O trailer do filme Gladiador, de Ridley Scott, de 2000, iniciava com com o slogan: “O general que se tornou um escravo. O escravo que se tornou um gladiador. O gladiador que desafiou um imperador.” Embora a única coisa real que teria chegado perto de algo assim em Roma fosse a revolta de escravos de Spartacus (que pode ter influenciado a história do filme), realmente não havia muita chance de um escravo alcançar o poder em Roma, não importa quão bom seja o enredo. Houve, no entanto, diferentes épocas e regiões geográficas do mundo islâmico onde a história viu o surgimento de pessoas escravizadas, que derrubaram as posições daqueles que os governavam e se tornaram seus próprios senhores. Esta é uma exploração desse fenômeno e uma breve visão geral dos escravos que se tornaram reis.

Este texto não será uma legitimação da escravidão no Islã. Felizmente, a escravidão “oficial” terminou em todo o mundo (não oficialmente a escravidão continua mesmo nas economias desenvolvidas na forma de exploração sexual e tráfico de pessoas). A escravidão existia em todas as sociedades humanas pré-modernas, incluindo a muçulmana e, apesar do fato de que a lei islâmica tivesse regras estritas relativas à escravidão e ao tratamento dos escravos (em comparação com as sociedades europeias e americanas modernas), essas regras eram aplicadas de formas diferentes em níveis das sociedades do mundo muçulmano, o que levou à subjugação contínua de outros seres humanos. Tem sido argumentado (de forma bastante convincente) que a abordagem do Islã à escravidão era torná-la tão restritiva que acabaria levando à sua abolição natural [2], mas se isso teria acontecido se não fosse pelo abolicionismo liderado pela Europa é uma discussão diferente.

Como o Dr. Jonathan Brown argumenta em seu livro ‘Slavery & Islam’ [1], o que constitui ‘escravidão’ tem diferido em várias épocas e lugares de tal forma, que usar essa única palavra para descrever uma vasta faixa de experiência humana pode ser complicado. Para os leitores “eurocêntricos” em particular, o termo “escravidão” traz à mente especificamente o comércio transatlântico de escravos. Dada a grande quantidade de literatura, filmes e poesia sobre o tráfico transatlântico de escravos e seus efeitos, que ainda continuam a sobrecarregar as comunidades hoje, pode ser difícil mudar nossa mentalidade para pensar na escravidão como outra coisa, mas para os propósitos deste artigo , tenha em mente que quando falamos de escravidão, pode não ser exatamente como você imagina.

Os Abássidas

Durante o tempo do califado abássida a prática de recrutar soldados escravos tornou-se comum. Recrutados de suas terras nativas na estepe euro-asiática, meninos (principalmente de origem turca) eram retirados de suas famílias para serem treinados como soldados. Cavaleiros e lutadores naturalmente talentosos, aprimorados por seus habitats naturais longe de estilos de vida sedentários, eles eram valorizados por sua lealdade e força. Como eram  levados para longe de suas terras natais, eles começavam suas carreiras sem filiação política ou lealdade a qualquer governante, algo que teria sido difícil de encontrar se recrutassem locais para o exército. Eventualmente, esses soldados, conhecidos como '’Ghilman’', aliaram-se uns com os outros e tornaram-se tão necessários ​​que acabaram se tornando os governantes de fato do califado. Seu número cresceu tanto e seu poder tornou-se tão impopular que eventualmente o califa al-Mutasim teve que estabelecer uma nova capital em Samarra para abrigá-los. Os Ghilmans do califado abássida acabariam por levar à ascensão do Império Gasnévida e ao governo do famoso Mahmud de Ghazni, que se tornaria sultão de grande parte do atual Irã, Afeganistão, Paquistão e noroeste da Índia.

Mahmud de Ghazni (centro) recebe um manto do califa Al-Qadir; pintura de Rashid-al-Din Hamadani

Os Mamelucos do Egito

Ao longo dos séculos, à medida que vários impérios surgiam e caíam em todo o mundo muçulmano, os Ghilmans, agora mais conhecidos como mamelucos (literalmente escravos), ofereciam seus serviços a quem controlasse as rédeas do poder. Na realidade, porém, os próprios mamelucos seriam os verdadeiros governantes do império, pois ocupavam posições de alto escalão dentro de diferentes governos. No mundo islâmico ocidental, eles vieram à tona no final da dinastia aiúbida no Egito, quando assumiram oficialmente o controle e se tornaram senhores do império que governaram nos bastidores por anos.

