Texto de: Pedro Gaião

Muitas pessoas ficariam surpresas ao descobrir que, mesmo antes da instituição do tráfico negreiro nos séculos XV e XVI, Estados Cristãos promoviam a escravidão e a castração como algo extremamente natural. 

A castração em si não é uma prática bíblica, sendo oficialmente condenada na Lei Mosaica (Deuteronômios 23:1). Mas se por um lado a castração era proibida aos judeus – e consequentemente aos cristãos –, todos os diversos povos pagãos espalhados pelo Mediterrâneo viam na prática de fazer eunucos um costume tradicional e até legalmente reconhecido. 

Apesar da ascensão do Cristianismo no Império Romano, as relações da Igreja com a lei e cultura romana são melhor descritas como uma acomodação do que exatamente como uma revolução cultural. É claro, a ascensão estatal cristã promoveu mudanças civis, como o fim da mandatoriedade de certos cultos pagãos e da prática de castrar escravos para sodomizá-los como homossexuais passivos. Mas mesmo Constantino, visto por igrejas orientais como um verdadeiro santo, não promoveu a abolição do culto imperial (que cultuava césar como um deus), da escravidão e nem da castração. 

Muitos leitores ficariam chocados ao descobrir que em pleno século IX os francos de Carlos Magno observavam toda esta tríade de práticas ocorrendo de forma generalizada pelo Império Romano Oriental. Na verdade, até o Império Oriental encontrar seu fim por mãos turcas em 1453, todas estas tradições e costumes pagãos ainda vigoravam. E embora o Islã seja lembrado por ocidentais como uma religião de origem escravocrata, muitos não se recordam do fato que os cristãos contemporâneos viam a prática com extrema naturalidade: muitos deles até a praticavam!

Foi pelas maquinações políticas de Aécio, um dos inúmeros eunucos da corte de Irene, que bizantinos e francos não unificaram os dois braços do Império Romano [1]. Irene ainda encarregaria outro eunuco, Staurakios, de cegar e encarcerar o próprio filho [2], garantindo seu retorno ao poder e prevenindo que a Igreja voltasse a se tornar iconoclasta [3].

“Bizâncio também requeria eunucos para servir no palácio imperial, onde eles eram tomados em uma variedade de funções importantes. Alguns comandantes militares eram eunucos, enquanto na Igreja Oriental eunucos poderiam ascender à posição de patriarcas. […] No entanto, nem todos os eunucos eram bem sucedidos. Aqueles que nunca se integraram à casas ricas ainda poderiam ser encontrados nos arredores das cidades, servindo como entretenimento e até prostitutos em bairros mais baixos.” [4]

Que a sociedade cristã, e principalmente a própria Igreja – romana ou ortodoxa – tem uma relação embaraçosa com os eunucos é um fato claro. Ainda mais considerando que o Papado fez uso oficial de eunucos nos corais sistinos até o início do século XX [5], prática abandonada por razão do extenso criticismo público na época e pelo fato da castração para corais ter sido proibida na Itália desde 1861. 

O Islã, assim como o Judaísmo e o Cristianismo, teve na sua base de formação uma proibição solene e inviolável de castração. Recorda-se na tradição islâmica que o Profeta Maomé teria dito sobre os castradores de escravos: “quem quer que os castre, o castraremos” (Sunan na-Nasai. Hadith 4736) [6].

Diferente da Igreja Cristã, que se deixou acomodar e até incorporou alegremente o costume pagão de castração para os mais diversos e supérfluos propósitos, o Islã manteve-se mais estrito às suas próprias proibições. 

