No filme Kingdom of Heaven (de 2005, lançado no Brasil como Cruzada) de Ridley Scott, em certa cena há um diálogo entre o rei cruzado de Jerusalém, Balduíno IV, conhecido como “O Rei Leproso”, e o barão de Ibelin, Balião. Neste diálogo, Balduíno diz que: “esses árabes (os muçulmanos) dizem que esta doença [a lepra] é uma castigo de Deus contra a frivolidade de nosso povo [cristão], e que o castigo que me aguarda no inferno é  ainda mais severo e duradouro.” Muitos que leem este artigo sabem ou têm uma mínima ideia de como a hanseníase – conhecida histórica e popularmente como lepra – era vista na Europa Medieval; realmente, era vista com maus olhos, como uma punição, impureza e “marca bestial” naqueles que dela sofriam, que eram vistos como carregadores de grandes pecados. A fala de Balduíno no filme, dá a entender assim como na Europa, no Oriente Médio Islâmica via-se a lepra da mesma forma: uma punição e uma marca vexatória. A produção de Ridley Scott, todavia, é semificcional: há elementos verdadeiros, históricos, e há elementos ficcionais. Esta fala de Balduíno, então, pertence a qual campo? A ficção ou a história? É o que tentaremos elucidar neste texto.

Para compreendermos a visão societal islamo-árabe sobre a doença da lepra corretamente, primeiro precisamos compreender a visão do Islã sobre ela. Há poucos, porém são existentes, relatos de lepra na Arábia pré-islâmica, de modo que não nos é passado consistentemente qual era a reação e a relação da sociedade arábica pré-islâmica para com os leprosos. Com o advento da Mensagem do Islã, no entanto, vieram também algumas interações entre o Profeta Muhammad e leprosos que, tal qual Jesus de Nazaré (também ele um Profeta do Islã) no Novo Testamento, contrasta com a atitude dura e segregacionista exortada no Antigo Testamento através do exercício da compaixão e amabilidade em direção aos enfermos. Nos é narrado através de um hádice:

O profeta Muhammad (que a paz e as bençãos de Deus estejam com ele) pediu a um indivíduo com lepra que se juntasse a ele para uma refeição e, na verdade, pegou a mão do homem e a colocou em um prato, dizendo-lhe: “Coma, em o nome de Allah, confiando em Allah e depositando sua confiança n’Ele”. (Sunan ibn Majah Cap. 34, Hadith no. 3542)

Do mesmo modo, é dito em outro hádice confiável:

O Profeta (que a paz e as bençãos de Deus estejam com ele) disse: "Não fique olhando para aqueles que têm lepra." (Sunan ibn Majah Cap. 34, no. 3543)

Por outro lado, no Alcorão não se faz referência direta, nem positiva nem negativa, sobre a lepra, diferentemente da Bíblia, mais precisamente no Antigo Testamento, no Tanakh judaico, onde se lê:

Ora, o leproso em quem estiver a chaga, suas roupas serão rasgadas e sua cabeça descoberta; e cobrirá o bigode e clamará: ‘Imundo! Imundo!”  Ele será imundo. Todos os dias em que tiver a chaga, será imundo. Ele é imundo, e habitará sozinho; a sua habitação será fora do arraial.(Levítico 13: 45 – 46)

Em um relato sobre um sahaba, um companheiro do Profeta Muhammad, também, é relatado que al-Harith ibn Kaladah (falecido em 13 H./634-35), tradicionalmente considerado o médico árabe mais antigo conhecido, curou um certo indivíduo de nome an-Nushajanl, que sofria de lepra, na localidade de at-Ta'if, depois que os médicos na persas que lhe trataram anteriormente falharam em obter sucesso. No início do Islã, o Alcorão menciona em dois lugares a cura dos leprosos pelo Profeta Jesus, mas nada além disso. É apenas uma referência indireta (uma vez que narra um acontecimento sem fazer juízo de valor sobre o status dos curados).

Sem dúvida alguma, como veremos mais a frente, as atitudes islâmicas e cristãos, relativamente diferentes entre si, especialmente no que diz respeito à abordagem da doença da lepra em si, foram fortemente influenciadas tanto pela ausência de discussão religiosa por parte dos textos sagrados islâmicos e por parte das deliberações dos juristas, no caso do Islã, quanto pela dura e inflexível lei levítica do Judaísmo descrita em Levítico influenciaram a atitude cristã (talvez Cristo tenha se esquecido de abolir/cumprir essa parte da Lei Mosaica, quem sabe).

