Um principado muçulmano, fundado em uma ilha grega, por exilados andalusos da Espanha, juntamente com cristãos moçárabes, que haviam ocupado uma cidade egípcia e, como se não fosse suficiente, estabeleceram um poderoso reino de piratas e corsários auxiliado por muçulmanos tunisianos, egípcios e oficiais traidores bizantinos de origem grega, síria e eslava. Se pudéssemos sintetizar essa experiência, o Emirado de Creta constitui algum daqueles casos improváveis onde diferentes elementos exóticos se unem e se organizam de forma ainda mais extraordinária do que se poderia esperar.

O início desta história, praticamente escrita quase que exclusivamente por escritores bizantinos, remonta à virada do quartel do século nono, quando um grande grupo de exilados andalusos aportaram em Creta, no reinado do imperador bizantino Miguel II (r. 820-829). De acordo com a cronística tradicional, esses imigrantes andalusos teriam participado de uma revolta mal-sucedida contra o emir al-Hakam I de Córdoba, em 818 d.C. Após sua supressão, os derrotados, muçulmanos andalusos e cristãos moçárabes, se exilaram (ou foram exilados) da Espanha Muçulmana para se estabelecer em outras regiões. Os que não se estabeleceram na grande metrópole de Fez, no Marrocos, se dedicaram à pirataria, aparentemente atacando cristãos e muçulmanos sem muita distinção.

Foi nesta época que um grupo de 10.000 guerreiros andalusos, composto totalmente ou em sua maioria dos exilados da revolta contra al-Hakam, assaltaram e conquistaram a cidade portuária de Alexandria, no Egito, do Califado Abássida. A metrópole permaneceu em domínio dos exilados até 827, quando o general persa Abdullah ibn Tahir al-Khurasani recuperou a cidade para o Califado Abássida. Nos acordos estabelecidos entre al-Krurasani e os andalusos, estes últimos deveriam entregar a cidade em troca de poderem partir com suas armas e navios, levando também uma quantidade imensa de civis andalusos, incluindo mulheres e crianças, que haviam se estabelecido na cidade por ocasião da sua conquista.

Existe muita controvérsia sobre a origem específica dos exilados andalusos, o que geralmente é causado pela crença de que eles teriam vindo da própria cidade de Córdoba; o que é consistente quando pensamos que Córdoba nesta época era a maior cidade do mundo, não gerando contradição no fato dos seus exilados constituírem dezenas de milhares. Mas, ignorando possíveis detalhes contraditórios, partiram de Alexandria cerca de 12.000 pessoas, das quais cerca de 3.000 seriam guerreiros.

As razões pelas quais a ilha grega de Creta se tornou alvo deste grupo imigrante também não é consensualmente estabelecida entre historiadores. A ilha em si foi alvo de algumas incursões e tentativas de ocupação desde o início da expansão islâmica, embora nunca tenha sido realmente conquistada por estar distante das bases navais do Califado no Levante, além de ser vista com pouco interesse pelos expansionistas muçulmanos.

De acordo com cronistas bizantinos, os andalusos já estavam familiarizados com a ilha, além de terem realizado incursões de pilhagem na mesma, anteriormente. Ainda de acordo com cronistas bizantinos, a campanha andaluza em Creta tinha, inicialmente, o propósito de ser meramente uma incursão de rapina. A razão pela qual ela foi transformada numa campanha de conquista, nestas narrativas, teria sido a atitude do líder andaluso Abu Hafs Umar al-Iqritishi, após aportarem em Creta, de incendiar todos os navios que transportaram os exilados, forçando-os a terem de se estabelecer em Creta. Diga-se de passagem, essa narrativa é descreditada por historiadores modernos como invenção bizantina de datas mais tardias, quando as crônicas foram escritas (é inclusive um topos literário muito semelhante a narrativa da conquista de al-Andalus em 711, onde o general berbere Tariq Ibn Ziyad teria feito a mesma coisa). A provável razão para a conquista deve ter se dado pela relativa facilidade que os exilados encontraram em tomar aquela ilha para si, o que seria causado pela incompetência militar local, a indiferença da população cretense e das conhecidas crises militares internas – e religiosas – do império bizantino.

Assim que o imperador bizantino soube do aportamento andaluso, Miguel II procurou organizar uma expedição à Creta antes que a ilha fosse completamente conquistada pelos invasores. No entanto, as perdas causadas pela revolta do general Tomás, o Eslavo, e a invasão dos aglábidas tunisianos à Sicilia Bizantina suprimiram muito da capacidade bizantina no contra-ataque em Creta. Como resultado, todas as expedições lançadas de uma forma ou outra terminaram em fracassos gigantescos.

Uma das importantes mudanças causadas pela conquista andaluza de Creta foi a construção de Chandax, a nova capital portuária de Creta, em detrimento da cidade de Gortyn, no interior da ilha. Agora sob domínio anadaluso, Creta foi transformada em um emirado muçulmano, reconhecendo a suserania do Califado Abássida como forma de obter proteção e agradar as reações da dinastia persa daquele Califado. Todavia, apesar de vassalo na teoria, o emirado de Creta era na prática independente de qualquer autoridade externa.

