Em nosso artigo anterior, cobrimos a biografia do Profeta Muhammad e os eventos que se desenvolveram ao longo de sua vida no Islã primitivo, logo no inicio do século VII.

Agora, nesta segunda fase da jornada histórica do Islã, entraremos em um ponto chave de sua trajetória, antes de prosseguirmos para o Califado Rashidun e os eventos que cercaram seus conturbados anos de existência expansiva.

O Sermão de Ghadir Khumm

A sucessão de Muhammad é a questão central que dividiu a comunidade muçulmana em vários segmentos nos primeiros séculos da história islâmica.

Alguns meses antes de sua morte, o Profeta Muhammad fez um sermão em Ghadir Khumm, onde uma declaração de interpretação ambígua dava a entender que, após a sua morte, Ali ibn Abi Talib, seu primo e genro, deveria sucedê-lo como líder da comunidade muçulmana.

Depois do sermão, Muhammad teria ordenado aos muçulmanos que jurassem lealdade a Ali. Fontes xiitas e sunitas concordam que Abu Bakr, Omar Ibn al-Khattab e Osman Ibn Affan, que factualmente sucederam o Profeta politicamente, estavam entre os muitos que prometeram lealdade a Ali neste evento.

No entanto, logo após a morte de Muhammad, um grupo de muçulmanos se reuniu em Saqifa, onde Omar, um dos grandes companheiros do Profeta, prometeu fidelidade a Abu Bakr. Dessa forma, Abu Bakr assumiu o poder político da comunidade muçulmana, enquanto Ali passou a ter uma liderança de cunho espiritual.

Os apoiadores de Ali, os primeiros xiitas, eram um partido que esperava que o primo do Profeta fosse elevado, também, a liderança política. Eventualmente, após a morte de Abu Bakr e seus dois sucessores, Omar e Osman, os muçulmanos como um todo se voltaram para Ali em busca de liderança total.

“A Investidura de Ali em Ghadir Khumm”, ilustração em uma versão do “Cronologia das Nações Antigas” de al-Birnuni, século XIII.

Por volta de dez anos após sua migração para Medina, em 622, o Profeta Muhammad, junto com centenas de seguidores, executou sua última peregrinação a Meca, onde proferiu seu famoso Sermão da Despedida, em 632.

Um dos grandes líderes de sua comunidade, bem como seu primo e esposo de sua única filha viva, Fatimah, Ali estava no Iêmen, disseminando a mensagem islâmica dentre os árabes do sul da Península, quando foi informado sobre a peregrinação do Profeta.

Ele então partiu para Meca, junto com algumas pessoas, e se juntou ao seu sogro antes dos rituais começarem. Quando os rituais do Hajj (peregrinação) terminaram, Muhammad deixou Meca e partiu para Medina, junto com outros muçulmanos.

No caminho, o Profeta teria ordenado aos seus companheiros para que parassem em Ghadir Khum, onde os fez ouvir um longo sermão. A parte mais conhecida do sermão ocorreu quando ele levantou a mão de Ali, diante de todos, e disse:

De quem quer que eu seja mestre (mawla), Ali é seu mestre.

Após a fala do Profeta, Ali foi parabenizado por todos os muçulmanos presentes.

A ambiguidade da palavra

A palavra mawla, que em português é traduzido como mestre, possui por volta de 27 conotações diferentes no árabe, sendo uma delas liderança de cunho político, devendo ser analisada em seu contexto sintático e situacional.

Diferente de termos como “amir (emir), imam (imã), sultan (sultão) e ulil-amr (autoridade), que são palavras muito claras para descrever um líder político, a palavra mawla pode ter interpretações ambíguas.

Mawla pode ser usado para se referir a um cliente, um patrono, um agnado (irmão, filho, irmão do pai, irmão dos pais), um parente afim (cunhado, genro), um amigo, um partidário, um seguidor, um companheiro, um parceiro, um muçulmano recém-convertido ligado a um muçulmano mais antigo e, por último, mas não menos importante, um aliado.

Dessa ambiguidade, surge uma das primeiras sisões interpretativas do Islã. Parte dos muçulmanos, após a morte do Profeta, entenderam que, no Sermão de Ghadir Khumm, ele havia claramente dado toda a liderança da comunidade muçulmana a Ali, formando os xiitas, outros interpretaram como uma liderança espiritual, e outros compreenderam que Ali seria o líder da família do Profeta, porém, não de todos os muçulmanos.

E não é uma surpresa que o incidente seja encarado de forma tão ambígua, visto que antes do sermão em Ghadir Khum, o Profeta havia recebido reclamações, vindas dos muçulmanos iemenitas, em relação a Ali e sua volta do Iêmen.

Neste contexto, Muhammed usou estas palavras como forma de reprovar a atitude dos iemenitas e exaltar o papel de Ali e suas virtudes, aceitas por todos os muçulmanos.

