A história do Mediterrâneo é toda permeada por conflitos, encontros, alternância de povos e imigrações. E a Sicília está lá, no centro daquele mar, a ilha-coração da Europa e do Mediterrâneo. Ao longo de sua história milenar tem sido receptáculo de diversas culturas, de povos dos quais conserva traços indeléveis não apenas na arte, nas expressões linguísticas, mas também em seus espaços físicos e ambientais tão variados.

A Sicília tem sido desde sempre uma terra disputada pelas maiores potências, criando assim uma história feita por várias dominações que se sucederam de tempos em tempos.

Criando assim novas estruturas políticas e hegemonias; dos tiranos das colônias gregas aos procônsules romanos, depois os bárbaros, os bizantinos, os árabes, os normandos, os monarcas da Suábia, os angevinos aragoneses, o vice-rei espanhol, os bourbons que foram os últimos governantes da história antes de cederem lugar à dinastia de Saboia. Neste trabalho irei me focar nos traços e na influência da cultura árabe medieval na cultura siciliana, mas acima de tudo em quanto da cultura árabe ainda existe hoje na Sicília?

Primeiramente a conquista árabe da Sicília iniciou oficialmente no ano 827, todavia já havia incursões numerosas desde o longínquo ano de 652, apesar destas tentativas terem todas falhado. No entanto a expedição definitiva foi efetuada quando o rebelde Bizantino Eufemio [1] chamou aos árabes por ajuda. A conquista foi difícil, Palermo a teve em 831 e Messina em 843, com a ajuda das tropas napolitanas. Enna, chamada por eles de Kasr Janna (Castrogiovanni), foi tomada em 859. Os últimos a cederem foram Siracusa em 878, Catânia em 900, Taormina em 902 e finalmente completaram a ocupação com a queda de Rometta na área de Messina no ano de 965. A expedição árabe foi guiada por um jurista de setenta anos chamado Asad Ibn Furàt [2], mas as suas tropas tiveram dificuldade em conquistar a ilha devido à escassez de alimentos.

Durante a dominação árabe na Sicília não houve um reino unitário, todavia vários senhores menores dirigidos diretamente de Kadi. Então os árabes dividiram a ilha em grandes distritos administrativos, Val di Mazara que era a parte centro-ocidental, Val Demone que abarcava a parte setentrional-oriental e Val di Noto na parte meridional. A Sicília foi inicialmente uma província do estado Aglábida, porém depois da queda daquela dinastia passou à dependência dos Fatímidas do Egito, até que em 960 se tornou independente de fato, transformando-se num principado hereditário com a dinastia Cálbida (948-1040), sob a qual atingiu o máximo de seu esplendor [3].

Quando a Sicília passou a pertencer ao mundo árabe, introduziram economicamente um novo sistema de agricultura, substituindo a monocultura do trigo com a variedade das culturas que eram importantes para eles; arroz, citrinos, algodão, cana-de-açúcar, tamareiras, trigo duro, alfarroba, pistache, amora, legumes, berinjelas, espinafres, melões etc. Eram mestres na exploração dos recursos hídricos, substituindo o cultivo local com eficientíssimos sistemas de irrigação. Também reinserida nas rotas marítimas de trocas comerciais torna-se o centro das atividades no Mediterrâneo e ascende a um papel dominante. Durante os 200 anos de dominação trouxeram à ilha a cultura, a poesia, as artes, as ciências orientais e embelezaram seu reino com monumentos estupendos. Como afirmava o historiador italiano Antonio De Stefano, especializado no estudo do Medievo:

“A cultura árabe-siciliana, desde a época dos emirados Cálbidas, já havia alcançado um prodigioso florescimento. Haviam florescido os estudos em teologia, jurisprudência, medicina, astrologia, mecânica, gramática, filologia, história e, sobretudo, a poesia. A maior parte dos doutores e cientistas eram também poetas[4].”

