O Cerco de Vienna de 1683 foi um divisor de águas na história do Mundo Islâmico ocidental e, consequentemente, para inúmeros países da Europa Central que, finalmente, poderiam respirar aliviados com o desmanche da mais recente onda de avanços otomanos; uma onda que poderia ter significado a queda da Áustria Habsburga e, consequentemente, ao surgimento de uma Alemanha Otomana e uma nova fronteira redefinida da antemurale christianitatis.

A derrota foi impactante para os otomanos, sendo a última vez que eles se lançariam em expansionismo agressivo. Ela também alterou a forma como o Império iria interagir com os seus vizinhos europeus, resultando em diversas consequências sociais, intelectuais e tecnológicas para o Império Islâmico tri-continental, que agora se fechava dentro de seu próprio orbis e passaria a estagnar enquanto a Europa Cristã, cada vez mais dinâmica, se submetia à sucessivas mudanças e transformações intelectuais, sociais e políticas.

Cerco de Buda de 1686, com o exército de alívio otomano no canto inferior (arcos ainda eram utilizados tanto por otomanos quanto por tártaros). À esquerda a ilha de Margarida. As cidades de Buda (direita) e Peste são mostradas na parte mais superior da pintura 

O Cerco de Vienna de 1683 foi um divisor de águas na história do Mundo Islâmico ocidental e, consequentemente, para inúmeros países da Europa Central que, finalmente, poderiam respirar aliviados com o desmanche da mais recente onda de avanços otomanos; uma onda que poderia ter significado a queda da Áustria Habsburga e, consequentemente, ao surgimento de uma Alemanha Otomana e uma nova fronteira redefinida da antemurale christianitatis.

A derrota foi impactante para os otomanos, sendo a última vez que eles se lançariam em expansionismo agressivo. Ela também alterou a forma como o Império iria interagir com os seus vizinhos europeus, resultando em diversas consequências sociais, intelectuais e tecnológicas para o Império Islâmico tri-continental, que agora se fechava dentro de seu próprio orbis e passaria a estagnar enquanto a Europa Cristã, cada vez mais dinâmica, se submetia à sucessivas mudanças e transformações intelectuais, sociais e políticas.

Para os aliados cristãos dos otomanos, como a nobreza protestante húngara e eslovaca, o sucesso otomano garantia a manutenção das leis e dos costumes de seus povos, além da possibilidade um país (Hungria e Eslováquia formavam uma única entidade política na época) tolerante à grande massa de calvinistas e luteranos que lá viviam, apesar da perseguição progressiva orquestrada a partir de Viena. O fim da pressão otomana sobre os Habsburgos significava - e efetivamente se concretizou - que a dinastia vigorosamente católica poderia aplicar sem quaisquer riscos políticos a abolição das liberdades religiosas da Hungria Real, nome dado à parte noroeste do reino que os muçulmanos não conseguiram conquistar; sendo as outras partes a Hungria Otomana, que consistia na maior parte do reino, ao Sul, e o Principado da Transilvânia, que além do Voivodado incluía alguns condados húngaros ao Leste (o Partium). 

Fotografia aérea mostrando o perímetro do Castelo de Buda, com destaque para a Matthias Church. Curiosamente, os otomanos deram pouca importância ao Palácio de Buda, que permaneceu abandonado durante todo esse período. Na época do cerco de 1685, o castelo era utilizado como paiol de pólvora pelos otomanos e acabou explondido durante um dos vários bombardeios à cidade. Apenas a catedral e algumas estruturas originais sobreviveram à explosão.

A derrota otomana, como a Dinastia Habsburgo foi rápida em perceber, não apenas implicava que a Hungria Real e o Arquiducado da Áustria estavam livres do expansionismo otomano, mas que era possível capitalizar em cima do desastre turco para reaver, em grandes porções, terras da Hungria Otomana de volta para domínio cristão; ou melhor dizendo, domínio Habsburgo Católico, já que, discutivelmente, se poderia dizer que Viena negligenciou a emancipação do reino húngaro em cerca de cem anos, dado que isto resultaria em um reino forte, independente e fora do alcance das pautas absolutistas e contrarreformistas da família. 

Detalhe do Castelo e Palácio de Buda. Ilustração do Cosmographie Universalis de Sebastian Munster, 1530.

Um dos principais objetivos de Leopoldo I Habsburgo, arquiduque da Áustria, sacro-imperador romano-germânico, rei da Boêmia e rei da coroa da Hungria, era a cidade de Buda, antiga capital do Reino Húngaro desde a baixa idade média. 

