“Os Bektashis são quase todos panteístas; eles veem Deus na Natureza, no topo das Montanhas, em sorridentes vales, nos animais, na bondade humana e na compreensão. Eles vivem sua filosofia no dia-a-dia com permissões para as fragilidades humanas, ensinando simplicidade e amor fraternal, bem como gentileza para com todos os seres vivos.”

- Joseph Swire, jornalista e escritor inglês.

Poucas comunidades religiosas são tão únicas quanto os bektashis, uma (atualmente) pequena comunidade de muçulmanos heterodoxos presente, em sua grande maioria, na Albânia, com alguns membros também na Macedônia do Norte, Turquia, Grécia e Estados Unidos. São uma comunidade única no mundo e detém crenças e práticas ímpares, destacando-se dentro da própria ‘ummah do Islã como um tipo de Islã que aos poucos foi se separando e tornando-se distinto do Sunismo, Xiismo e Ibadismo.

Os bektashis não são como os outros muçulmanos: muitas de suas crenças parecem ser alienígenas ao Islã, mesmo que alguns sectos islâmicos tenham as portado, como é o caso da reencarnação, uma crença bektashi compartilhada por alguns grupos de xiitas ismaelitas e sectos ghulat dentro do xiismo duodecimano; offshoots desses dois grupos originaram os Druzos e os Alauítas, respectivamente. Os devotos da ordem e leigos, também, não costumam rezar em mesquitas: o centro de sua vida religiosa é o tekke, que é uma construção tipicamente sufi para as reuniões de uma tariqa; para os bektashis, no entanto, o tekke é não apenas é o “monastério” onde vivem seus dervixes sob os cuidados do baba, mas também é o centro da vida comunitária deles.

Tekke bektashi em Tetovë, República da Macedônia do Norte.

Tanto dentro quanto fora da ordem, as mulheres, que não precisam usar hijab se não quiserem, têm status absolutamente igual ao dos homens: nas cerimônias da ordem, elas podem participar junto, lado-a-lado dos homens e são iniciadas como murids, também; tal fato acabou por, infelizmente, gerar boatos de comportamento imoral dos bektashis entre os muçulmanos sunitas, mais conservadores. Uma outra prática ainda é mais escandalosa aos muçulmanos ortodoxos: os bektashis podem beber. Embora isso varie de tekke para tekke, e a maioria não o faça, não é algo que é lá muito vetado ou fiscalizado. Muitos também não comem carne.


Há, ainda, muitos elementos sincréticos na comunidade bektashi. Na realidade, sempre houveram: em seus primórdios turco-anatólicos, a Ordem era conhecida por ter práticas derivadas do tengriismo, o xamanismo dos povos túrquicos. Ao se espalhar pelos Bálcãs, a ordem não apenas adquiriu contornos populares e folclores das comunidades que à ela aderiram (notadamente os albaneses), como também levou elementos sincréticos para essas comunidades. Os elementos sincréticos vão desde elementos cristãos (geralmente na forma de devoção a santos cristãos e o uso de imagens de personalidades islâmicas e o uso de velas votivas) até elementos pagãos, pré-islâmicos e pré-cristãos, como é o caso da peregrinaão anual ao Monte Tomorrë, na Albânia que originalmente era um local sagrado para os albaneses pagãos onde dizia-se habitar uma divindade; com a chegada do Cristianismo, a montanha virou local sagrado para a peregrinação no dia da Assunção da Virgem Maria; com a chegada do Islã Bektashi, o santuário, um verdadeiro playground perenialista, tornou-se local sagrado e de peregrinção bektashi, onde foi construído, em seu topo, um tyrbe ou türbeh, uma tumba (geralmente de um santo sufi) onde dizem estar enterrado (ou pelo menos, haver uma relíquia) ‘Abbas Ali (r.a), o filho do Imam Ali ibn Abu Talib (a.s) com uma de suas concubinas que, junto do Imam Hussein (a.s) foi martirizado na Batalha de Karbala contra as forças do usurpados Yazid ibn Muawiya ibn Abu Sufyan; conta a lenda bektashi que, escapado do cruel destino em Karbala, mas mortalmente ferido. Abas Aliu, como é chamado em albanês, cavalgou até a Albânia, onde morreu aos pés do Monte Tomorr.