A dominação árabe na Sicília somente é reconhecida como tolerante porque as instituições da ilha foram preservadas e os cristãos foram autorizados a viver segundo o próprio credo religioso, com os mesmos direitos de propriedade de que desfrutavam os muçulmanos. Pagavam mais impostos e não podiam construir novas igrejas, não podiam nem mesmos soar os sinos dos templos, fazer procissões, tampouco ler a bíblia na vizinhança de um muçulmano, todavia no geral os novos governantes eram abertos e tolerantes à população siciliana de fé diferente. Em todo caso, nunca forçaram a conversão ao Islã na população local.

O historiador e medievalista Lynn Townsend White observa que os muçulmanos foram tolerantes com os cristãos (segundo a Dhimma), e não fizeram nada de concreto para impedir o ascetismo dos monges sicilianos ou até mesmo a sua pregação, ele nota que os relacionamentos entre basilianos e muçulmanos eram “em tudo cordiais”. Tanto que um poeta árabe do séc. XI, Ibn Hamdis, narra que quando era adolescente os jovens muçulmanos de Siracusa costumavam ir de noite num mosteiro feminino para beber um bom vinho envelhecido que era oferecido por uma anciã religiosa[5].

No que diz respeito à documentação árabe produzida pela administração muçulmana na Sicília, perdeu-se e restam apenas crônicas históricas, geográficas ou literárias, geralmente de escritores que viveram durante o período normando, que escreveram referenciando as fontes que hoje não estão mais disponíveis.

Graças à “Arabica Impostura”, organizada pelo abade Giuseppe Vella, que se apresentou como um profundo conhecedor da língua e da história árabe e inventou dois códigos árabes, renovando o interesse por este período histórico. O abade foi auxiliado pelo governo borbônico que procurava, se inspirando na antiga administração árabe, redimensionar o poder baronial e a prática do latifúndio. Foi Rosário Gregório, no entanto, quem conseguiu aprender o árabe, desmascarando Vella. A “Arabica Impostura” deu origem a uma série de estudos conduzidos por Salvatore Morso, sucessor de Vella na cadeira de árabe, Giuseppe Caruso e, finalmente, Michele Amari, com sua gigantesca obra “Stori dei Musulmani di Sicilia”, que também é conhecido por outra obra colossal “La Biblioteca Arabo-Sicula”. Os seus estudos acerca da presença árabe na Sicília traçaram um caminho que ainda hoje é um importante ponto de referência. Por Amari foram seguidos vários orientalistas, dentre eles o maior de todos, segundo a opinião de muitos, é justamente Umberto Rizzitano. E não esqueçamos o historiador e arabista italiano Francesco Gabrieli.

Foi a partir do séc. XVI, como é reconhecido por todas as partes, que ficou óbvio no Ocidente o processo de aperfeiçoamento da técnica historiográfica e da metodologia, consistindo numa elaboração mais precisa dos dados histórico-cronológicos e filosóficos, até meados do séc. XVIII. Na Sicília foram importantes as contribuições de Tomasso Fazello (1498-1570), considerado o pai da história siciliana e autor de “Storia di Sicilia”, em que a história é considerada lux veritatis, mesmo quando este lidou com os períodos relacionados ao Islã na Sicília.

Então os estudos arabísticos em sentido estrito do período compreendido, entre o final do séc. XVIII e início do séc. XIX, encorajaram o desejo da aquisição de novos conhecimentos distantes aos que se possuía na Sicília acerca do passado islâmico, solicitando interesses e investigações com maior rigor no contexto do redescobrimento deste grande momento, que para a Sicília havia sido representado pela época árabe-normanda.

Mesmo após a conquista normanda a cultura árabe, todavia, permanecerá, em várias formas que ainda hoje são reconhecíveis no povo de Palermo; as expressões idiomáticas, os costumes, os hábitos alimentares, a arquitetura, os topônimos e as crenças derivando daquele longo período de dominação árabe.

