Em 2015, o então primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu disse publicamente que “a intenção de [Adolf] Hitler não era matar os judeus” mas ele foi a isso “convencido” pelo Grão-Mufti de Jerusalém e da Palestina, Hajji Amin al-Husseini, que se encontrou com o líder alemão em 1941 para discutir uma possível cooperação e até mesmo futura aliança da comunidade muçulmana com a Alemanha Nazista contra o imperialismo anglo-francês e contra o comunismo, que impunham seu domínio sobre a comunidade dos fiéis do Islã.

Como era de se esperar, a declaração de Netanyahu era absolutamente falsa (como a maioria de suas declarações), por dois motivos: o primeiro, é que a transcrição da conversa refuta essa absurda fala; o segundo, é que o Mufti palestino não tinha absolutamente nenhum motivo para sequer pensar na aniquilação dos judeus (que já tinha sido sugerida e adotada meses antes em Wansee por Heinrich Himmler e outros oficiais da Schutz-Staffel) – mas tinha todos para tentar aliar-se aos alemães – que é justamente o que iremos explorar neste texto.

Afinal, o que levou uma alta autoridade religiosa do Islã a encontrar-se com um dos mais cruéis líderes políticos da história da humanidade e lhe propor amizade? Estariam os árabes e muçulmanos numa espécie de conspiração antissemita, como sugeriu Netanyahu? Tal hipótese não poderia ser considerada crível nem pela mais ignorante das mentes: o contexto histórico e seus antecedentes dão as respostas que queremos. Antes de entenderemos o que levou à reunião entre o Mufti e o Führer, precisamos entender duas coisas: quem é o Mufti e quais são foram suas motivações e qual era a relação da Alemanha – não apenas a Nazista – com o Islã.

Como todos nós certamente aprendemos nas aulas de História mas custamos a lembrar, na Primeira Guerra Mundial o Império Alemão aliou-se ao Império Turco-Otomano contra os Aliados e, junto dos Austro-Húngaros e Búlgaros, formaram o “Eixo Central”. Acontece que tanto o Império Otomano quanto o Austro-Húngaro quanto o Reino da Bulgária detinham populações substanciais de muçulmanos: o Império Otomano era, por excelência, o “defensor da fé” máximo do Islã, com o seu Sultão ostentando também o título de Califa, que só foi abolido em 1921, três anos depois do fim da Primeira Guerra e da dissolução do Império. Em virtude dessa aliança, concretizada anos antes do início do conflito, o Império Alemão começou a desenvolver um certo interesse no Islã e no Oriente Próximo. O que era inicialmente um interesse estatal e diplomático, encarnado pelo projeto (nunca concretizado) da “Ferrovia Berlim-Bagdá” para levar petróleo do Oriente ao ascendente Império Alemão logo desaguou numa tendência islamófila e orientalista por parte da nobreza e da burguesia alemã, que não raramente iam passar suas férias em família no Bósforo ou no Egeu.

Essa tendência e essa política de amizade turco-germânica continuou mesmo frente à derrota das Potências Centrais na Primeira Guerra e a proclamação da República de Weimar, na Alemanha, e da República Turca, na atual Turquia, dos escombros do Império Otomano. Enquanto a Turquia lutava para se reerguer e projetar uma nova identidade após a dissolução do seu meio milenar Império, seus ex-domínios no Oriente Médio, os países árabes, eram divididos e espoliados pelas grandes potências vencedoras: à França coube a Síria, o Líbano e Norte da África e, à Grã-Bretanha, a Palestina, a Jordânia, a Península Arábica, o Egito e o Iêmen, enquanto esta última apoiava a casa dos Al-Saud na fundação do Reino da Arábia Saudita e instituíam uma monarquia fantoche no Iraque – país que eles mesmos desenharam – para atende às suas demandas petrolíferas.

Acontece que, antes mesmo disso tudo acontecer, os britânicos já tinham planos para a região: em 1917, quando passaram a ocupar militarmente a região da Palestina e Líbano, o Ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, Lorde Balfour, promulgou a Declaração de Balfour, uma carta aberta ao então representante da comunidade judaica britânica, Lorde Rotschild, onde assegurava o comprometimento oficial do governo britânico em criar uma “pátria judaica” na região da Palestina.

A reação da comunidade judaica foi vibrante, mas a dos palestinos árabes, cristãos e muçulmanos (que formavam cerca de 90% da população da Palestina), não foi boa. Os árabes, que desde o final do século passado viram a quantidade de imigrantes judeus do Leste Europeu que fugiam da pobreza, das perseguições e dos pogroms (assassinatos em massa feitos por populares e não raramente instigados pelo governo russo e pelas igrejas Católica e Ortodoxa) aumentar cada vez mais em direção à Palestina, tendo-os recebido de braços abertos, agora no entanto começaram a ver os imigrantes com suspeita e até mesmo hostilidade: primeiro, eles vêm até nós, logo em seguida os ocupantes europeus declaram seu interesse em criar, em nossa terra, um estado para os mesmos. É isso mesmo?