Com a capital movido para um porto e com um exército adequado à vida naval, o emirado de Creta se tornou um poderoso Estado Corsário, transformando o balanço do poder naval no Mediterrâneo Oriental e expondo as possessões gregas do Império Bizantino à frequentes e devastadoras incursões, chegando até mesmo à invadir e pilhar a ilha de Mármara, no mar de Mármara, à poucos quilômetros da capital imperial de Constantinopla; algo que não se fazia desde o Segundo Cerco Árabe de Constantinopla, no século VII.

O Emirado de Creta em 900 d.C., em sua máxima expansão. Creta, a maior ilha, encontra-se ao sul.

Além das incursões de pilhagem, as fontes bizantinas dizem que o Emirado ainda conquistou um punhado de ilhas no Mar Egeu, embora o nosso conhecimento sobre essas possessões seja praticamente fragmentário, por conta da escassez de fontes, o que significa que as posses do Emirado de Creta sobre o mundo grego podem ser ligeiramente maiores do que atualmente conhecemos. Não surpreendentemente, o Emirado logo se tornou um dos principais inimigos do Império Bizantino naqueles tempos, com diversas expedições bizantinas sendo lançadas pela reconquista de Creta e o fim do emirado.

Todavia, diversos problemas de organização, política ou de campanha acabaram resultando no fracasso completo de todas as expedições e na destruição sucessiva da frota imperial. A partir de 870, as incursões do Emirado atingiram um novo patamar com a entrada de renegados bizantinos vindos de diversas partes do império, além de voluntários vindos do Norte da África e Síria, tanto cristãos quanto muçulmanos. Sob o auxílio de renegados bizantinos, o Emirado expandiu seus ataques para a costa dálmata (atual Croácia) e contra a segunda maior e mais importante cidade bizantina da época: Tessalônica. Como resultado desta expedição, cerca de 20 mil tessalonicenses foram reduzidos à escravidão, além de uma grande quantidade de saque obtido na operação.

O assalto à Tessalônica, liderado pelo Léo de Trípoli, também chamado de Rashīq al-Wardām, um oficial grego cristão convertido ao Islamismo.

As invasões do Emirado de Creta continuaram se intensificando na mesma medida que em diversas localidades costeiras, a população bizantina simplesmente emigrava para o interior ou para enclaves mais seguros, gerando toda uma mudança na dinâmica demográfica na região. Os fracassos bizantinos continuariam se seguindo até o último grande projeto de invasão ter sido posto sob a responsabilidade de Nicéforo Focas, um habilíssimo general bizantino que aportou em Creta em 960 e terminou sua conquista completa em 961. Como vingança pelos ataques cretenses, a população muçulmana da ilha foi praticamente toda massacrada ou reduzida à escravidão, com as mesquitas e outros edifícios religiosos sendo sistematicamente demolidos. O último emir, assim como o seu herdeiro, foi capturado e levado para Constantinopla, onde foi exposto em um desfile comemorativo nas ruas da cidade, à moda imperial. Os muçulmanos sobreviventes foram conversos por campanhas proselitistas de monges ortodoxos, com pelo menos um dos príncipes do Emirado sendo convertido ao cristianismo ortodoxo, tornando-se um general bizantino. Nicéforo Focas eventualmente daria um golpe de Estado e se tornaria imperador, inaugurando a Dinastia Macedônica e um revigoramento geral do Império naquilo que foi conhecido como Restauração Macedônica, um período de dominância militar bizantina sobre o Oriente Médio e a Europa Oriental. 

Punições bizantinas à corsários capturados do Emirado de Creta, no códex Skylitzes de Madri.

O Emirado de Creta é descrito totalmente por fontes estrangeiras, das quais a maior parte vem de autoria bizantina, seus tradicionais opositores. Além de fontes escritas, poucos registros arqueológicos do período muçulmano sobrevivem, tudo isto causado por aquilo que parece ser uma campanha deliberada de destruição promovida pelos bizantinos, apagando muito da história do Emirado e privando os historiadores de uma rica compreensão daquele potentado.

Por conta disto, a visão tradicional sobre o emirado de Creta, estabelecida por fontes bizantinas, é de que o mesmo era essencialmente um ninho de corsários, sobrevivendo de pirataria e comércio escravocrata. As poucas referências do mundo islâmico, por sua vez, mostram um Estado organizado com um centro monetário regular e extensas ligações comerciais. Na verdade, a própria Chandax teria sido um centro cultural de relativa importância. A sobrevivência de numerosas moedas de ouro, prata e cobre, de peso e composição quase constantes, atesta uma economia forte e um alto padrão de vida entre a população. A economia era sustentada pelo amplo comércio com o resto do mundo muçulmano, especialmente com o Egito, e por uma agricultura em expansão: a necessidade de sustentar um estado independente, bem como o acesso aos mercados do mundo muçulmano, levou a uma intensificação do cultivo. Também é possível que a cana-de-açúcar tenha sido introduzida em Creta na época do Emirado.

Não está claro o que aconteceu aos cristãos da ilha após a conquista muçulmana; a visão tradicional (enviesada pela narrativa bizantina) é que a maioria foi convertida ou expulsa. Há evidências de fontes muçulmanas, no entanto, da sobrevivência contínua de cristãos em Creta, como dhimmis. De acordo com as fontes muçulmanas, a população muçulmana era composta de descendentes de andaluzes, migrantes e conversos, formando uma maioria populacional. Ao que tudo indica, a população do campo teria permanecido essencialmente cristã, ao passo que as cidades eram numericamente dominadas por muçulmanos.

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