O escritor, ensaísta e jornalista siciliano Vincenzo Consolo diz:

“Venho da Sicília, a região mais árabe da Itália e uma das terras mais árabes do mundo(...) Com a civilização árabe, que durou dois séculos e meio, a civilização passou por um tipo de renascimento: descobriu a técnica da agricultura, viu florescer as artes e as ciências e se difundirem princípios de igualdade e tolerância. Quando os normandos chegaram e trouxeram a ilha de volta ao cristianismo, o legado dos derrotados foi aceito e incorporado, tanto que apenas no reino de Rogério II da Sicília Palermo contava com 300 mesquitas, assim como com sinagogas judaicas e igrejas cristãos dos dois ritos, romano e bizantino[7].”

Além disso ele afirma que ainda hoje, de fato, a terminologia dos pescadores tunisianos é no dialeto siciliano, enquanto que muitas palavras camponesas da Sicília são árabes. Deve-se notar que os idiomas se encontram.

Houve uma notável influência linguística; neste caso os principais termos de origem árabe também são aqueles que se referem ao cenário bucólico, com referências ao campo e a tudo o que se relaciona a este. De quando os árabes introduziram novas espécies de plantas e um novo sistema de irrigação. Entre os termos de origem árabe clara, mencionamos alguns:

- Fawwara: primavera impetuosa e abundante.

- Gebbia: bacia retangular para receber água a ser usada especialmente em épocas de seca.

- Gabiya: enxada d’água.

- Sabba: medida de água.

- Giarra: recipiente.

- Marzappa (Mirzaba): bastão para debulhar os grãos.

- Zzàccanu (Sakan): lugar onde os animais são trancados etc.

Segundo o filólogo e mediterranista Alfonso Campisi, em seu livro “Ifriqiyya et Siqillyya, un jumelage méditerranéen, Editions Cartaginoiseries-Tunis, 2009”, o historiador e arabista italiano Umberto Rizzitano, na conferência realizada em Tunis, foi o primeiro a destacar a similitude que tornava a Ifriqyya e a Siqillyya gêmeas iguais no Mediterrâneo. De prontidão a conferência foi intitulada "Ifriqiyyà et Siqilliyyà, a jumelage méditerranéen", na qual o grande pesquisador siciliano esperava por uma reconciliação desses dois países evidentemente através de sua filiação cultural. Sugerindo a geminação de Palermo a Qayrwàn, de Mazara a Monastir, de Trapani a Sousse e de Siracusa a Sfax[8].

Ainda hoje, segundo as crenças árabes, os sicilianos em seus costumes e tradições colocam o chifre de coral no pescoço da criança, de modo a protegê-la por ser mais sensível ao mau-olhado.

Logo sob a dominação árabe veio o nome de Marsala (Marsa-allah) = porto de Deus, ou segundo outra origem Marsa Ali = porto de Ali. Numerosos topônimos; Caltanissetta, Caltagirone, Caltavuturo etc [9], derivam seu nome de “Kalat”, castelo. Há também termos comerciais como funnacu (armazém), sensale (corretor), termos agrícolas como fustuca (pistache), zagara (flores de laranjeira ou limão), giggiulena (gergelim), outras palavras como giurana (sapo), zotta (chicote), e sobrenomes como Badalà, Vadalà (servo de Allah) e Fragalà (alegria de Allah).

Hoje os vestígios da civilização árabe se fazem bastante presentes na ilha, do ponto de vista de alguns historiadores e estudiosos que se interessam pela cultura arábica. O professor Alessandro Vanoli, especialista no conhecimento das culturas mediterrâneas, autor do livro “La Sicilia Musulmana (Il Mulino, 2012)”, disse-me: “O meu livro de alguns anos atrás foi uma tentativa de fazer um levantamento na pesquisa historiográfica acerca do período da conquista islâmica da Sicília. Creio que há muita cultura árabe, todavia não que esta parcela cultural chega à Sicília simplesmente através do período de dominação, mas que deriva da inevitável proximidade geográfica com o mundo do norte da África.”

A história da influência cultural árabe-islâmica no sul peninsular teria que ser descrita não tanto com base nos textos árabes, mas nas pistas já estudadas por alguns historiadores de áreas limitadas, das fontes ocidentais (crônicas, textos, hagiografias, arquivos documentais e outras) e, sobretudo (mas seria necessário uma equipe de especialistas), com base no exame dos vestígios no folclore e nas tradições populares, no campo da cultura material, nos setores epigráfico, artístico e arquitetônico, no campo linguístico-lexical e na filosofia. 