Santuário bektashi no Monte Tomorr.

Além destas heterodoxias, a posição do Bektashismo dentro do Islã é um tanto quanto ambígua: sem dúvida seguem e têm um outlook xiita: reverenciam os Doze Imãs do xiismo duodecimano e seguem a escola de jurisprudência jaf’ari do xiismo; dão uma importância tremenda ao martírio de Hussein em Karbala, observando um jejum no mês de Muharram, conhecido como Matem, de 10 dias sem água ou comida em virtude do sacrífico de Hussein e seus companheiros. Celebram o feriado de Sultan Nevruz, que celebra o nascimento de Ali e o Mevlid, que celebra o nascimento do Profeta Muhammed (sas). Bektashis geralmente têm imagens de Ali em suas casas e nos tekkes e dão muita importância à “tríade” Hakk-Muhammed-Ali, que, apesar de poder lembras, não tem nada a ver com a Trindade Cristã: Allah-Muhammed-Ali é uma forma de compreensão mística da realidade.

Ao mesmo tempo, eles reverenciam santos sufis sunitas, como o mártir Hazrat Mansur al-Hallaj, que tem papel central na teologia bektashis; Mawlana Muhyi ‘ibn ‘Arabi, de quem os bektashis derivam sua principal feição teológica, o wahdat al-wujud ou “unidade do todo”; e o poeta azeri Nasimi, também martirizado pelo establishment conservador, assim como al-Hallaj, por suas visões heterodoxas, sendo ele um discípulo do também poeta e dervixe errante Fazlullah al-Astarabadi, o fundador do movimento gnóstico-cabalista muçulmano do hurufismo, que lidava principalmente com o misticismo das letras. As doutrinas dos hurufiyya foram levadas, segundo lendas, por um discípulo de Fazlullah chamado Ali al-‘Ala, até os alevis-bektashis da Anatólia.

Poucas comunidades, também, apresentam o mesmo grau de resiliência que esta comunidade religiosa, surgida de uma tariqa, isto é, uma ordem religiosa mística muçulmana, detém: durante séculos, infortúnio atrás de infortúnio recaiu sobre estes singelos e pacíficos devotos de Al-Hakk (A Verdade Suprema, um dos Nomes de Allah swt) até sua quase extinção nas mãos do comunismo. Infortúnio atrás de infortúnio, os devotos da Tariqa Bektashiyya se reergueram. Esta é a sua história:

Por volta do século XI ou XII, seguindo uma onda de migração de povos turcomanos da Ásia Central até a Anatólia, veio, segundo as lendas, ao menos, um dervixe sufi de Khorasan: seu nome era Haji Bektash Veli. Dizem alguns estudiosos e os devotos que o reverenciam que ele era discípulo do grande santo sufi turcomano ‘Ahmed Yassawi, fundador do que hoje é a maior tariqa da Ásia Central, os Yassawiyya. Dizem outros que ele era um membro dos Qalandariyya, ou Kalenderi, uma tariqa conhecida pelo comportamento estranho e heterodoxo de seus membros. À parte da nebulosa origem, que mistura fato e lenda, ele pregou no interior da Ásia Menor entre as tribos turcas e atraiu multidões para perto de si, dada sua santidade óbvia e milagres, como o fato de sentar-se e agir amigavelmente com todo tipo de fera selvagem. Hazrat Haji Bektash então, após falecer, deixou muitos discípulos que se dividiram sobre o que deveria ser feito agora que o grande Pir, o Pai, o Ancião, havia falecido. Aqueles que decidiram manter uma postura mais “tribalista”, centrada nos parentes de Bektash Veli são os ancestrais da comunidade que hoje é conhecida na Turquia como Alevilik – os Alevitas, ou Alevis. Os que tomaram uma atitude mais aberta, missionária, são os ancestrais da Ordem Bektashi. Essa origem conjunta é o motivo pelo qual muitos estudiosos se refere a ambas as comunidades como sendo os Alevi-Bektashis; apesar de comparilharem uma origem e crenças em comum, elas são distintas; aqui veremos especificamente sobre os bektashis.