Embora se tradicionalmente veja a batalha de Mohács (1525) como o marco tradicional da queda da Hungria e o início da supremacia otomana, Buda e as cidades vizinhas de Peste e Óbuda - mais tarde incorporadas como a cidade de Budapeste - só foram cair em domínio otomano em 1541, como resultado de complexa trama diplomática entre a dinastia habsburgo e uma linha de monarcas nativos pela sucessão do trono. O rei Janos (João) II Sigismundo Zápolya, ainda infante e se valendo do direito do seu pai, o rei Janos Sigismundo I, controlava a Hungria como um vassalo otomano - em uma situação similar ao Principado da Sérvia Morávia após a batalha de Kosovo, mas teve seu direito ao trono contestado pela dinastia Habsburgo, que trouxe de Viena um gigantesco exército para cercar a capital, Buda, e adicionar o reino às suas possessões. À pedido de Janos II, os otomanos enviam um exército para aliviar o cerco, que tratou de causar perdas pesadas contra os sitiantes. Apesar da vitória para a facção nativa, os otomanos rapidamente perceberam que poderiam se aproveitar da fraqueza dos sitiados e acabaram dominando a própria Buda: infiltrando janízaros dentro da cidade e depois tomando controle desta por dentro. Após um acordo com os regentes do reino e o rei-criança, Buda passou a operar como sede administrativa da província otomana da Hungria e residência do Paxá de Buda, governador provincial sujeito ao Grão Vizir (apesar das fontes ocidentais se referirem ao detentor do título como “Grão-Turco”, pessoas de diferentes etnias e até de religiões diferentes ocuparam o cargo).

A catedral de Buda e algumas igrejas importantes foram convertidas em mesquitas, mas não houve perseguição contra a população católica da cidade. Ironicamente, seria o Paxá de Buda, ainda em 1540, a recusar um pedido formal da população católica da cidade para perseguir a incipiente comunidade protestante que se formava, inaugurando uma era de tolerância religiosa que não aconteceu e não poderia ter acontecido sob governos cristãos anteriores.

Buda e Peste em 1617, no auge do governo otomano. 

Buda otomana na década de 1686, pelo holandês Jacob Peeters. É possível notar a extensão das muralhas agora cobrindo partes anteriormente desprotegidas.

Na altura do Cerco de 1686, Buda não teve um crescimento populacional se comparado com o estado da cidade no início do século XVI; onde alguns historiadores veêm estagnação econômica, outros procuram ou também explicam a não-expansão da cidade em virtude da grande emigração voluntária dos cidadãos para a Hungria Real, na ocasião da ocupação otomana, que causou um golpe forte na cidade. Para compensar as perdas, Buda foi repovoada com turcos, povos balcânicos, ciganos e com uma vibrante comunidade judaica; na ocasião do cerco, os judeus decidiram pegar em armas para defender a cidade dos invasores cristãos, tendo em consideração que a reconquista cristã resultaria na sua exploração econômica e em perigos potenciais de perda de liberdade religiosa, perseguição e até de massacres ou expulsão; que como veremos mais tarde, foi precisamente o que se seguiu.

Representação mais antiga de Buda, da Crônica de Nuremberga, 1493. Note o castelo e o palácio de Buda à esquerda (a gravura não mostra com precisão a elevação do terreno).

Com relação à cidade, conforme a evidência artística demonstra, Buda nunca foi uma cidade particularmente impenetrável em termos defensivos: Peste, a pequena cidade do outro lado do grande rio Danúbio, possuía uma satisfatória muralha, enquanto Buda tinha toda a sua margem de rio exposta e muralhas menos impressionantes. O castelo de Buda, porém, se erguia em terreno elevado e era bem fortificado, razão pela qual o exército Habsburgo da década de 1540 teve capacidade de tomar a cidade de Buda, mas não o castelo de Buda. Talvez a mediocridade relativa de suas defesas seja justificada pelas pouquíssimas vezes que a cidade foi sitiada; antes dos Habsburgos, no século XVI e depois do saque mongol, no século XIII, a única ameaça sofrida pela cidade foi a tentativa de cerco do pretendente Louis de Anjou, no início do século XIV, mas rapidamente abortada pela aproximação de um exército inimigo; apesar do fracasso de Louis, os Anjou ainda assim estabeleceram uma dinastia na Hungria, de forma que o controle de outros enclaves era taticamente mais importante que a própria capital.

O Cerco de Buda de 1541. 