A Interpretação dos grupos

A ideia de que no primeiro período do Islã já haviam disputas de sucessão entre xiitas e sunitas é totalmente errada, tendo em vista que o sunismo só veio a ser configurado como o conhecemos por volta dos séculos VIII e IX.

Nesta fase inicial, haviam os xiitas, sendo o xiismo apenas uma visão política e não teológica, como nos séculos posteriores, e o resto dos muçulmanos, com outras posições políticas ou sem aderência a nenhuma delas.

Porém, não se pode menosprezar o papel destes eventos no cenário teológico xiita, onde os demais muçulmanos e seus líderes da época, principalmente Abu Bakr e Omar, bem como suas filhas Aisha e Hafsa, esposas do Profeta, foram menosprezados e vistos como encarnações do mal, por terem, na visão deles, usurpado o califado de Ali.

Todo o xiismo é construído em torno destes eventos, tendo recebido adições em suas narrativas para torná-las mais comoventes, enquanto para o sunismo, isto teria um valor secundário.

Na narrativa sunita, Ali teria aceito a sucessão posterior de Abu Bakr, e aguardado sem nenhuma espécie de oposição até que seu tempo chegasse, quando foi eleito como califa após a morte de Osman, em 656. Na visão do sunismo, nem mesmo Ali era partidário de seus partidários.

Antes de morrer, o Profeta Muhammad também indicou sua confiança perante a comunidade muçulmana em relação a Abu Bakr, pedindo-lhe que liderasse as orações na mesquita, um papel altamente visível que, anteriormente, era assumido pelo próprio Profeta.

Historicamente, o imã da oração era o líder de sua comunidade muçulmana ou seu membro com status mais elevado, deixando a situação de quem seria seu sucessor político em um ar sugestivo. Diante deste quadro, os ansar, muçulmanos nativos de Medina, realizaram uma reunião para discutir a escolha de um novo líder de sua parte da comunidade.

Quando as notícias da reunião se espalharam, Abu Bakr, Omar e Abu Ubaidah ibn al-Jarrah correram para o local. Abu Bakr argumentou que, se os ansar escolhessem apenas um líder dentre os seus, a comunidade muçulmana se dividiria. O novo líder deveria vir dos coraixitas, a tribo do Profeta, e Sa’d ibn Ubadah concordou.

Abu Bakr sugeriu que as pessoas escolhessem Omar ou Abu Ubayda, já que ambos eram capazes. Omar então teria tomado a mão de Abu Bakr e declarado sua lealdade (bay’ah, um costume árabe), seguido pelo restante do grupo. No entanto, essa decisão não seria obrigatória para o resto dos muçulmanos, a menos que eles dessem sua bay’ah, o que todos fizeram, exceto os apoiadores de Ali.

Desse dia em diante, a comunidade muçulmana, após a morte do Profeta, passou a ser liderada por Abu Bakr, mediante oposição quieta dos primeiros xiitas, porém, de acordo com a visão sunita, sem oposição alguma por parte de Ali, que era amigo de Abu Bakr.

Muçulmanos sunitas que, séculos mais tarde, se agruparam nas posições dos não-xiitas da época, com exceção dos khawarij, consideram Ali um dos mais proeminentes companheiros do Profeta, junto com Abu Bakr, Omar e Osman, aos quais foi prometida a dádiva do paraíso, bem como seu quarto califa.

Porém, em meio a visão xiita sobre a violação do pacto de Ghadir Khum, existe um adendo histórico peculiar. Aisha, esposa mais nova de Muhammad e filha de Abu Bakr, criou e ensinou seu sobrinho, Qasim ibn Muhammad Ibn Abu Bakr, filho de uma descendente de Ali e neto de Abu Bakr.

Qasim teve uma filha, Farwah bint al-Qasim, que se casou com Muhammad al-Baqir. Juntos, eles tiveram um filho chamado Jafar al-Sadiq, que viria a se tornar o sexto imã xiita. Dessa forma, as linhagens de Abu Bakr e Ali foram misturadas no imamato do xiismo e na espiritualidade sunita sufi, que, segundo todas as ordens, é transmitida através de Ali passando por Jafar.

O contexto das diferentes visões da sucessão do Profeta Muhammad moldaram a mentalidade dos muçulmanos ao longo do tempo, e tiveram papel fundamental nos anos seguintes a sua morte, em 632.

Diversos grupos muçulmanos, que surgiriam nos anos subsequentes, não só questionaram quem deveria sucedê-lo, como também a legitimidade destes sucessores.

Porém, este é um tema para o próximo artigo, onde examinaremos os acontecimentos do Califado Rashidun, onde Abu Bakr, Omar, Osman e Ali, que desempenharam os papéis principais numa série de eventos e que deixariam um legado duradouro na vida dos muçulmanos até os dias atuais.

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