Representação artística de Mevlana Pir Haji Bektash Veli, considerado o pai da tariqa Bektashiyya.

O “segundo pai” da Ordem Bektashi foi o místico Balim Sultan, filho de pai muçulmano e mãe cristã. Ele foi quem sedimentou, efetivamente, a separação entre as duas correntes herdeiras do santo turcomano: no século XIV, ele institucionalizou os ritos e práticas, bem como influências teológicas (derivadas tanto do sufismo sunita quanto de movimentos gnósticos xiitas) e criou a tariqa Bektashiyya, uma ordem de dervixes com uma hierarquia peculiar, que lembra a hierarquia das igrejas cristãs: na base, estãos os ashiks, palavra que vem do turco e significa “amantes, amigos”, e é designada para os leigos que seguem o bektashismo, mas não são iniciados na Ordem; em seguida vem os mühibs, ou murids, que são aqueles pupilos que já passaram pela cerimônia (secreta) de iniciação, à qual apenas iniciados na Ordem podem atender; em seguida, há os dervishes, que são os murids já avançados que assumem votos dentro da Ordem e, geralmente, vivem dentro de um tekke, sendo que os dervixes podem escolher entre serem casados ou não; em seguida, há os babas, que são os responsáveis por um tekke, sendo o baba, cujo significado é turco para “pai”, também, o líder religioso da comunidade; em seguida, o dede é um responsável por vários tekkes de uma determinada região, como uma espécie de “arcebispo”, sendo o seu significado o de “avô” em turco; por último, há o Dedebaba, que atua, efetivamente, como o “Papa” de todos os bektashis: é a última autoridade em assuntos religiosos, seu nome, que em albanês é kryegjish, significa “bisavô”. Balim Sultan também estabeleceu a sede da tariqa na atual vila de Hacibektashköy (Vila de Haci Bektash), que leva até hoje seu nome.

A Ordem acompanhou o avanço do Império Turco-Otomano sobre a região Balcânica. Sua atividade missionária foi bem-sucedida em duas regiões: A Albânia (especialmente no sul da atual Albânia e no Kosovo, que é parte histórica da nação albanesa) e na Macedônia, no que hoje é a Macedônia Grega e a Macedônia do Norte. Seu boom foi no século XVII, quando a ordem firmemente se estabeleceu na Albânia e Macedônia, contando com o apoio de figuras importantes como o Pasha Ali Bey de Ioannina, ele mesmo um bektashi albanês. O próprio Sultão Suleyman II tinha um companheiro de viagem beltashi, Gül Baba, que tentou difundir o Islã na atual Hungria mas obteve pouco sucesso. Sua tumba se encontra hoje em Budapeste.

Ao longo do tempo, dada sua extensa atividade missionária e popularidade em terras cristãos, a Ordem Bektashi passou a se associar cada vez mais à ‘tropa de elite’ otomana conhecida como ieniçeri – os famosos janízaros –, cujas fileiras eram compostas de soldados majoritariamente balcânicos “coletados” pela Sublime Porta (governo otomano) das populações dhimmi para serem criados como soldados profissionais no chamados devshirme (imposto de sangue). A associação foi tanta que logo a Ordem se tornou a tariqa semi-oficial dos janízaros. Isso apenas ajudou a Ordem a crescer. Em 1826, todavia, o Sultão Mahmud II dissolveu os janízaros e ordenou que a Bektashiyya cessase suas atividades; ele deu os tekkes bektashis a ordens sufis mais “ortodoxas”, como os Halvetis e Naqshbandis, mas falhou em seu objetivo: os bektashis refugiaram-se nessas ordens, não raramente gozando do acobertamento e plena amizade com seus irmãos sufis “ortodoxos”, com quem dividiam os tekkes. A Ordem acabou se recuperando e, cada vez mais, foi ganhando contornos nacionalistas, especialmente pela causa nacionalista albanesa, onde eram (e ainda são) mais numerosos, até que perto do fim do século XIX, começou a se engajar ativamente em campanhas nacionalistas e de autodeterminação.