Até o início do séc. XIII havia homens de grande cultura, principalmente nas mesquitas, nas quais se estudava e ensinava lexicografia, gramática, ciências religiosas e até jurisprudência (chamada fiqh ou hadith em árabe), como Ibn Rachiq, Ibn al-Fahhàm (1062-1112), Zafar-as Siqilli (falecido em 1171) e Ibn Qattà (1041-1121), autor de uma história na Sicília, agora perdida, e de um compêndio de poemas árabe-sicilianos, uma pérola preciosa acerca dos poetas da ilha. Desta apenas fragmentos foram encontrados e com o advento dos Normandos Ibn Qattà decidiu emigrar para o Egito[10]. 

Por volta do ano mil nasceu na Sicília uma importante escola de poesia árabe que, em quase três séculos de atividade, deixou preciosos vestígios de uma rica produção e de um entrelaçamento de culturas indelével. A escritora italiana arabista Maria Francesca Corrao, em seu livro “Poeti Arabi di Sicilia”, renova esta relação profunda, torna-a viva à experiência e à sensibilidade do presente. Entre os poetas árabes nos recordamos de Al-Ballanùbi, Abd al-Rahmàn al-Atrabanshi (séc. XII), membro da corte real normanda de Rogério II da Sicília, também chamado de secretário. O poeta celebra a doçura e a beleza de uma residência real em Palermo, em Favara:

Que visão você oferece, palácio sublime de Favara!

Tu, estada de voluptuosidade, nas margens dos dois mares.

Em nove riachos que brilham claros entre o verde das árvores,

Dividiu a água para umedecer os jardins[11].

Esquecido durante a maior parte do séc. XX, Ibn Hamdis é citado por Leonardo Sciascia no artigo de 1969, “Sicilia e Sicilitudine”, incluído na coleção “La Corda Pazza”. Desde a década de 90 a Itália testemunhou uma reavaliação do trabalho de Ibn Hamdis, mesmo fora dos estudos árabes, e de maneira geral da cultura árabe na Sicília. Isto também inspirou músicos e poetas italianos. Na obra do poeta siciliano Sebastiano Burgaretta é nítida a influência de Ibn Hamdis, e Burgaretta dedicou uma lírica intensa ao grande poeta árabe-siciliano na língua siciliana, que posteriormente venceu o prêmio “Vann’antò Saitta”. Em 2007, na Sicília, os eventos Zagara e Rais, sob o patrocínio da região siciliana com a curadoria de Antonio Reitano, “Poesia Araba Siciliana” pretendeu homenagear os poetas árabes da Sicília.

Na verdade o maior expoente da poesia árabe na Sicília, entre os séculos XI e XII, foi o poeta Ibn Hamdis (1056-1133), quando a conquista normanda já estava em estado avançado ele deixou a ilha para ir a Al-Andalus, depois Sevilha. Foi recebido na corte do príncipe, poeta e mecenas Muhammad al-Mutamid. Ibn Hamdis, poeta das extravagâncias amorosas, da embriaguez voluptuosa e dos jardins floridos, também poeta civil da pátria perdida:

Ó vento, quando trazes a chuva para recriar os campos sedentos,

Empurre as nuvens secas para mim, para que eu as sature com minhas lágrimas.

Deixe minhas lágrimas molharem a terra, onde passei minha juventude;

Oh! Que ela seja sempre banhada em lágrimas no infortúnio[12].

