Para isso mesmo, estamos no coração do Minho, na terra onde o “pica no chão” se tornou emblema: Vila Verde, mais propriamente no restaurante “Retiro”, em Cervães. Vila Verde (circundada por Braga, Ponte da Barca, Ponte de Lima e Amares) é uma terra franca, de apaixonados (os lenços dos namorados, tradição setecentista, aqui nasceram) e de outras referências famosas como o “cuardo” (caldo à lavrador).

O “pica no chão” diferencia-se logo pelo frango criado em casa, que pica o milho e as verduras ao ar livre, tornando a matéria-prima marcante e diferente no sabor. A criação de aves de capoeira, tal como a pequena pecuária, definem, aliás, a economia local minhota, estando homologadas quatro raças de aves autóctones na região. A produção de ovos é outra fonte alimentar e um importante recurso complementar à criação avícola. Um ciclo de sustentabilidade, portanto.

Para começar um arroz de cabidela basta ir, assim, ao quintal. Manda a tradição que se execute o momento facínora de afiar a faca e tirar a tosse ao bicho, deixando-o sangrar pelo pescoço, ao qual se junta algum vinagre para não coalhar e um pouco de verde tinto, já agora que estamos na terra dele. Claro quem tem um restaurante deixou de o poder fazer assim, porque é ilegal segundo normas da ASAE. De seguida, o frango escalda-se e é depenado, chamuscando-se então com ajuda de aguardente e limpando-se o seu interior das vísceras.

D. Conceição, uma cozinheira de mão-cheia, à frente do restaurante “Retiro” há quase 50 anos, já pica a cebola enquanto o galo descansa após lhe terem “tirado o pio”. Esta operação também deve ser feita só por quem sabe, de forma a carne não enrijecer. O descanso oblitera o “rigor mortis”. Para se conseguir um belo galo, saboroso e com consistência, ele deve ter pelo menos seis meses, segundo nos conta esta bela cozinheira. Este galo tem quase quatro quilos e é bem dourado, sinal que comeu milho da terra. Aqui não há cá carne de aviário, um sacrilégio.

O objetivo agora é conseguir um arroz carolino cremoso, aveludado, com um leve aroma avinagrado e paladar forte. Para aqueles que gostam de arroz sequinho, tirem o cavalinho da chuva. A proteína albumina acaba por ser o motor do processo, engrossando com alta temperatura. Para isso, D. Conceição deixa alourar a cebola e três dentes de alho bem miudamente picados num estrugido cor de caramelo. “É importante que a cebola ganhe cor e fique acastanhada, bem puxada”, sublinha, enquanto gira a colher de pau num belo refogado. O azeite é de Trás-os-Montes, porque aqui a matéria-prima é sempre muito importante.

Junta-se o frango partido aos pedaços e os miúdos, tempera-se de sal e um pouco de piri-piri, ficando assim a cozinhar e a abeberar umas belas três horas em lume brando, porque este é um frango do campo. No ar já se evola um cheirinho de cair para o lado, a prometer uma cabidela divinal. Já no final, deita-se o sangue com vinho tinto verde e um cheirinho de vinagre mesmo para tirar algum travo de gordura, apesar de o excesso ter já sido retirado da superfície. Uma cor achocolatada envolve o frango num arroz apetitoso que se espraia e solta aromas de perdição. O sangue garante, assim, não só a consistência como a cremosidade. O sangue faz parte do nosso ADN. Somos sanguíneos, apesar de pacíficos. A sua utilização nos pratos da cozinha portuguesa perde-se no tempo e é uma das suas principais caraterísticas. O “verde”, prato do Norte confecionado à base de entranhas de diversos animais, (a chamada fressura) sangue e pão tem raízes imemoriais, por exemplo, e Herculano já dele falava. Homero referia enchidos de sangue na Odisseia. A nossa utilização do sangue tem essencialmente uma razão: trata-se de um aproveitamento alimentar, uma forma de não desperdiçar nada de um animal, até à útima gota, podemos dizer. Precursores e hoje na moda, portanto. O Food Lab nórdico já o repescou como emblema na cozinha contemporânea.