Seu apogeu, sem dúvida, veio sob o domínio de Baybars, que tomou o poder depois que os mamelucos pararam o avanço mongol na Batalha de Ain Jalut em 1260. Os mamelucos deixariam seu legado no Cairo medieval, muito do qual ainda está hoje nos minaretes em espiral e mesquitas da cidade velha. No mundo islâmico oriental, após o fim dos gasnévidas vieram os guridas, e quando o último rei gurida tombou, seu soldado-general escravo Qutb al-Din Aybak (também um turco quipichaque como os mamelucos egípcios) iria tomar o poder e estabelecer outro império mameluco na Índia, que se tornou mais comumente chamado de Sultanato de Delhi.

Quatro cavaleiros participando de um concurso, do 'Manual sobre as Artes da Equitação' de al-Aqsara'i. Cairo, 1366. Biblioteca Chester Beatty

Os Sidis da Índia

Na Índia, além dos quipichaques, havia outro grupo de escravizados que também definiria a história da região. Escravos da África Oriental foram trazidos para o subcontinente por séculos e acabariam por levar ao estabelecimento das comunidades negras africanas conhecidas como Siddis/Shiddis.

Malik Ambar

Um dos primeiros a se destacar foi Jamal al-Din Yaqut. Yaqut começou como soldado do sultanato de Delhi, mas acabou se tornando uma confidente próxima de Razia Sultana, uma das poucas rainhas da história islâmica, depois que assumiu o trono. Os fãs clássicos de Bollywood podem conhecer a história (romantizada) através do filme Raziya Sultana de 1983, com o icônico ator Dharmendra no papel de Yaqut (infelizmente ele interpretou o papel utilizando-se de blackface). O mais famoso Siddi, porém, viria muitos anos depois. Malik Ambar (1548 - 13 de maio de 1626) foi um soldado-escravo nascido na Etiópia que acabaria por se tornar primeiro-ministro do Sultanato de Ahmadnagar e essencialmente seu governante de fato. Ele desafiou as reivindicações mogóis à subjugação do sultanato e estabeleceu um novo sistema tributário e encomendou vários edifícios e infraestrutura.

Ikhlas Khan, governante de Bijapur, c. 1650

Embora as conquistas de Ambar não fossem uma tarefa fácil, ele não estava abrindo novos caminhos. Antes dele, Ikhlas Khan, outro escravo da África Oriental que se tornou nababo, era o governante de fato do estado vizinho de Bijapur. A comunidade Siddi acabaria por estabelecer o estado e a dinastia Janjira, que nunca foi conquistada ou invadida por nenhum exército oponente, e sobreviveria até a independência da Índia do domínio britânico.

Os otomanos

No século XVI, outro grupo de turcos das planícies da Eurásia se levantou e tomou o poder dos mamelucos: os otomanos, que continuariam a governar até a era moderna.

Enquanto anteriormente os escravos soldados dos impérios muçulmanos eram compostos principalmente de pessoas turcas (assim como circassianos, abecásios, mongóis e outros), os otomanos tomavam seus soldados principalmente das comunidades cristãs dos Bálcãs. Eles eram conhecidos como janízaros. Tirados de suas famílias como parte do sistema devşirme (às vezes chamado de “imposto de sangue”) de áreas controladas pelos otomanos, eles foram convertidos ao Islã e criados para serem soldados leais ao sultão, assim como os mamelucos antes deles .[3] Embora os janízaros nunca tenham realizado qualquer tipo de golpe para tirar o poder de seus senhores, alguns deles subiram nas fileiras administrativas da burocracia otomana para os níveis mais altos possíveis. Um dos mais famosos foi Sokollu Mehmed Pasha. Levado como um menino de sua aldeia na Herzegovina, ele acabaria se tornando o grão-vizir (o equivalente a primeiro-ministro) sob três sultões diferentes e até se casou com uma princesa da família real.

Janízaro do Ralamb Costume Book, adquirido em Constantinopla em 1657-58 por Claes Rålamb.