Não que isto, é claro, impedisse que sociedades islâmicas vissem criados eunucos em altíssima estima: eles não estabeleciam dinastias, não praticavam nepotismo e eram os mais adequados guardiões de haréns. Mas como a Sharia proibia o processo de castração, punindo os contraventores pelo princípio de Lex Talionis (o muçulmano que castrar será punido com castração), haviam formas legais de adquiri-los sem infrigir a lei do Profeta: comércio e razias. Como o cronista e testemunha ocular al-Muqaddasi, no século X, descreve:

“Quando perguntei a um grupo deles sobre o processo de castração, fui informado que os romanos [bizantinos] castram seus jovens na intenção de dedicá-los à Igreja […] Quando os muçulmanos realizam assaltos, eles atacam igrejas e tomam os jovens deles” [6/7]

Conforme observado por Mary Valante no seu livro “Monges Castradores”

“Assaltos árabes alvejavam deliberadamente igrejas e mosteiros gregos […] numa época em que os gregos castravam determinados garotos em tenra idade para mantê-los como cantores na Igreja e numa época em que o Mundo Árabe queria eunucos.” [7/8]

Além das campanhas de rapina em igrejas, uma outra oportunidade de adquirir eunucos vinha do comércio com os homens do norte.

Apesar dos vikings não fazerem qualquer uso de eunucos, existia alta demanda pelos mesmos no Império Romano Oriental e no Mundo Islâmico. Disto resultou uma curiosa cadeia comercial escravocrata que reunia pagãos, cristãos e muçulmanos, todos reunidos no lucrativo comércio de seres humanos emasculados.

A importância dos eunucos no comércio nórdico desempenhou um papel importante para o estabelecimento da própria Era Viking:

“Uma das principais razões por trás do início do aumento de ataques contra mosteiros na Irlanda e na França era ‘capturar homens jovens e alfabetizados que pudessem ser transformados em eunucos e vendidos no Oriente.” [8/9]

Se por um lado árabes estavam geralmente mais afastados da Europa Ocidental e tinham uma proibição em vigor contra a castração, os vikings correspondiam às principais deficiências comerciais dos árabes: localização e desobstrução moral. Como constata Valante: “os Vikings preenchiam um nicho em demanda com esta ‘indústria’ de alvejar garotos e homens jovens em seus assaltos. Eles poderiam ser enviados para Veneza, onde seriam castrados e enviados para o Leste’’ [9/10]. 

E ainda:

” Registros históricos mostram exemplos de que este comércio escravocrata tomando espaço. Um biógrafo de São Nian, no século X, conta o relato de que 200 clérigos foram capturados pelos vikings e levados para comércios escravocratas em Veneza. Valente escreve que ‘’homens religiosos eram capturados e vendidos através de centros comerciais, onde a castração era praticada regularmente.” Existem registros de grandes números de homens jovens sendo vendidos especificamente como eunucos, sugerindo que alguns escravos foram tomados especificamente para este propósito: alimentar os mercados orientais de jovens castrados e educados.” [9/10]

Estes são dados significativos: enquanto nichos mais modernos e polemicistas da apologética cristã e católica-romana insistem em afirmar que o Cristianismo teria “acabado com a terrível instituição da escravidão”, vemos a prática de escravidão sendo praticada massivamente em centros católicos, com escravos católicos, sendo vendidos para cristãos ortodoxos e muçulmanos através da desumana e biblicamente condenada prática da castração.

Que a prática tinha a conveniência das autoridades seculares e religiosas fica patente pela própria densidade da mesma: do contrário teríamos que assumir que duzentos clérigos escravizados e amontados numa única ocasião passaram despercebidos pelas autoridades da ilha de Veneza.

A prática de castração não se limitou somente às igrejas latina e grega. Na mesma época em que Roma abandonava os Castratos por consternação pública que alimentava o anticlericalismo europeu, os cristãos coptas se mostravam castradores ativos. Estudiosos americanos registram a atividade de padres coptas emasculando meninos-escravos no Egito em 1898 [11], 1900 [12]  e 1919 [13], assim como em décadas ainda mais tardias. 

