A seita dos Carmatas (ou Qarmatas) surge na década de 890 d.C., oriunda do ismaelismo (corrente do Islã xiita), sendo normalmente lembrada por fazer oposição e revolta contra o califado Abássida. De acordo com Dominique Sourdel (2008), sua origem aparentemente ismaelita representou algo que autores sunitas chamaram de “al-da’wa al-batiniyya” (“propaganda esotérica”), muito embora seu surgimento no geral ainda permaneça obscuro.

A origem do nome ainda é debatida entre os historiadores, entretanto, algumas fontes afirmam que a origem se deve ao sobrenome do seu fundador, Harman Qarmat. Inicialmente, o nome foi utilizado para designar os primeiros convertidos ao Ismaelismo por ele, porém, conforme seus seguidores foram aumentando, o nome passou a adquirir uma conceituação mais ampla do que anteriormente possuía, como para qualquer grupo ismaelita que se recusasse a reconhecer o domínio Fatímida no Norte da África, mesmo sem possuir qualquer ligação com o próprio Qarmat.

A origem dos carmatas marca uma época de especial proeminência de vários grupos xiitas que angariavam cada vez mais poder, acelerando o colapso do controle do califado abássida na região das províncias próximas à Bagdá. Durante o período de 890-906, os carmatas foram muito ativos na região do Iraque e nos desertos da Síria, tendo fundado um estado no leste da Arábia em 894 d.C., muitas vezes descrito como um local comunal e utópico (HODGSON, 1974).

Durante o califado Abássida, vários foram os grupos xiitas que faziam parte de uma oposição oculta contra o governo. Nesse período, o grupo mais proeminente que apoiava uma espécie de comunidade “proto-Ismaelita” eram os Mubarakiyyah. Eles, por sua vez, mantiveram contato com Muhammad ibn Ismail, aceitando-o como sucessor de Jafar al-Sadiq, o sexto dos 12 imames.1

Após toda essa questão sucessória ao Imamato, outras discordâncias iriam surgir após a morte do próprio Muhammad ibn Ismail2. Dessa vez, a maior parte do grupo Mubarakiyyah se recusaria em aceitar a sua morte, vindo inclusive a reconhece-lo como o Mahdi3. Enquanto a minoria do grupo viria a mais tarde ascender ao ponto de se tornar a famosa Dinastia Fatímida, a maioria se estabeleceria na cidade de Salamia (Síria). O líder do movimento, al-Husayn al-Ahwazi converteria mais tarde no Khuzistão (Irã) o já mencionado Harman, que acrescentaria Qarmat em seu nome após sua conversão em 874 d.C.

Ainda em Salamia, uma mudança na liderança no ano de 899 faria com que Harman Qarmat se desligasse completamente do grupo, vindo inclusive a realizar oposição contra essa minoria que assumiu a liderança, contando com o apoio do teólogo e também seu cunhado, Abdan. O cunhado de Harman seria assassinado, o que fez com que ele se arrependesse de sua oposição em Salamia, ao ponto de se tornar missionário do Imam Abudllah al-Mahdi Billah, o fundador do Califado Fatímida.

Muito embora Harman Qarmat tenha se arrependido de sua oposição aos líderes de Salamia, o grupo dissidente por ele iniciado manteve o nome de Carmatas. Seus “sucessores” se estabeleceram na Síria, enquanto outro tentaram ocasionar revoltas no Iraque e na Arábia, mais especificamente na região do Bahrein. No ano 900 (ou 287 da Hégira), os carmatas se expandiram pela região de Kufa (Iraque), infligindo vários reveses nas forças centrais do califado Abássida (DOMINIQUE, 2008).

Na época em que o Bahrein era o principal reduto carmata, o território compreendia a parte leste da Arábia e as pequenas ilhas que hoje também fazem parte do estado moderno do Bahrein. Nesses anos, o califado Abássida enfrentava vários problemas e confrontos além dos causados pelos carmatas, como a própria revolta dos escravos Zanj. Com essa revolta em Kufa, os Zanj perturbaram o controle direto de Bagdá, oportunidade perfeita para atual líder carmata, Abu Said al-Jannabi, capturar a capital do Bahrein em 899 (tanto Hajr como al-Hasa), sendo agora a mais nova capital de seu “estado comunal”, onde tentou estabelecer um governo um tanto quanto utópico.

Durante o reinado do califa al-Muktafi (902-908), os carmatas se tornaram cada vez mais ameaçadores ao governo, evidenciando ainda mais o distanciamento com os líderes de Salamia, futuros criadores do califado Fatímida, ou mesmo o movimento originário do próprio Harman. Nem mesmo com os próprios rivais do Bahrein eles possuíam ligação mais.

Suas insurreições contra o califado foram prontamente derrotadas, porém entre 901-903 uma delas conseguiu um certo sucesso na Síria, ocupando várias cidades importantes (como a própria Damasco), mas seria posteriormente suprimida pelos Abássidas mais uma vez. Tais rebeldes (tanto da Síria quanto do Iraque) possuíam um certo apoio dos camponeses locais, dependendo muito do apoio dos beduínos também.

