Como al-Ghazali deu origem aos Almóadas
10/06/2020A seguir, outro pequeno trecho que traduzi do Buyutat Fas al Kubra pelo historiador andaluz Ismail ibn al Ahmar do século XIV (f. 1407). Achei essa passagem em particular interessante porque reflete a maneira pela qual a lenda do relacionamento entre o teólogo ashari e mistico Abu Hamid al Ghazali (f. 1111) e o fundador do movimento almóada, Muḥammad Ibn Tumart (f. 1130) foi desenvolvida. A narrativa de Ibn al Ahmar, escrita no século XIV, mostra que quase três séculos após a ascensão dos Almóadas, o conto dessa relação continuou a ter ressonância no Ocidente islâmico. Dois elementos que achei particularmente interessantes foram o elo entre os Almorávidas queimando as obras de al Ghazali e a invocação deste último contra eles, por um lado, e a decisão consciente de al Ghazali, que provavelmente nunca conheceu Ibn Tumart, de usar seu aluno excessivamente zeloso como seu agente para provocar a destruição da comunidade almorávida. Isso é especialmente interessante à luz de outros relatos históricos que sugerem que não foi outro senão al Ghazali (e seu aluno Abu Bakr al Turtushi) que desempenhou um papel importante na legitimação do estado Almorávida em primeiro lugar. Além disso, foi bastante interessante ver um papel tão proeminente dado às ciências ocultas neste texto, com ênfase no fato de Ibn Tumart receber instruções especiais neste corpo de conhecimento por al Ghazali.
Tradução
‘‘Algumas pessoas alegaram que a razão da queda do reino dos Lamtuna (ou seja, os Almorávidas) foi a famosa invocação que Abu Hamid al Ghazali havia feito contra eles. Quando este escreveu seu livro intitulado Ihya’ [‘Ulum al-Din ] e o mandou para a Grande Mesquita de Córdoba, os eminentes juristas de Córdoba debateram e discutiram sobre ele, especialmente em relação à inclusão no trabalho de hadiths claramente fabricados e sem fundamentos. Eles concluíram que o trabalho era uma fonte de orientação equivocada para os muçulmanos e que seria melhor queimá-lo.
Como os juristas e estudiosos religiosos haviam concordado com esse curso de ação, o trabalho foi queimado em Córdoba. Quanto a Ibn Hamdin, o juiz principal (qadi) de Córdoba, ele chegou ao ponto de declarar o autor da obra (ou seja, al Ghazali) como descrente. Os eruditos religiosos de Córdoba escreveram ao [emir almorávida] Ali Ibn Yusuf [1106-1143] exigindo que ele ordena-se que a obra fosse queimada em toda al-Andaluz e no norte da África. Depois de receber esta carta, que afirmou que todos esses estudiosos religiosos concordaram que Ihya’ de al Ghazali deveria ser queimada, ele ordenou que o trabalho fosse queimado em todas as terras andaluzas e norte-africanas.
Logo depois, a notícia desses eventos chegou a Abu Hamid al Ghazali em Bagdá. [Para confirmar esta notícia], al Ghazali perguntou a um homem de Córdoba, que estava visitando Bagdá na época, sobre a veracidade das notícias de que seus livros haviam sido queimados. Então, esse homem lhe contou sobre a oposição e destruição do seu livro e sobre aqueles que o declararam incrédulo.
Ao ouvir isso, al Ghazali levantou as mãos em súplica e disse: “Ó Senhor, destrua o reino deles como recompensa por rasgarem meu livro; erradique sua dinastia como recompensa por sua queima; e conceda a posse de Córdoba aos descrentes como recompensa por seu juiz principal declarar-me um incrédulo.” Naquele momento, o Mahdi [Ibn Tumart], presente na classe de Abu Hamid al Ghazali, disse: “Isso (isto é, a queda do estado almorávida) acontecerá pela minha mão?” Al Ghazali afirmou que esse seria realmente o caso. Como resultado dessa súplica, os Almorávidas alegaram que a conquista de Córdoba dos muçulmanos e o domínio dos cristãos sobre a cidade foi resultado direto da invocação de al Ghazali contra eles. A conquista cristã de Córdoba ocorreu em 634 AH [1236 DC].
Posteriormente, al Ghazali levou o Mahdi sob suas asas e ensinou-lhe as várias ciências, incluindo cronometragem (al-tawqit wa al-ta’dil), astronomia (al-hay’ah), as propriedades ativas das ervas (khuwas al ashab), governança divina (al tadbir), metalurgia (al ma’adin), ciências matemáticas e geométricas (al-ashkal), geomancia (‘ilm al khat), medicina (al tibb), filosofia (al hikmah), quadrados mágicos e talismãs (sina’ah al jadwal wa al talasim), letrismo (sir al huruf), clarividência (‘ilm al hidthan) e as várias ciências mágicas (‘ulum al sihr), tornando-o um especialista em cada uma delas. Ele então ordenou que ele voltasse ao norte da África.
Quando [Ibn Tumart] retornou ao norte da África, ele tentou retificar práticas repreensíveis, o que levou Ibn Nasir [uma das autoridades locais] a buscar sua prisão, mas ele fugiu para Bijaya. As notícias de Ibn Tumart chegaram finalmente a Ibn Hammad, o governador do emir almorávida Ali Ibn Yusuf, de Ifriqiyah [atual Tunísia], que tentou prendê-lo. Mas mais uma vez conseguiu escapar as autoridades e chegou a Malalah, onde conheceu Abdul Mu’min, com quem ficou bastante impressionado. Ele então fugiu de Wansharish para Fez e de lá para Marraquexe. Quando as notícias disso chegaram a Ali Ibn Yusuf, ele reuniu os estudiosos religiosos para envolvê-lo (Ibn Tumart) na disputa teológica. Esses estudiosos religiosos afirmaram que Ibn Tumart deveria ser morto, mas alguns dos ministros do emir almorávida pediram que ele não o fizesse. No Ramadan de 515 H. [Novembro de 1121 dC], o Mahdi fugiu para sua terra natal nas montanhas Hargha, na região de Sus. Ele reuniu as tribos berberes ao seu redor e afirmou que ele era o Salvador Guiado Corretamente (al Mahdi) sobre quem o Profeta de Allah ﷺ disse: “Em verdade, ele deve preencher este mundo com justiça, assim como foi preenchido com injustiça.”
Ele então os chamou a prometer lealdade a ele debaixo de uma alfarrobeira, assim como os Companheiros haviam feito com o Profeta de Allah ﷺ. A maioria dos que juraram lealdade a ele era de tribos das regiões Sus, Hargha e Tinmal, como Hintatah, Gedmiwah, Haskurah e Sanhajah. Ele então ordenou que se preparassem para a guerra (dando inicio ao Califado Almóada (ar, al-Muwahiddun, ou “Os Monoteístas).
[Ismail ibn al Ahmar, Buyutat Fas al Kubra (Rabat, 1972), pp. 33–34]