“Deu a louca no Califa”: O reinado de al-Hakim
14/10/2020Abu Ali Mansur, mais conhecido pelo seu nome real, al-Hakim bi-Amr Allah “O Governante pela Ordem Divina”, foi o sexto califa Fatímida e décimo sexto imã do xiismo Ismaelita.
Nascido no ano 985, al-Hakim foi o primeiro califa Fatímida nascido no Cairo. Filho do califa al-Aziz Billah (975-996), sua mãe ainda é objeto de debate entre os historiadores, havendo relatos distintos de quem ela seria desde os tempos de al-Hakim, como é o caso da crônica de al-Musabbihi.
Al-Hakim chegaria ao poder no ano de 996, quando tinha somente 11 anos. Nesse ano, seu pai al-Aziz Billah então califa do Império Fatímida faria uma visita na Síria, local governado pelos fatímidas e sob pressão dos Bizantinos. Logo no começo de sua viagem, ainda na cidade de Bilbeis (Egito) o califa adoeceu, ficando de cama, provavelmente por conta de problemas de pedras nos rins ou algo do gênero.
Quando o califa viu que esses eram seus últimos momentos nessa vida, chamou o Qadi1 Muhammad ibn an-Numan e o general Abu Muhammad al-Hasan ibn Ammar para que cuidassem de seu filho al-Hakim após sua partida. Após isso, al-Aziz falou diretamente com seu filho, em um relato posteriormente narrado pelo próprio al-Hakim:
“Eu o encontrei sem nada em seu corpo a não ser trapos e ataduras. Beijei-o e ele apertou-me contra o peito, exclamando:” Como lamento por ti, amado de meu coração “, e lágrimas escorreram de seus olhos. Disse: “Vá, meu mestre, e brinque, pois estou bem.” Obedeci e comecei a me divertir com esportes, como é comum entre os meninos, e logo depois Deus o levou para si. Barjawan [o tesoureiro] então se apressou em minha direção, e vendo-me no topo de uma árvore de sicômoro, exclamou: “Desce, meu menino; Que Deus proteja a ti e a todos nós. “Quando desci ele colocou na minha cabeça o turbante adornado com joias, beijou o chão diante de mim e disse:” Salve o Comandante dos fiéis, com a misericórdia de Deus e sua bênção. “Ele então me conduziu com aquele traje e me mostrou a todas as pessoas, que beijaram o chão diante de mim e me saudaram com o título de Califa.”2
No dia seguinte a delegação fatímida que ia em direção à Síria voltaria de Bilbeis para o Cairo. Chegando lá pouco antes da oração da tarde, somente no dia outro dia que o califa al-Aziz seria enterrado ao lado de seu predecessor, al-Muizz.
Seu Governo
Antes de al-Hakim atingir idade suficiente para ser o novo governante do Califado, seu pai delimitou que o eunuco Barjawan fosse o regente do Império. O qadi ibn an-Numan e o general ibn Ammar ficaram como responsáveis pela tutela de al-Hakim.
Houve muita expectativa sobre al-Hakim, o novo califa. Ele havia passado sua infância estudando literatura, investigando as ciências e observando os astros. Agora, sendo ele o novo líder da Dinastia Fatímida, procuraria expandir seu domínio por todo o mundo muçulmano, e quiçá o mundo inteiro também.
Seu império se expandia desde o Norte da África e Sicília até a Síria, abrangendo inclusive as cidades sagradas do Islã na Península Arábica. Entretanto, Cairo era sua terra natal, local que nutria certa afeição especial, podendo ser visto vagando pela cidade durante o dia ou até mesmo pela noite, por vezes sozinho.
Durante seu governo, as tensões entre xiitas e sunitas estavam cada vez mais complicadas. Assim, os maiores rivais da Dinastia comandada por al-Hakim foram justamente os Abássidas de Bagdá, que procuravam minar a influência do xiismo ismaelita dos Fatímidas.