Além disso, no caso do Islã, a atitude dos muçulmanos tanto na esfera das relações sociais quanto na esfera do poder pública acabou, em virtude da ausência de deliberações jurisprudenciais sobre o tema, uma vez que a hanseníase não é tratada diretamente nos textos jurídicos islâmicos, mas é tratada como uma condição à qual se está sujeito, tais quais como divórcio, casamento ou outra doença, ou seja, é uma condição que afeta diretamente a situação jurídica do doente perante a sociedade e a lei, mas não seu status religioso, de pureza ritualística ou moral. Devido a isso, a resposta ao adoecimento variou da segregação à convivência, sendo influenciada fortemente pela medicina galeânica (medicina antiga), que, diferentemente da sociedade europeia de certos períodos medievais com sua quase ausência de medicina e excedente de fanatismo religioso, tratava os leprosos como nada mais nada menos que eram: leprosos; isto é, pessoas com uma condição de doença que, muitas vezes, para evitar o contágio ou providenciar uma maior qualidade de vida ao cidadão, requeria sua internação em instituições de saúde pública ou religiosas chamadas maristan ou bimaristan que são, efetivamente, os ancestrais dos hospitais modernos.

Um dos primeiros, se não o primeiro, bimaristan feito para leprosos foi arquitetado e executado pelo Califa Omíada al-Walid I (86-96/705-15). Nos narra sobre ele o historiador At-Tarabi:

“Ele proveu sustento aos leprosos (al-mujadhdamin) e disse: ‘Não mendigues.’ E ele concedeu a cada inválido um servo e a cada cego um guia para si.”

Como não há evidência de um hospício ou leprosário anterior em Damasco, a mendicância dos leprosos (assim como o era na Europa) não só é inteiramente possível como é quase uma certeza, uma vez que a hanseníase avançada deixa a pessoa inválida. O conselho e as medidas do Califas seguem as exortações islâmicas de que um homem não deve mendigar como profissão; assim, o Califa, para atender aos preceitos religiosos, faz essa sadaqa (caridade) aos cegos e leprosos, concedendo-lhe servos e guias para facilitar-lhes a vida e não terem que mendigar. Tal ação é consistente com a filantropia demonstrada por seu antecessor, Omar. A partir disso, é possível dizer que al-Walid foi o responsável pela primeira política de contenção dos leprosos, algo que nenhum de seus antecessores que governaram Damasco parece ter feito. Essa contenção, no entanto, era bem diferente daquela vista na Europa: se por um lado foi feita essa segregação como forma de aliviar o fardo dos doentes e ao mesmo tempo evitar o contágio no restante da população, por outro lado, na Europa, a segregação era puramente baseada em preconceito e a mendicância era prevalente entre os aflitos pela lepra.

A atitude para com os leprosos era tão permeada por uma cultura absolutamente medieval (no sentido pejorativo da palavra): Leprosos eram expulsos de cidades e vilarejos, frequentemente tinham a entrada negada em grandes centros urbanos e poderiam até mesmo serem destratados e segregados do convívio comum. De tal modo, surgiram até mesmo, em certo ponto, rumores de que judeus, muçulmanos e leprosos – os três maiores e mais demoníacos inimigos da pura Cristandade Ocidental – estavam planejando destruir a Europa e o Cristianismo. As únicas exceções a isso eram os leprosários administrador pela Igreja que os continham, geralmente pertencentes à Ordem de São Lázaro que, com o advento das Cruzadas, militarizou-se e tornou-se, também, um ordem de literais cavaleiros leprosos – uma oportunidade a esses pobres pecadores de expiarem seus pecados e tornarem-se campões da fé.