O aproveitamento, a necessidade de usar tudo devido às carências alimentares dos mais pobres era uma exigência, daí muitas das criações de pratos portugueses baseados nesta ideia de sustentabilidade. O sangue acaba por ser um fortificante e, como os miúdos dos animais, era bom para alimentar. Os mais pobres comiam a cabidela sem carne de galinha, que podia ser também usada para doentes. Daí o provérbio popular: “À custa do doente come toda a gente”.

Portugal é bem capaz de ser dos países que mais sangue utiliza na confeção dos seus pratos. Mas vietnamitas, italianos, polacos, franceses, suecos, filipinos e espanhóis, russos, chineses e até ingleses são apenas alguns dos que o usam em certo receituário. A raiz em Portugal poderá ainda estar nos chamados interditos alimentares: os cristãos-novos de mouros e judeus não usavam o sangue, pois todos os animais que consumiam eram sangrados, segundo as suas leis religiosas. O mais certo era que os portugueses cristãos aproveitassem os seus desperdícios. A cabidela inicial árabe não integrava sangue mas só os miúdos da ave, receita que assim permaneceu ainda durante vários séculos. 

O sangue, não só por ser uma substância permitida entre os cristãos, como de simbolizar um aproveitamento alimentar nutritivo, e com bastante proteína - algo essencial em alturas de escassez e recurso alimentar para as classes mais desfavorecidas – sempre foi, assim, muito usado entre nós. Mas se os cristãos comiam o sangue, muitas vezes os mouros e judeus juntavam especiarias para o molho se assemelhar ao acastanhado que indiciava sangue para enganar a Inquisição. Inicialmente, a cabidela seria, de facto, feita sobretudo com miúdos de animais, tal como o sarapatel. Bluteau escrevia que, no século XVIII, a cabidela era o conjunto de miudezas – moelas, fígados, coração de aves. Só mais mais tarde, já no século XIX, Morais e Silva conclui que esta composição deveria ser feita acrescentando molho pardo, o equivalente a sangue. Mesmo já no século XX, no livro de Carlos Bento da Maia, surge uma receita de arroz de cabidela confecionado com “asas, pescoço, moela e coração” de aves. Aqui em Vila Verde os miúdos incorporam igualmente a cabidela.

Quanto à cabidela, sabe-se que as grandes preferências dos árabes iam para a criação de aves que também tinha, tal como as outras carnes, uma forma especial de ser degolada e sangrada para que fosse considerada lícita. Tudo aponta para que as origens da cabidela sejam árabes, pois o étimo da palavra é muçulmano. A etimologia da palavra cabidela remete para “cabo, na aceção de cabos das aves” e o prato é já referida no século XVI por Camões, que a cantava no Auto de Filodemo: “Das lágrimas caldo faço,/ do coração escudela:/ esses olhos são panelas/ Que coze bofes e baço/ Com toda a mais cabedela”. Ou seja, o sangue está-nos na alma.

Outra referência para a origem do termo cabidela é expressa por Frei João de Sousa (1743-1812) que, na sua obra “Vestígios da Língua Arábica em Portugal”, para o verbete “Cabidela”, classifica como “Termo de Cozinha” (p. 126): “espécie de guisado, que se faz dos miúdos das aves de pena, particularmente dos perus. Os Árabes lhe chamam quebdia, guisado feito das entranhas, isto é, moela, fígado e fressura de qualquer rês. Deriva-se da palavra quebdón o fígado”. Habitualmente, é acrescentado vinagre, outro hábito muçulmano. O facto da etimologia das palavras “cabidela” e “chanfana” ou “bazulaque” serem árabes dá que pensar. Ou seja, o arroz foi acrescentado ao prato inicial, mais uma vez para fazer lastro e aumentar a refeição, já que é introduzido no século XVIII e só no século XIX este começa a ser um prato de referência.