O grupo musical Milagro Acustico dedicou três álbuns à poesia dos poetas árabes da Sicília, e especialmente a Ibn Hamdis: Poeti Arabi di Sicilia (2005), Siqilah Terra d’Islàm, Viaggiatori e Poeti Arabi di Sicilia (2007) e Sicilia Araba (2013)[13]. Há um papel importante na difusão da cultura mediterrânea no mundo e particularmente à cultura árabe. O conjunto é liderado pelo multi-instrumentista, compositor e escritor italiano Bob Salmieri, que conversou comigo acerca da influência da cultura árabe na Sicília de hoje:

“A Sicília sempre foi uma encruzilhada importantíssima no Mediterrâneo, e vários povos pararam e deixaram seu testemunho, mas nenhum como os árabes transformaram tão profundamente o caráter das gentes e a própria morfologia da ilha. De fato em quase três séculos de dominação são muitos os traços deixados pelos árabes na forma de viver, trabalhar e comer. Pensemos na agricultura, com sistemas de irrigação e nas tantas espécies de pássaros e árvores trazidas para a Sicília, ou na pesca. Até alguns anos atrás a pesca do atum ainda era praticada nas Ilhas Égadi (de onde vem a minha família) com o sistema chamado Mattanza(...). O chefe dos pescadores se chamava Rais. Na cozinha há dezenas de pratos típicos que derivam da culinária árabe, como o Cuscuz. Sem falar na poesia, redescoberta em meados do séc. XIX por Michele Amari, que traduziu e compilou o “Storia dei Musulmani di Sicilia”. Infelizmente pouco sobrou na arquitetura devido ao tempo e à vontade católica de destruir os vestígios islâmicos.

Todavia, além de tudo isso, os traços da civilização islâmica podem ser encontrados na natureza das pessoas, nos traços somáticos que caracterizam a população de “sangue árabe”, que se distingue bastante da de sangue normando, de pessoas altas e loiras.

Acredito que os sicilianos tenham herdado dos árabes o sentido de hospitalidade, de família, de estarem unidos, de orgulho e o senso de honra, importantíssimo na Sicília. Até 50 anos atrás era possível ver, especialmente no interior, mulheres com véus escuros em todas as estações, inclusive no calor do verão siciliano.”

Então em 2011 o artista siciliano Franco Battiato musicou algumas obras de Ibn Hamdis, num projeto intitulado Diwan, “A Essência da Realidade”, buscando comemorar o 105º aniversário da unificação italiana com uma homenagem à riqueza de suas raízes culturais[14].          

Seguindo, os traços arquitetônicos da dominação árabe são tão raros que sugerem que as culturas posteriores, particularmente a angevina e a aragonesa, realizaram um cancelamento sistemático daquilo que foi construído. Ao invés dos vestígios que podemos apreciar, a Ziza (do árabe Aziza) ou San Giovanni Degli Eremiti, em Palermo, não foram construídas pelos muçulmanos, mas no período seguinte pelos normandos que, todavia, utilizaram a tecnologia islâmica. E a denominação desses edifícios tem derivações do árabe. Como o castelo de Cuba (do árabe qubba, cúpula), a Capela Palatina (ou seja, palácio) e o parque real de Favara, do árabe Fawwàra (Primavera), e o Kalsa, que deriva do árabe al-Khalisa (o escolhido), é o nome de um antigo bairro de Palermo construído pelos árabes, uma espécie de cidadela fortificada fora das antigas muralhas da cidade, uma posição de elite onde o emir e seus dignitários viviam separados do povo. Hoje Kalsa é um bairro popular que não carrega praticamente nada de árabe, porém é um baú de tesouro que contém alguns dos mais belos monumentos de Palermo, como joias.

A tese da destruição ou manipulação da arquitetura muçulmana na Sicília é comprovada pelo pórtico sul da catedral de Palermo. Nesta ainda é visível uma coluna árabe com um verso do Corão gravado (verso 54 da surata 7, conhecido como Limbo) que cita: “Ele cobre o dia com o véu da noite, que o sucede ambiciosamente; e o sol e a luz, e as estrelas Ele criou, sujeitos ao Seu comando. Não é a Ele que pertencem a criação e a Ordem? Bendito seja Deus, o senhor da criação!”