Na altura de 1686, porém, os otomanos já tinham tratado de cobrir todo o perimetro ribeirinho da cidade com muralhas, as muralhas pré-existentes da seção terrestre foram modernizadas e forticalizações adjacentes foram erguidas; até a ilha Margarida, no meio do danúbio e logo após à velha cidade, hoje conhecida por ser uma área verde, também se encontrava fortificada. 

Para responder às defesas melhoradas de Buda, Peste e Óbuda, os Habsburgos levantaram um imenso exército multinacional, estimado entre 65 e 100 mil homens advindos da Alemanha, Hungria, Croácia, Países Baixos, Inglaterra, Espanha, Boêmia, Itália, França, Borgonha, Dinamarca e Suécia. Tal tamanho e proveniencia diversa foi relativamente facilitada pelo apoio papal à guerra, com a formação de uma Liga Santa (uma aliança entre países vagamente análoga a uma Cruzada) contra os inimigos da Igreja. Os otomanos contavam com menos de 7 mil homens, dos quais eram 3 mil janízaros, a elite da infantaria otomana, mil soldados de cavalaria, mil judeus e dois mil homens recrutados da própria cidade, comandados por oficiais muçulmanos albaneses e bósnios, segundo o costume otomano.

Apesar da discrepância numérica, a doutrina da prevalência da defesa em cercos, ainda válida mesmo com os avanços tecnológicos da época, ainda significava que, em circunstâncias realistas, tomar Buda por assalto resultaria em um número significativo de baixas por parte dos sitiantes. 

Deve-se salientar ainda que os habsburgos já tinham experimentado a derrota dois anos antes, com o cerco de Buda de 1684, na mesma campanha. Apesar do progresso vitorioso em outros enclaves, incluindo a ocupação não-resistida de Peste e a vantagem numérica (34 mil soldados habsburgo contra 7 mil turcos), a campanha foi um fracasso. Os bombardeios dos canhões às muralhas se iniciaram em 14 de junho de 1684, aniversário de início do cerco de Viena; no dia 19, o exército ocupou a parte baixa da cidade, mas se viu insuficiente para manter a ocupaçåo; o que resultou na decisão dos oficiais em queimar as casas da zona conquistada; por conta de erros táticos, doenças, baixas e derrotas nos conflitos entre os exércitos de reforço de ambos os lados, os habsburgos sairam derrotados do cerco com mais da metade do exército morto. 

Apesar da derrota anterior não ter impedido os Habsburgos de desejar a cidade, o suficiente para arcar com um exército ainda maior, ela havia mostrado que os turcos estavam longe de serem incompetentes na defesa dos seus territórios. Isso ficou mais claro quando, no primeiro grande assalto, do dia 27 de julho de 1686, os habsburgos foram repelidos com baixas de 5 mil homens. Um exército otomano de reforço chegou à cidade em meados de agosto, comandados pelo próprio Grão-Vizir e estacionados entre a cidade e os sitiantes. Apesar disso, os habsburgos conseguiram forçar sua entrada na cidade no dia 2 de setembro, e o comandante otomano dentro da cidade acabou morto em ação. Só restava ao exército de alívio observar enquanto uma parte do exército habsburgo os impedia de confrontava a outra parte que adentrava na cidade em fúria zelosa, quase ecoando o fanatismo sanguinolento dos tempos das Cruzadas.

A fúria dos sitiantes é descrita por várias fontes cristãs da época, massacrando civis turcos independente de sexo ou idade. Dos cerca de 5 mil turcos que habitavam a cidade, mais de três mil turcos foram massacrados, o resto sobrevivendo apenas por intervenção de alguns dos nobres católicos, que conseguiram controlar melhor os seus homens para capturar os turcos para tê-los como escravos ou para negociar o resgate dos mais ricos: o conceito de “ser o melhor homem” não era exatamente vigente no pensamento cristão da época.

A comunidade judaica de Buda, que contava com 3 mil judeus no seu auge, foi quase virtualmente aniquilada: quase metade foi massacrada e centenas foram vendidos como escravos ou, no caso dos mais ricos, encarcerados para resgate. Cerca de 6 mil muçulmanos, a maioria não-turca, também foram vendidos como escravos (os mais ricos foram mantidos para resgate). O saque e pilhagem afetou principalmente as casas, templos e propriedades dos judeus. Após a conquista da antiga capital, católicos e até mesmo os protestantes húngaros entraram em uníssono pela expulsão completa dos judeus da Hungria. Com o fim do governo otomano na Hungria, a comunidade judaica do país se retirou junto com os turcos. Além da restauração das antigas igrejas, todas as mesquitas e sinagogas de Buda foram destruídas ou incendiadas, e uma queima generalizada de livros se seguiu. 