Os relatos produzidos ecoam em uníssono os métodos bárbaros da castração eclesiástica copta: os escravos, todos advindos de países negros como a Núbia e a Abissínia, tinham cerca de oito anos de idade: jovens o suficiente para terem a voz inalteradas pelas transformações hormonais da puberdade. Os garotos eram presos em tábuas, para não resistirem à cirurgia, que consistia em remover o pénis e os testículos com uma navalha afiada. O real problema, porém, vinham das infeções resultantes do pós-cirúrgico. Para prevenir isto, imediatamente após o corte, o padre-cirurgião enfiava um pedaço de bambu na uretra, permitindo um canal de ejeção de urina. O novo eunuco era então soterrado em um poço de areia até a altura do pescoço, deixado sob sol forte por dois ou três dias até não ocorrerem mais riscos de infecção [14].

Não obstante, mesmo com todos estes preparativos, a taxa de sobrevivência destas crianças era de apenas 10% [14]. Contudo, o retorno financeiro movimentado pela captura e emasculação de crianças subsaarianas era grande o suficiente para justificar a si mesmo:

“Cada eunuco castrado de forma simples custa em torno de 200 dólares. A grande fábrica de eunucos do país, no entanto, é encontrada no Monte Ghebel-Eter, em Abou-Gerghè. Aqui encontra-se um grande mosteiro copta, onde as desafortunadas crianças africanas são reunidas. […] Os monges coptas atuam em um negócio lucrativo, abastecendo Constantinopla, a Arábia e a Ásia Menor com seus muito procurados – e caros – eunucos. Daqui saem dois tipos: aqueles simplesmente castrados e aqueles com ablação completa dos órgãos; o segundo tipo [de eunuco] é vendido de 750 a 1.000 dólares por cabeça. “ [14]

Detalhe que estamos falando do dólar de 1919. Convertendo o valor máximo de um eunuco para moeda moderna significa falar de um pouco mais que 15 mil dólares (US$ 15,024.16), ou cerca de 83 mil reais (cotação de outubro de 2020), por cada escravo. De acordo com a nossa testemunha ocular, cerca de 3.000 eunucos negros eram “produzidos” anualmente pelos padres, resultando numa renda bruta anual de mais de 57 milhões de dólares, ou quase 316 milhões de reais (cotação de outubro de 2020). 

Tudo isto era utilizado por um mosteiro que seguia votos de pobreza e que castrava não pelo deleite sombrio das vozes efeminadas em coro, mas pelo simples lucro!

Bibliografia:

[1] GARLAND, Lynda. Irene (769–802), Byzantine Empresses: Women and Power in Byzantium, AD 527–1204. New York City: Routledge, 1999. p. 89.

[2] ibid. p. 85-87.

[3] HAWKES, D. Idols of the Marketplace: Idolatry and Commodity Fetishism in English Literature, 1580–1680. New York City: Palgrave, 2001. p. 62

[4] MEDIEVALIST.NET. Vikings raided monasteries to feed demand for eunuchs in the east, historian finds. Disponível em: < https://www.medievalists.net/2013/07/the-viking-slave-trade-and-eunuchs-in-the-east/ >. Acesso em 8 de outubro de 2020.

[5] BARBIER, P. C. The World of the Castrati: The History of an Extraordinary Operatic Phenomenon. Cap. 6: “The Castrati and the Church”. Londres: Souvenir Press, 1997. 

[6] BROWN, Jonathan A. C. Slavery and Islam. Simon and Schuster, 2002.

[7] VALANTE, Mary A. Castrating Monks: Vikings, slave trade, and the value of eunuchs. Cambridge: D. S. Brewer, 2013. 

[8] ibid. 

[9] MEDIEVALIST.NET. ibid.

[10] ibid.

[11] ANDREWS, Edmund. Oriental Eunuchs. Chicago: The American Journal of Medicine, vol. XXX, No. 4, 1898. Disponível em: < https://books.google.com.br/books?id=ilIKAQAAMAAJ&hl=pt-BR&source=gbs_navlinkss>. Acesso em 8 de outubro de 2020.

[12] REMONDINO, Peter C. History of Circumcision. Honolulu: The Minerva Group Inc, 2001. p. 99. Disponível em: <https://books.google.com/books?id=VS-2aLdskbAC&pg=PA99>. Acesso em 8 de outubro de 2020.