Outro esplêndido monumento ao estilo islâmico é o castelo de Maredolce[15], ou de Favara, que recebeu o nome da nascente de Fawwarah, que estendia-se do Monte Grifone até o mar. Até mesmo o nome de Maredolce se refere à grande nascente (agora em elevação diminuída) que nasce de uma caverna no sopé do Monte Grifone e que outrora formava o mar pequeno. Segundo Amari este solário, seu balneário (agora destruído), o lago, devem ser atribuídos ao emir cálbita Giafar, e ainda segundo o historiador devido ao seu governo ruim o povo insurgiu e atacou o prédio no ano de 1019; o emir foi levado ao exílio e Ahmed foi eleito para o seu posto. O castelo foi conquistado em 1071 pelo conde Ruggero. Pelo testemunho da crônica de Ramualdo Salernitano, o Rei Ruggero a construiu, repovoando também o famoso lago e a ilha, tão elogiados pelos poetas da corte do emir. O castelo permaneceu como um solário real mesmo no período da Suábia[16].

Este castelo está localizado no bairro de Brancaccio, em Palermo, hoje a “Associação Cultural do Castelo de Maredolce” (nasceu em 1999), possuindo uma importante contribuição na valorização, recuperação e abertura à cidadania do parque de Maredolce e seu relativo desfrute, trabalha para promover a aceitação, o respeito e a proteção. Acima de tudo para fortalecer a recuperação da memória histórica do bairro.

No fim a Sicília, mais que qualquer outra região italiana, contém em si traços de várias culturas que ao longo do tempo, por vezes, tentou-se apagar ou esquecer e que hoje almejamos redescobrir e recuperar, como no caso da civilização árabe. Na cultura siciliana evidentemente se encontram influências fortes e predominantes vividas por muitos séculos. De fato, com base na cultura árabe, os sicilianos construíram sua vida e seu pensamento, e a cultura árabe se reflete nestes. Segundo o escritor paquistanês Tariq Ali, do qual partilho plenamente o ponto de vista, afirma que: “o mundo árabe conhece muito pouco da Sicília, da sua cultura e das suas tradições. Só agora começaram a traduzir para o árabe alguns textos acerca da presença islâmica na Sicília. Todavia os reis normandos são conhecidos e apreciados, já o geógrafo árabe al-Idrisi é muito menos admirado, pois quando muitos intelectuais árabes partiram para a Espanha, diante dos primeiros sinais de intolerância, ele permaneceu em Palermo e, portanto, veio a ser considerado um colaborador”.

Notas:

[1] Ele foi o promovedor da ocupação árabe na Sicília, representada de maneiras diversas e contraditórias pelas várias tradições latinas, bizantinas e muçulmanas, e julgado de formas distintas pelos historiadores modernos. É provável que no início da terceira década do séc. IX ele, bastante audacioso e entre os mais ricos optimatoi e também turmarca, ou seja, líder militar de um dos distritos da Sicília bizantina, conspirou com outros turmarcos contra o patrício Gregora, que foi morto. O Imperador Miguel II, o Gago, enviou então o estrategista Fotino para suprimir estes líderes, que tentou acabar com a conspiração e punir seu conspirador. Euphemius foi acusado de ter seqüestrado uma menina do convento: não o rebelde, portanto, mas o sacrílego teve que sucumbir à lei. Porém os cúmplices de Euphemius, vislumbrando o próprio perigo no que ocorreu a ele, rebelaram-se abertamente, derrotaram e mataram o estrategista, proclamando Euphemius imperador (826). Contra ele, no entanto, rebelaram-se outros capitães; então Euphemius foi forçado a fugir para a África, onde em al-Qayrawan induziu o príncipe aglábida Ziyadat Allah a aceitar a soberania da Sicília, recebendo tributos e as forças necessárias. Destes, Asad ibn al-Furat pediu e obteve o comando, desembarcando em Mazara em 16 de Junho de 827. Contudo, na primeira demonstração das hostilidades, desconfiando de Euphemius, avisou-o que permanecesse distante. Quando o vitorioso Asad avançou para sitiar Siracusa, Euphemius secretamente instigou os siracusanos à resistência. Então, em Castrogiovanni, recebeu uma promessa de submissão daqueles cidadãos. Porém, tendo ido no dia seguinte ao local combinado para o juramento, os supostos súditos o assassinaram e carregaram triunfantemente sua cabeça para dentro de Castrogiovanni (828). “Michelangelo Schipa, Eufemio da Messina, in Treccani (Enciclopedia italiana), Roma, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1932, URL consultato il 09/03/2016. E ved. Cfr, Habib Jenhani, al-Qayrawàn (Attasis wa Izdihàr), Sotepa Graphic-Tunis, 2010, pp 112-113”.