Isto levou, em 1918, após a comemoração do aniversário de um ano da Declaração de Balfour, a Associação Cristã-Muçulmana da Palestina, encabeçada pela figura influente de Musa Kazim al-Husayni Pasha, a enviar uma carta às autoridades britânicas do então instituído “Mandato Britânico da Palestina” (que incluía a Palestina e a Jordânia):

“Nós pudemos notar ontem uma grande multidão de judeus carregando bandeiras e tomando as ruas gritando palavras que machucam os sentimentos e ferem a alma. Eles pretendem abertamente que a Palestina, que é a Terra Santa de nossos patriarcas e o cemitério de nossos ancestrais, que foi habitada por árabes por longas eras, que a amaram e por ela morreram defendendo-na, seja agora um país para eles... nós árabes, muçulmanos e cristãos, sempre simpatizamos com os judeus perseguidos e seus infortúnios em seus países... mas há uma grande diferença entre a simpatia e a aceitação de tal país... subjugando-nos e dizendo-nos o que fazer.” [1]

Como podemos ver, o clima geral era de apreensão e desconfiança não apenas com o futuro que os britânicos poderiam dar à nação Palestina, mas também com a crescente imigração de judeus que, agora, começava a ser vista como ameaça. Tais tensões e incertezas culminaram, em 1936, na Revolta Árabe da Palestina, onde os palestinos muçulmanos tentaram libertar-se do jugo britânico, mas encontraram oposição não apenas da Coroa, mas de milícias judaicas como o Haganah (que viria a se tornar as Forças de Defesa de Israel) e o Irgun. É nesse contexto que o Mufti de Jerusalém, Amin al-Husseini, faz sua primeira aparição “histórica”, ao apoiar e dar sua bênção para a a jihad contra os britânicos e seus aliados. A rebelião durou, curiosamente, até 1939, quando os rebeldes foram definitivamente derrotados e al-Husseini, exilado.

Desse modo, é completamente compreensível que al-Husseini (e outros palestinos) vissem nos judeus e na imigração judaica um inimigo a ser combatido. Foi exatamente esse o ponto da reunião entre o Mufti e o Führer: assegurar que nenhum judeu mais seria mandado para a Palestina, além de tentar formar uma frente anticolonial contra o Império Britânico, incitando novamente os árabes à revolta, evitando, no processo, o estabelecimento do tão temido estado judaico.

Por outro lado, as motivações do Führer para a reunião eram as seguintes: desde o início da Operação Barbarossa no mesmo ano, os ânimos dos oficiais alemães estavam altos e grandemente confiantes numa rápida vitória sobre o mal-preparado e pobremente equipado exército soviético. Desse modo, numa vitória tido como certa, o Reich Nazista teria sob seu domínio (como já tinha, na Crimeia e em Bakhchisarai) várias áreas de população muçulmana, além de ter sobre seu domínio também os bósnios muçulmanos da Iugoslávia e, sob o domínio de seu aliado, a Itália, a Líbia, a Tunísia e a Etiópia. Assim, tornava-se vital para o Reich – até mesmo por questões logísticas, uma vez que haviam bolsões de resistência, os chamados partisãos, nos territórios conquistados nos Bálcãs e Leste Europeu – angariar mais apoio, tanto de legitimidade quanto de recrutas, e eles encontraram no Islã, um tradicional aliado e objeto de flerte alemão desde tempos imperiais.

Assim, podemos ver que havia um motivo em comum aos dois em sua reunião: pragmatismo. A Alemanha, que à época guerreava contra a Grã-Bretanha e já havia sido aliada dos Otomanos, era uma aliada natural à causa independentista árabe, especialmente palestina, enquanto ambos – por motivos diferentes – viam nos britânicos, judeus e comunistas inimigos em comum. Podemos pensar esse movimento alemão em direção a uma aliança com o Islã como uma continuação e desenvolvimento das políticas e da islamofilia da outra Alemanha, a Imperial, enquanto que para Husseini e os muçulmanos árabes, tal aliança poderia concretizar o sonho de independência árabe palestina dos imperialistas britânicos. Se o Mufti soubesse o que teria lugar meses depois desse encontro, é muito provável que talvez ele nunca tivesse ido à Berlim.

Bibliografia

  • MOTADEL, David (2014). Islam and Germany’s War. The Belknap Press of Harvard University Press.
  • Prova dos factos: Netanyahu não tem razão. Eis a gravação da conversa entre o Grande Mufti e Hitler. Manuel Louro, 2015 – Observador.pt