Um imenso receituário com sangue

Não será por acaso que muitos dos pratos que incorporam sangue também introduzem vísceras ou “miudezas”, como é o exemplo da cabidela de miúdos, casos do sarapatel ou do bazulaque. Podia ainda ser usado em papas ou em arroz (arroz de sarrabulho). Essas facetas continuam hoje a ser características identitárias da cozinha portuguesa. Por isso usamos também tanto pão nas nossas confeções, das açordas às migas, ou até em doces. O sarrabulho e a cabidela (Norte), o bazulaque (Norte e Bairrada), o laburdo (Beira Baixa), a burzigada (Guarda), a cachola, rexina ou a moleja – também apelidada “sorraburra” - (Alentejo), o debulho (Açores), a sopa de xis (Trás-os-Montes), com sangue de porco cozido, a roleira (Ribatejo) as momas (Murça), borlhões (Monsanto), queixifrotes (Foz Côa), o sarapatel (Castelo de Vide), o plangaio (Oleiros) ou a cabidela minhota são pratos que têm por base sangue e miúdos, o primeiro acrescentado pelos cristãos. Muitos destes pratos foram descontinuados ou são hoje pouco conhecidos, o que nos leva a interpretar que seriam, assim,“clandestinos” porque equiparados a mouros e judeus, ou vistos como menos nobres, já que feitos com vísceras e aproveitamentos. Outra característica é que todos eles têm nomes que hoje nos soam estranhos.

Quanto aos enchidos, constituem outro subproduto onde o sangue é também aproveitado e conservado. As belouras, o chouriço de sangue, as morcelas, azedos e sanguineiras, o bucho, chouriços de sangue à transmontana e as mouras são alguns desses exemplos. Este hábito cultural de comer sangue pode ter nascido como forma de reiterar uma afirmação cristã – contrariando o outro que não usa sangue e não come porco, mas também como aproveitamento das carnes e sangue não usados pelas outras comunidades religiosas, utilizando, assim, o que judeus e árabes não comiam, dentro da semântica do “aproveitamento” (de algo que era não utilizado pelo “Outro”). Gestos seculares como degolar a criação e tapar o sangue com terra ou lavá-lo com água, refogar cebola em azeite e nela cozinhar os alimentos remontam a hábitos dessas comunidades.

O sangue chega ainda até a ser usado como sobremesa ou prato doce, como é o caso do sarrabulho doce (Minho) ou das papas de moado (Beira Litoral). Acrescentando-se especiarias, tal como nos pratos salgados. O facto de ser muito presente o aspeto da condimentação com especiarias (cravinho e cominhos no sarrabulo e canela, cravinho, cominhos e tamarindo) ou chamados adubos pretos, poderia exatamente servir para mascarar o aspeto do molho (imitando a cor negra do sangue cozido) pelas minorias religiosas, fingindo que comiam sangue nos tempos inquistoriais.

A grande maioria (exceto o sarapatel e cabidela) é confecionada com sangue de porco ou carne de borrego. 

A cabidela também viajou pelo mundo. Foi levada pelos portugueses para a Índia (cabidela de leitoa) e Macau (Ade Cabidela), feita com pato, ou Angola (cabidela de galinha). Mas enquanto o sarapatel de Castelo de Vide é feito com cabrito e seu sangue, em Goa é feito com miúdos de porco, tal como a cachola de Portalegre. No Brasil, há, igualmente, muitas receitas com utilização do sangue e com atribuição da designação “cabidela”, sendo que Nordeste ganha o nome de “molho pardo”, mais uma vez devido à tonalidade do molho, sendo que a palavra pardo significa também “mulato”. Mas agora deixemo-nos de histórias e saboreemos este arroz de cabidela, de comer e chorar por mais, de preferência com um verde tinto, um fresco Vinhão a acompanhar. No Minho, claro, que tem mais sabor e recomenda-se.

Fonte: www.revistadevinhos.pt