O movimento continuou a ameaçar a hegemonia dos abássidas por mais alguns anos, sendo que qualquer xiita poderia ser acusado de cumplicidade com os carmatas, e consequentemente preso ou morto. Porém, apesar de tudo, o califado ainda tinha força o suficiente para manter o controle sobre as áreas centrais das províncias que dominava, sendo esse o último triunfo dos abássidas sobre os rebeldes, muito embora eles tenham sido por algum momento a força mais poderosa do Golfo Pérsico e do Oriente Médio, chegando a coletar impostos de Bagdá e dos Fatímidas.

Foi justamente esse poderio adquirido pelos carmatas que seria a causa da maior humilhação sofrida pelos Abássidas: o roubo da Pedra Negra da Caaba.  No ano de 930 CE os carmatas cometeram um ato que sujaria sua imagem para sempre, tido como imperdoável por gerações e gerações de fiéis muçulmanos.

Enquanto o líder carmata Abu Tahir al-Jannabi lançava ataques devastadores por toda a região da Arábia, chegando a quase saquear Bagdá no ano de 927, decidiu atacar também Meca durante o período do Hajj, algo considerado como uma “superstição” para a seita. Chegando lá, tal ataque culminou em um grande massacre de peregrinos, sendo os corpos atirados dentro do poço sagrado de Zamzam, uma terrível profanação de um dos locais mais importantes no Islã. O número de mortos normalmente é narrado como chegando aos milhares.

Não satisfeitos, roubaram a Pedra Negra contida na Caaba e levaram para sua nova capital do Bahrein, al-Hasa. Agora, pela primeira vez desde o nascimento da religião islâmica, um dos pilares da fé teria de ser interrompido pelo período de algum tempo. Tal duração sem o Hajj foi de cerca de oito anos, uma vez que os peregrinos se sentiam ameaçados e com medo de um novo ataque por parte dos carmatas, que agora controlavam uma parte significativa da Arábia, colocando os Abássidas de joelhos.

De acordo com o Imam al-Juwayni, a Pedra Negra só seria devolvida 23 anos depois, em 952 d.C. Os carmatas mantiveram a Pedra Negra como uma espécie de “resgate”, forçando assim os Abássidas a pagar uma enorme quantidade para que ela pudesse ser retornada ao seu local de origem. O califa Fatímida al-Mansur também fez um pedido formal para que pudesse ser devolvida, até que a mesma foi embrulhada e enviada de volta para o local de que foi roubada e de seu pertencimento.

Após décadas de inatividade carmata, a ordem foi restabelecida no Bahrein, e sua república destruída, sendo muito provável que os próprios camponeses (aliados no começo do movimento) ajudaram a desmantelar a seita sacrílega:

À medida que o pagamento de tributos foi progressivamente interrompido, seja pelo governo subsequente no Iraque ou por tribos árabes rivais, o estado Carmata encolheu para dimensões locais. O Bahrein se separou em 1058 DC sob a liderança de Abu al-Bahlul al-Awwam, que restabeleceu o Islã ortodoxo nas ilhas. Revoltas semelhantes removeram Qatif do controle carmata quase ao mesmo tempo. Privados de todas as receitas externas e do controle das costas, os carmatas se retiraram para sua fortaleza no oásis Hufuf. Em sua dinastia foi finalmente desferido um golpe final em 1067 pelas forças combinadas de Abdullah bin Ali Al Uyuni, que com a ajuda de contingentes do exército Seljúcida do Iraque, sitiou Hufuf por sete anos e finalmente forçou os Carmatas a se renderem (LARSEN, 1984, p. 64).

Sendo substituída no Bahrein e em partes da Arábia pela dinastia Uyunida e provavelmente pelo califado Fatímida (ou simplesmente desaparecendo do mapa) no Irã e Iraque mais tarde, os carmatas não são mais mencionados após a metade do século XI. Hoje são lembrados tão somente como opositores do califado Abássida, que chegaram a cometer diversas profanações nos territórios sagrados do Islã.

NOTAS

[1] Jafar al-Sadiq havia nomeado seu segundo filho, Ismail ibn Jafar, como sucessor do Imamato. Acontece que Ismail faleceu antes do pai, ocasião em que Muhammad ibn Ismail (filho mais velho de ibn Jafar) foi reconhecido como Imam.

[2] Na época da morte de Ismail ibn Jafar, muitos também se recusaram a aceitar que o mesmo havia falecido, vindo inclusive a considerar que ele estava escondido. Contudo, o grupo proto-Ismaelita aceitou seu falecimento, sendo esse o momento onde Muhammad ibn Ismail foi aceito como Imam.

[3] Vale lembrar que o Mahdi é uma figura aceita tanto por sunitas quanto por xiitas.

BIBLIOGRAFIA

HODGSON, Marshall Goodwin Simms. The Venture of Islam. Vol. 1. The University of Chicago Press, 1974.

GLASSÉ, Cyril. The New Encyclopedia of Islam. Walnut Creek CA: AltaMira Press, 2008.

RAHMAN, Mohanned. The Qarmatians: The world’s first enduring communistic society, 2014.

ALNOGAIDAN, Mansour. Qarmatians, Assassins, and Political Islam. Mesbar Center, 2017.

SOURDEL, Dominique. “The Abassid Caliphate” em  HOLT, P.M.; LAMBTON, Ann K.S.; LEWIS, Bernard. The Cambridge History of Islam. Vol. 1A. Cambridge University Press, 2008.

LARSEN, Curtis E. Life and Land Use on the Bahrain Islands: The Geoarchaeology of an Ancient Society. University Of Chicago Press, 1984.