[2] Era um africano de al-Qayrawàn, mas com estudos em Medina e Kufa, de primeira escola malikita (com os mestres Ibn Anas e Ibn Wahb) e depois hanafita (com o mestre ash-Shaybàni), do qual se recorda a obra “Assadiyya”, que sintetiza suas concepções jurídicas. Na época uma das acusações mais frequentes dos estudiosos contra os governantes dizia respeito ao estilo de vida excessivamente luxuoso do qual frequentemente se abstinham. Precisamente acerca desta questão Ibn al-Furàt, na época do califa Imã al-Mamùn, entra em conflito contra o emir aglábida da Ifríquia, Ziyadat-Allah, é então em 827 que é nomeado comandante de uma expedição contra a Sicília Bizantina, na qual terá sucesso, determinando a presença islâmica na ilha por mais 200 anos. Asad morrerá da peste perto de Siracusa, logo após a campanha, ainda que seja necessário esperar até 902 para que a conquista aglábida seja concluída. “Glauco Da’Agostino. La lunga Marcia Dell’Islàm Politico, Gangemi Editore, 2013, p 19”.

[3] Giovanni Cucinota, Ieri e oggi Sicilia ( storia, cultura, problemi ), Ed Pellegrini Cosenza-Italy, 1996, p 49.

[4] Antonio De Stefano, La cultura in Sicilia nel periodo normanno, Nicola Zanichelli Editore-Bologna, 1954, p 12.

[5] Calogero Ferlisi, Il Breviario Miniato dei Carmelitani di Sutera, Officina di studi Medievali, 2004, pp 90-91.

[6] Antonio Pellitteri, Michele Amari e gli studi islamici in Sicilia, Kalòs Edizioni d’Arte, n. 1, 2007.

[7] Leonetta Bentivolgio, L’islàm dei nostri antenati, La Repubblica.it, 12/01/2005, consultato il 19/03/2016.

[8] Mokhtar Triki, Pour le rapprochement des deux contrées. Publication : «Ifrqiyyà et Siqilliyyà», un jumelage méditerranéen d’Alfonso Campisi, Le Temps, 5/02/2012, consultato il 18/03/2016.

[9] Houcine Tlili, Ifriqiyyà et Siqilliyyà de Alfonso Campisi un livre à lire!, La Presse de Tunisie, 17/05/2010, consultato il 19/03/2016.

[10] Alberto Costantino, Gli arabi in Sicilia, Antores-Palermo, 2010, p 66.

[11] Antonio De Stefano, op. cit, p 16.

[12] Ibidem.

[13] Poeti arabi di Sicilia 827-1091, in http://www.milagroacustico.net/#!poeti-arabi-di-sicilia/cykh, consultato (22/03/2016).

[14] Poeti arabi di Sicilia 827-1091, in http://www.milagroacustico.net/#!poeti-arabi-di-sicilia/cykh, consultato (22/03/2016).

[15] O viajante andaluz Ibn Giubayr, que chegou em Palermo em 1184, descreveu um castelo (Qasr), que corresponde ao castelo de Maredolce “Não muito longe de Qasr Sàd, a aproximadamente uma milha do caminho que conduz à capital, existe outro castelo semelhante, que chama-se Qasr Giafar, dentro do qual existe um berçário (alimentado por) uma piscina de água doce”. Ver Michele Amari, Arab-Sicilian Library, Catania-Syracuse, 1982, 1, p 154.

[16] Maredolce, studiare il territorio di Maredolce/Brancaccio e valorizzarlo come distretto culturale e turistico, a cura di Liceo scientifico Ernesto Basile di Palermo, Ed Amici di Plumelia, 2014, p 63.

Fonte: www.italiamedievale.org