidos como taifas. A balança passa a pender a favor dos Estados Cristãos, que estabelecem um sistema de vassalagem tributária conhecida como parias, demandando grandes somas de dinheiro de determinadas taifas em troca de proteção feudal e do reconhecimento de sua autonomia.

E embora possa parecer que o sistema de parias não era nada mais do que extorsão dos reinos cristãos contra estes principados muçulmanos menos poderosos, ao mesmo tempo em que seria um arranjo mais conveniente e pacífico, acontece que historicamente os cristãos realmente exerceram seus deveres de protetores para com suas taifas protegidas. Comparada com Cabra, a batalha de Graus se prova um episódio ainda mais exemplar desta dinâmica feudal, porque enquanto a primeira consistiu de simplesmente duas delegações distintas de cavaleiros lutando por taifas distintas, o último contém um caso não de nobres, mas de dinastias reais lutando por taifas a quem deviam fornecer proteção.

Apesar de ser um evento histórico, a sua correta datação ainda permanece um assunto um tanto controverso. Não pela sua historicidade estar em dúvida, como se ela fosse negada ou omitida dos registros posteriores próximos ou pela historiografia acadêmica, longe disto. A controvérsia diz respeito à própria confusão das fontes cristãs na datação da mesma: O Historia de Aragón de Antonio Ubieto Arteta data a batalha no ano de 1069; a Chronica Naierensis atribui o evento para 1070 e, para piorar a situação, o parecer tradicional é que a batalha ocorreu em 1063. Qualquer que seja o ano correto, sua datação exata não desenvolverá um impacto decisivo na natureza dos eventos, como veremos a seguir.

Na segunda metade do século XI, a cidade de Graus constituía o enclave mais avançado da taifa muçulmana da Saragoça. contornando os reinos de Pamplona e Aragão e sendo alvo da cobiça expansionista dos reinos cristãos do Norte. O local já havia sido atacado na década de 1050, sem sucesso, e seria novamente ameaçado por uma campanha de Ramiro, o primeiro rei de Aragão. Como era natural à maioria das taifas, Saragoça era vassala tributária de um potentado rival a Ramiro; Fernando I, rei de Leão e conde de Castela (que mais tarde se desmembraria se tornaria um reino de direito próprio), recolhia as parias da Taifa de Saragoça, exercendo sua suserania sobre aquele principado islâmico e mantendo as pretensões aragonesas e bascas sob freios. Quando Ramiro liderou pessoalmente um exército contra Graus, o príncipe herdeiro de Fernando, Sancho o Forte, foi ao auxílio do rei al-Muqtadir de Saragoça juntamente com 300 cavaleiros. Assim como em outros episódios da Reconquista, cavaleiros cristãos pegaram em armas contra outros cavaleiros cristãos para defender vassalos e aliados muçulmanos.

O que torna este episódio mais interessante, ou pelo menos possivelmente mais interessante, é a presença de Rodrigo Dias de Vivar, o famoso El Cid, na batalha, pelo lado castelhano e muçulmano. Este ainda é um ponto de divergência e incerteza entre os historiadores, uma vez que somente uma das fontes primárias da batalha faz menção à sua participação na batalha, como Alferes – um termo árabe que entre cristãos era entendido como porta-estandarte – do infante Sancho; esta, por assim dizer, seria a primeira batalha real que Vivar teria travado na sua carreira, o que torna todo ainda mais interessante (ela foi reencenada na série El Cid da Amazon Prime em 2020). Apesar da sua participação estar confinada ao registro único da Historia Roderici, o fato desta fonte ser costumeiramente confiável torna esta participação algo plenamente possível, embora impossível de se confirmar com plena certeza.

De acordo com as narrativas tradicionais, a batalha terminou com uma vitória decisiva para o exército liderado por al-Muktadir e Sancho, tendo o próprio rei Ramiro I, meio irmão de Fernando de Leão, morrido na batalha contra as forças de seu sobrinho. Os detalhes, porém, são contraditórios, e a própria morte de Ramiro na batalha às vezes é atribuída ora a um soldado muçulmano, ora a um assassino e, pelo menos num outro caso, ele teria sobrevivido à batalha ferido e falecido quatro meses depois da mesma. A derrota de Aragão ecoou no além-pirinéus. A abadia de Cluny, uma influente organização monástica na Borgonha (região entre a França e a Alemanha Medieval), persuadiu o Papado a empreender a primeira experiência de Cruzada, ou proto-cruzada, em defesa de Aragão; naturalmente, algo que só ocorreu por conta do complexo panorama geopolítico da península, um arranjo confuso demais para os católicos na França e na Itália sequer conseguirem entender; um rei cristão manda um exército para defender uma cidade muçulmana e o resultado é a morte de seu próprio irmão, outro rei cristão. No ano seguinte, seguida a datação tradicional, a “Cruzada” de Barbastro (1064) foi lançada.

“.... a expedição contra Barbastro é, acima de tudo, uma cruzada francesa, inspirada por Cluny e lançada através da persuasão cluniaca sobre o papado de Alexandre II. Seu propósito era preservar o pressionado reino aragonês da invasão muçulmana iminente, e de sua possível destruição pelas mãos de muçulmanos, após a derrota completa e morte de Ramiro I em Graus, em 8 de maio de 1063. Graus, neste prelúdio hispânico à palestina gesta Dei per Francos, serve aqui como uma Manzikert Ibérica, com o rei Sancho Ramírez – assim como os legados do imperador Alexios Comnenos em Piacenza – apelando desesperadamente por socorro papal e franco ...” (BISHKO, 1980, p. 55)

Bibliografia:

-BISHKO, Charles Julian. Fernando I and the Origins of the Leonese-Castilian Alliance with Cluny. Studies in Medieval Spanish Frontier History. Londres: Variorum Reprints, 1980.

-REILLY, Bernard F. The Kingdom of León-Castilla under King Alfonso VI, 1065–1109. Princeton: Princeton University Press, 1989.

-MONTANER FRUTOS, Alberto. El Cid en Aragón, Zaragoza, CAI-Edelvives, 1998