Mas havia outra parte da casa real que também governava nos bastidores e até se tornava mais poderosa que o grão-vizir. Assim como os meninos levados para serem criados como soldados, os escravistas otomanos sequestravam regularmente meninas da Europa central para serem vendidas em concubinato. Embora isso fosse uma farsa comercialista, havia um lado bom para algumas dessas garotas. Muitas delas encontrariam o caminho para o harém do sultão otomano, onde disputariam o poder entre si para encontrar o favor de seu mestre.

Ali Amir Beg (fl. 1558) – Süleymannâme, Istambul, Museu do Palácio de Topkapi. Recrutamento de janízaros nos Balcãs. Ilustração do registro de meninos cristãos para o devşirme (“tributo em sangue”). Pintura em miniatura otomana.

Além das vantagens óbvias, havia outra coisa mais importante a ser conquistada: em muitas das tribos e culturas da estepe, a herança do poder não era definida pela primogenitura (o filho mais velho herda), mas geralmente resultava em uma disputa (mais muitas vezes, uma guerra civil) entre os filhos e irmãos do soberano falecido, sobre quem era o mais apto a governar. Muitas vezes, na história otomana, foi devido a qual príncipe foi implacável o suficiente para ter seus irmãos assassinados primeiro (o mais notório sendo Mehmet III, que matou todos os 19 irmãos). Mas às vezes o derramamento de sangue poderia ser evitado se o sultão nomeasse seu sucessor durante sua vida, e se uma de suas esposas fosse amada o suficiente, seus filhos seriam os próximos na fila. E assim poderia ser que uma jovem, levada cativa em uma terra distante, separada de sua família e vendida nas circunstâncias mais depravadas, subisse ao poder e se tornasse a valide-sultan, a rainha-mãe, o segundo indivíduo mais poderoso do império.

Um retrato de Roxelana na British Royal Collection, c. 1600–70

O exemplo mais famoso foi Roxelana, a esposa favorita de Suleyman, o Magnífico. Tão poderosa foi sua influência que ela convenceu Suleyman a matar seu filho Mustafa (sua mãe era uma das outras esposas de Suleyman e rival de Roxelana no harém). Apesar de ser popular e visto como o mais capaz de suceder seu pai como sultão, sua morte fez com que os filhos de Roxelana fossem os únicos possíveis herdeiros ao trono [4].

Observações Finais

O objetivo deste artigo não é argumentar que '’a escravidão no Islã não era de todo ruim’' e, de fato, muitos incidentes históricos, como os mencionados neste artigo, mostram que os muçulmanos burlavam as leis da própria fé em sua escravização de outros seres humanos, e seu tratamento foi às vezes tão ruim quanto durante o comércio transatlântico europeu de escravos. O objetivo aqui é simplesmente destacar momentos extraordinários da história em que indivíduos conseguiram erguer-se contra todas as probabilidades.

Pode-se perguntar por que isso aconteceu no mundo islâmico com mais frequência do que em outros lugares. Talvez, pode-se argumentar, tenha algo a ver com a insistência do Islã na igualdade de todos os seres humanos; ou porque a escravidão não era determinada com base na etnia. Ou, mais simplesmente, que o uso de escravos especificamente para fins militares, uma característica particular do mundo muçulmano, provavelmente levou a esse fenômeno. Tudo o que temos é especulação, ao lado dos legados daqueles que alcançaram o aparentemente impossível, para refletirmos.

Notas:

[1] Dr Jonathan AC Brown, ‘Slavery & Islam’, Oneworld Academic 2019

[2]‘A Trajectory of Manumission: Examining the Issue of Slavery in Islam‘ by Nathaniel Mathews

[3] Isso estava em contradição com a lei islâmica, onde uma pessoa só pode ser tomada como escrava se for um não-muçulmano que fazia parte de uma comunidade que estava em guerra com os muçulmanos na época. Muitos daqueles tomados como parte do sistema devşirme eram de áreas controladas pelos otomanos direta ou indiretamente por aqueles que governavam sob sua suserania.

[4] A la turca, há uma novela ou “dizi” chamada Século Magnifico que mostra a ascensão de Roxelana (se você estiver interessado).

Fonte: sacredfootsteps.org