Os corpos dos soldados cristãos foram enterrados, enquanto os dos judeus e dos turcos foram simplesmente arremessados no rio Danúbio aos milhares, tingindo o largo rio de rubro e o poluíndo com miasma e pedaços de corpos humanos até seu deságue, na Ucrânia. Uma testemunha ocular da conquista da cidade, o médico alemão João Dietz de Bradenburgo, sintetizou muito bem todo o massacre:

“Não se poupou nem mesmo os bebês nos ventres das mães. Todos foram sentenciados à morte. Eu fiquei muito horrorizado com o que foi feito aqui. Os homens foram mais cruéis uns com os outros do que bestas selvagens”.

Vista de Buda da perspectiva oposta ao Danúbio, sendo a cidade contornada por rios de ambos os lados. Século XVII.

Na Europa Ocidental, a reação foi de comemoração, com festas, comemoração e fogos-de-artificio, como se a tomada de Buda fosse um fenômeno similar à batalha de Lepanto. O controle habsburgo sobre o país resultou no fatídico dia em que o parlamento húngaro em Pressburgo (Bratislava, Eslováquia) colocaria fim no regime tradicional de monarquia eletiva em prol de uma monarquia hereditária, e o absolutismo seria finalmente implementado. Futuramente, o Principado da Transilvânia, que pode manter sua autonomia e liberdade religiosa pelo balanço de poder entre turcos e austríacos, seria posto de joelhos. Como forma de compensar as perdas humanas da guerra e para estabelecer uma maioria numérica de católicos entre os súditos, colonos alemães foram trazidos das possesssões habsburgas, já purificadas da heresia protestante ainda no início do século. A última revolta húngara fracassaria e o povo permaneceria sob jugo austríaco até 1918. 

O dia 2 de setembro foi uma data de lamento para os otomanos e de júbilo para os cristãos. A cidade de Budin, como era conhecida pelos turcos, impressionou os muçulmanos de tal forma que se tornou a quarta maior cidade do Império, atrás apenas de Constantinople, Bursa e Edirne. O lamento de Gazi Asik Hasan, da Temesvar Otomana, tornou-se icônico:

“Não cante rouxinol, não cante, o verão tornou-se primavera

O choro do rouxinol perfurou o meu peito

É hora de comprar e vender rosas 

Nemce levou nossa tímida budin

Wudu não é permitido em fontes

Orações não são permitidas nas mesquitas

Lugares prósperos sempre foram arruinados

Nemce levou nossa tímida Budin

O Longo Bazar em Budin

Com a Mesquita do Sultão Ahmed no centro

Estrutura semelhante à Kaaba

Eu sou filha de Serdar em Budin

Eu sou os olhos da minha mãe e do meu pai

Eu sou um cordeiro alimentado em gaiola

Nemce levou nossa tímida Budin

A pólvora pegou fogo, nossas mentes estavam confusas

As mesquitas selatin incendiadas

Estruturas sempre estáveis foram incendiadas

Nemce tomou nossa Budin

Carregue o solo ensopado de sangue

O circassiano Alemdar é o cabeça dos mártires

Nemce tomou nossa tímida Budin

Três bolas lançadas do qibla

Foi durante um eclipe de quinta-feira

Na sexta, Budin foi tomada

Nemce tomou nossa tímida Budin”

Nemce (“mudo”) era um termo eslavo adotado pelos turcos para se referir aos alemães, ou em um sentido mais amplo, ao Sacro Império.

Bibliografia:

BODART, G. Militär-historisches Kriegs-Lexikon (1618-1905). 

WHEATCROFT, A. The Enemy at the Gate: Habsburgs, Ottomans and the Battle for Europe. New York: Basic Books, 2008.

FROJIMOVICS, K. KOMOROCZY, G. Jewish Budapest: Memories, Rites, History. 1999.

JAMES, R. Frommer’s Budapest and the Best of Hungary, 2010.

MILLER, J. Urban Societies in East-Central Europe: 1500-1700, 2008.

FRANK, B. A Travel Guide to Jewish Europe, 2001.

GARNIER, Edith. L'Alliance Impie. Editions du Felin, Paris 2008. 

PACH, Z. History of Hungary, 1526–1686. Editor: R. Várkonyi, Ágnes. Academy Publisher, Budapest, 1985.

LIPTAI, E. Military History of Hungary, 1. Zrínyi Military Publisher, Budapest, 1984