Não bastasse as tensões externas, al-Hakim teria de enfrentar também problemas internos em seu território. Exemplo disso foi no próprio exército Fatímida, onde duas facções opostas se rivalizavam constantemente, os Turcos e os Berberes. Indo mais além, havia também um clima de tensão entre o califa e seus vizires (wasitas).
Um fato peculiar durante o reinado de al-Hakim foi o surgimento de uma seita ao redor do califa, os Drusos. Seu fundador, Muhammad ad-Darazi afirmava que al-Hakim era a própria encarnação de Deus. Após o desaparecimento do califa em 1021, os Drusos continuaram acreditando que al-Hakim era uma manifestação divina, interpretando seu desaparecimento como uma mera reversão a um formato não humano3. Ironicamente, o fundador do movimento seria executado sob as ordens do próprio al-Hakim em 1018.
Entretanto, apesar de seus conflitos externos e até mesmo internos, indo desde problemas com seu exército até uma seita que o considerava Deus, o comportamento de al-Hakim era instável e imprevisível, chegando ao ponto de restringir mulheres de sair de casa. Para ilustrar a loucura do governante Fatímida, o mesmo tentou impor uma lei que proibisse sapateiros de fazer sapatos para mulheres. Porém, além do problema com mulheres, al-Hakim também tinha outras excentricidades, proibindo o tradicional prato egípcio conhecido como mulukhiyya, sob a alegação de que era o favorito dos extintos califas omíadas de Damasco, perseguidores dos primeiros xiitas. Al-Hakim chegou a ordenar uma matança sistemática de cachorros no Egito.
Dentre as loucuras do califa, sua perseguição aos cristãos e judeus foi a mais insana de todas. Para os mesmos, al-Hakim foi um perseguidor implacável.
Durante o primeiro período de seu governo, al-Hakim foi mais intolerante em direção aos sunitas, chegando a ordenar em 1005 que os companheiros do Profeta e primeiros três califas, Abu Bakr, Omar e Uthman fossem amaldiçoados publicamente em rituais. Indo mais além, a própria esposa do Profeta Muhammad, Aisha, também seria amaldiçoada por negar o califado do sobrinho do Profeta, Ali, que segundo a doutrina xiita era o legítimo sucessor de Muhammad.
Muito embora em certo período de seu governo a tolerância com as minorias de religiões distintas fosse maior do que com os muçulmanos sunitas, um ano antes dos amaldiçoamentos públicos contra companheiros do Profeta, em 1004 o califa proibiria que os cristãos celebrassem a Páscoa e a Epifania do Senhor. Em 1005 al-Hakim ordenou que os cristãos e judeus seguissem a ghiyar, a “lei da diferenciação”, em que essas minorias religiosas teriam de usar vestes específicas, assim como no caso dos judeus em portar um sino e os cristãos uma cruz. No caso das mulheres cristãs e judias, as mesmas teriam de usar sapatos com duas cores diferentes, um preto e um vermelho. Essas disposições a respeito das minorias religiosas se mantiveram até 1014.4
Entre os anos 1007 e 1012 as coisas melhorariam para os sunitas, mas se tornariam cada vez mais hostis para o Povo do Livro5. Em 18 de outubro de 1009, o califa louco mandaria destruir o Santo Sepulcro, pois se indignou com a Descida do Fogo Sagrado6 praticada pelos cristãos anualmente em Jerusalém (e até os dias de hoje), considerada como fraude por al-Hakim, Diversos historiadores apontam que as perseguições a cristãos no Levante que inflamaram o futuro discurso das Cruzadas se iniciaram com as atitudes de al-Hakim.
Dando continuidade com suas perseguições, al-Hakim proibiu as procissões cristãs, e alguns anos mais tarde todos os conventos e igrejas da Palestina seriam destruídos ou confiscados7. Décadas depois dos estragos perpetrados pelo califa enlouquecido, o imperador bizantino Constantino IX reconstruiria o Santo Sepulcro sob a permissão do califa al-Mustansir.