Tendo essa informação dos leprosários em vista, pode parecer ao caro leitor que a situação, então, não era tão diferente nos dois mundos. Porém, é necessário ressaltar dois pontos principais: o primeiro, é que no mundo islamo-árabe haviam, de fato, políticas públicas para lidar com a lepra, do mesmo modo que por vezes também não havia, enquanto na Europa cristã as políticas eram exclusivamente eclesiásticas e limitadas. A segunda, é a questão da liberdade individual e de ir e vir: na sociedade euro-cristã, como vimos, os leprosos eram degredados da sociedade, párias, sem dignidade e impuros: seu local era ou nos leprosários de São Lázaro ou bem longe das habitações dos “puros”. Na sociedade islamo-árabe, não: o leproso era, como todos os outros, um cidadão comum, mas com uma condição médica específica que lhe isentava de certas obrigações legais e societais. Apesar de serem segregados nos bimaristans, assim eram deixados por questões associadas ao tratamento de sua própria doença e de saúde pública (como foi a decisão do governante egípcio Sultão Barsbay, do século XV, que decretou que aqueles que sofressem especialmente de lepra não deveriam ser empregados); não eram desprezados ou tidos como “inimigos do Islã” como na Europa cristã eram tidos, mas sim, eram como os cegos, os surdos e os mudos ou outras pessoas com outros tipos de deficiência ou doenças.

De fato, houve, na sociedade islamo-árabe, pessoas que até mesmo fizeram uma “defesa” dos desvalidos leprosos. Foi o caso do poeta Al-Jahiz (falecido em 255 H/868-69) e de Ibn Qutaybah (falecido em 276 H/889) que, especialmente, colecionaram poesias e relatos narrativos sobre este tema. A coleção de Al-Jahiz encontra-se na primeira seção de seu al-Bursdn wa l-'urjdn . O livro como um todo trata de um grande número de enfermidades físicas, como distúrbios de pele, claudicação, paralisia e surdez e características pessoais, como calvície, magreza e feiura. O objetivo do autor nesta curiosa compilação é mostrar que as enfermidades e peculiaridades físicas não impedem um indivíduo de ser um membro plenamente ativo da comunidade muçulmana nem o impede de ocupar cargos importantes. Al-Jahiz sustentou que as doenças físicas não são estigmas sociais, mas são o que pode ser chamado de sinais de bênção ou favor divino.

Outra prova cabal da mobilidade social na sociedade muçulmana árabe são os vários casos de leprosos em posição de poder; citaremos um: a figura política mais importante no início da história islâmica que foi afligida pela lepra foi 'Abd al-'Aziz (falecido em 85 H/704), filho do Califa omíada Marwan I. Ele foi nomeado governador do Egito por seu pai e foi posteriormente confirmado neste escritório por seu irmão, o Califa 'Abd al-Malik. Por vinte anos 'Abd al-'Aziz provou ser um governante capaz, embora seja relatado que ele foi acometido pela doença conhecida como "doença do leão". Este era um eufemismo arábico comum para a lepra (judhdm).

De fato, o Outremer cristão também teve um líder leproso, Balduíno IV. Mas pensemos: será que Balduíno não foi uma raríssima exceção ajudado, inclusive, pelo fato de seu reino ser um reino arabizado, composto, em sua maioria, por árabes e minorias também arabizados, com nobres europeus arabizados e em terras orientais? Será que na Europa ele ainda seria digno de ocupar seu trono, ou seria vítima de assassinato, golpe, ou mesmo nunca assumiria? Estas questões deixarei ao leitor ponderar sobre.

Apesar da sociedade islamo-árabe ter sido a época recortada para apresentar e discorrer a questão da lepra em ambas as sociedades, as atitudes islâmicas não se contiveram nela: o Império Otomano, cujo Sultão também era um Califa, tinha uma rede de organizações religiosas que cuidavam dos leprosos e que contava, inclusive, com o patrocínio público: Sulayman, o Magnífico, ergueu um leprosário em Scutari, cuja estrutura sobreviveu intacta até os tempos modernos. Desse modo, fica claro para nós que, a despeito das suas particularidades e questões de saúde pública e geral e das implicações societais dessas questões, a lepra no Oriente Islâmica representava um problema menos sério para a sociedade islâmica medieval do que para a sociedade cristã europeia.

Bibliografia:

  • DOLS, Michael W. (1983). The Leper in Medieval Islamic Society - Vol. 58, No. 4.
  • HASNAIN, Rooshey (2019). Islam, Leprosy, and Disability: How Religion, History, Art, and Storytelling Can Yield New Insights and Acceptance. Department of Disability and Human Development, University of Illinois at Chicago.