Nos tekkes aprendia-se o albanês, enquanto na escola aprendia-se o turco. Essa educação, num país esmagadoramente analfabeto, vinha acompanhada da idealização de uma pátria albanesa livre, seja do jugo ocidental ou do jugo otomano. Quando a Albânia finalmente se tornou independente em 1912, os Bektashis organizaram-se e foram reconhecidos como uma comunidade religiosa autônoma. Nos anos seguintes, se separariam distintamente da comunidade normativa Islã, para formar sua própria autêntica comunidade.

Dervixes bektashis e padres cristãos ortodoxos

A independência, no entanto, não representou o fim dos infortúnios para a comunidade: com o advento das Guerras Balcânicas, os gregos invadiram e ocuparam o sul da Albânia em 1916, molestando todos os muçulmanos, sunitas ou bektashis, destruindo tanto mesquitas como tekkes. A grande maioria dos tekkes foram destruídos, muitos babas e dervixes, bem como civis, foram mortos a sangue-frio; esta foi a pior campanha de destruição que os bektashiyya albaneses sofreram – até então –.

Em 1925, todas as tariqas foram banidas na República Turca de Mustafá Kemal Atatürk. Isso forçou o Dedebaba a mudar sua sede patriarcal de Hacibektashköy para Tirana, capital da Albânia, onde permanece até hoje. Passados os horrores das Primeira Guerra Mundial, a Albânia foi invadida pela Itália Fascista e o seu rei, Zog I, deposto, sendo instaurado um protetorado na região. Após a derrota do Eixo, os partisãos comunistas, liderados por Enver Hoxha, disputaram contra os nacionalistas (que tinha entre suas fileiras muitos bektashis) o controle da Albânia livre. Hoxha, um antirreligioso virulento, acabou levando a melhor e em 1946 foi proclamada a República Popular Socialista da Albânia. A princípio, Hoxha tolerou o Bektashismo (enquanto o pau comia solto com as outras denominações religiosas) para tentar fazer dele uma “religião nacional”.

Em 1947, Dedebaba Xhafer Sadiku estava em uma reunião com dois babas pró-comunistas; em meio ao desentendimento, Xhafer Sadiku atirou e matou os dois babas e se matou logo em seguida, causando o maior escândalo de toda a história bektashi. Esta era a epítome do desespero dos bektashis logo no início do regime comunista albanês. O pior, porém, ainda estaria por vir: em 1968, toda e qualquer crença religiosa foi banida da Albânia Comunista: a liderança bektashiyya foi caçada até quase à extinção e seus babas e dervixes, quando não mortos, presos em gulags hoxhaístas nas montanhas. A tariqa só sobreviveu pela sua presença fora do território albanês, especialmente nos Estados Unidos, onde foi fundado o primeiro e único tekke na América pelo então dervixe Rexheb, sagrado Baba pelo último dede bektashi do tekke do Cairo (dissolvido na década de 50 pelo governo de Gamal Abdel Nasser). Quando o regime comunista caiu em 1992, a Ordem estava praticamente sem clero e seus tekkes, quando não destruídos, em ruínas.

Desde então, novamente, sempre com a ajuda de fundos levantados da própria comunidade, a comunidade bektashi vem lentamente se recuperando da tempestade vermelha que quase a destruiu. Atualmente o Dedebaba em Tirana é o Sr. Edmon Brahimaj Mondi, conhecido como Baba Mondi. Há tekkes ativos por toda Albânia, na Macedônia, na Grécia, na Turquia e um nos EUA. Apesar de tanta perseguição, a comunidade segue se reestruturando e recuperando o seu legado tão único.

À direita, o tyrbe de Baba Rexheb no tekke bektashi dos EUA. À esquerda, Dedebaba Mondi com uma jovem bektashi.

Bibliografia:

  • THE ALBANIAN BEKTASHI: History and Culture of a Dervish Order in the Balkans – Robert Elsie (2019).
  • THE BEKTASHI TARIKAH OF DERVISHES: Olsi Jazexhi, Algiers, (10/9/2007).
  • Extremist Shiites The Ghulat Sects - Matti Moosa (1988).