Haveriam também conversões forçadas, porém mais tarde entre 1012-1021 o califa permitiria que os cristãos e judeus convertidos à força pudessem retornar para suas antigas fés, podendo inclusive reconstruir suas casas e locais de culto8. Nesse período, o califa se mostraria mais tolerante com o Povo do Livro, porém voltaria com a sua intolerância contra os sunitas, e por mais irônico que possa parecer, seria também hostil com os muçulmanos xiitas.
Apesar das loucuras do califa, suas perseguições e surtos megalomaníacos, ainda sim o seu reinado não pode ser resumido dessa maneira, pois o mesmo realizou vários investimentos na cultura e intelectualidade do Califado Fatímida, como é o caso da fundação da Casa do Conhecimento9 (Dar al-Alem). Durante seu reinado, a biblioteca real continha inúmeros livros, sendo o califa um grande entusiasta do avanço acadêmico e da intelectualidade.
Além disso, o califa controlava um complexo sistema burocrático, indo desde os oficiais do mais alto escalão até inspetores dos mercados locais. Foi também muito generoso com as construções que fazia ou reformava, renovando mesquitas com belas decorações ao ponto de enviar caixas contendo milhares de cópias do Alcorão, algumas inclusive escritas em ouro para uma mesquita de Fostate.
Muito embora seja por conta das loucuras que cometeu enquanto governava a Dinastia Fatímida que al-Hakim é lembrado, é ao menos necessário citar as contribuições acima para a cultura e intelectualidade de sua época.
Vindo a desaparecer em 1021 sem deixar muitos vestígios, até hoje não se sabe o que ocorreu com o califa. Porém, na época muitos daqueles que o deificaram fizeram paralelos absurdos entre seu desaparecimento e a morte do Profeta Muhammad. Nesse sentido, Muhammad teria morrido no 11º ano do calendário Islâmico, enquanto al-Hakim teria desaparecido exatamente 400 anos depois no ano 411 do calendário Islâmico.
Idolatrado por alguns e odiado por outros, al-Hakim foi uma figura controversa da história islâmica, mas também um dos nomes mais interessantes justamente por sua excentricidade, ora um perseguidor fanático e megalomaníaco, ora um entusiasta da intelectualidade.
Notas:
[1] Um qadi é um juiz muçulmano que julga de acordo com a shariah;
[2] Ver a obra de O’LEARY (2001);
[3] ELKAMEL (2010);
[4] STILLMAN (2003);
[5] Povo do Livro é uma expressão utilizada no Islã para designar os adeptos das outras duas fés abraâmicas, o Cristianismo e o Judaísmo;
[6] Segundo os cristãos Ortodoxos, é um milagre que ocorre todos os anos na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém no sábado que antecede a Páscoa. O fogo, tido como milagroso, não queima a pele nem as vestes de quem o toca;
[7] OUSTERHOUT (1989);
[8] ARNOLD (2018);
[9] Não confundir com a Casa da Sabedoria de Bagdá.
Bibliografia:
ELKAMEL, Sara. Caliph of Cairo: The rule and mysterious disappearance of Al-Hakim bi-Amr Allah. Egypt Independent. 2010;
NKRUMAH, Gamal. The Crazed Caliph. Al-Ahram. 2009;
OUSTERHOUT, Robert. “Rebuilding the Temple: Constantine Monomachus and the Holy Sepulchre” in The Journal of the Society of Architectural Historians, Vol. 48. 1989;
O’LEARY, De Lacy. A Short History of the Fatimid Khalifate. Routledge. 2007;
STILLMAN, Yedida Kalfon. Arab Dress: A Short History – From the Dawn of Islam to Modern Times. Boston Publishers. 2003;
ARNOLD, Sir Thomas Walker Arnold. The preaching of Islam: a history of the propagation of the Muslim faith. Palala Press. 2018.