É absolutamente desnecessário e redundante dizer que a Segunda Guerra Mundial foi um período de atrocidade generalizada, infelizmente, por todos os lados envolvidos no mais mortal e sangrento conflito que a humanidade já viu. Certo homem uma vez disse que “a história é contada pelos vencedores”. Embora não seja simples e exatamente assim, há verdade na frase: enquanto as atrocidades nazistas, especialmente aquelas contra os judeus, receberam uma condenação inédita na história humana a ponto de tornarem-se até mesmo parte da cultura pop, outras atrocidades e políticas análogas no seu intento homicida até hoje não só passam relativamente pouco faladas, como enfrentam até mesmo negação de seus perpetradores.

Este último é o caso das políticas absurdamente agressivas de expansionismo japonês entre as décadas de 30 e 40 do século XX; tal política visava criar uma nova ordem na Ásia onde o Império do Japão substituiria as antigas metrópoles imperiais europeias e os Estados Unidos no tangente à influência política, econômica, militar e colonial da região Ásia-Pacífico, causando uma tempestade de crimes de guerra e massacres cuja principal vítima foi a China. No pós-guerra, enquanto o alto-comando sobrevivente da Alemanha Nazista e seus colaboradores era julgada em Nurembergue e nos tribunais nacionais instituídos no Leste Europeu, os americanos timidante indiciavam uma meia-dúzia de oficiais japoneses pelos horrendos crimes contra a humanidade executados na Campanha da China e do Pacífico, tais como o infame Massacre de Nanquim, onde o Exército Imperial Japonês, após tomar a cidade, massacrou mais de 300 mil civis inocentes sem motivo algum. Um dos indiciados, condenado, foi o primeiro-ministro e militar japonês Hideki Tojo. Enquanto isso, outro primeiro-ministro antecessor a Tojo, Fuminaro Konoe (que então ocupava o Ministério das Relações Exteriores) e diretamente responsável pela agressiva política nacionalista de expansionismo, juntamente do imperador Hirohito, cujo aval e concordância eram absolutamente imprescendíveis para a implementação do programa, passaram incólumes, com Hirohito mantendo-se imperador, embora tendo renunciado à sua ‘divindade’.

Houve também líderes que lutaram na Segunda Guerra e, embora não cometessem tantas atrocidades assim no período bélico, foram verdadeiros carniceiros de seu próprio povo antes ou depois do conflito. É o caso de Josef Stalin e Mao Zedong, respectivamente. Stalin, no pré-guerra (entre 1925 e 1937) implementou uma reinado de terror e tirania sobre a União Soviético: nos eventos que ficaram conhecidos como “Grandes Expurgos”, Stalin liquidou toda a ‘possível’ oposição que poderia contra ele se posicionar ou conspirar; suas vítimas incluíam ex-camaradas, amigos, servos leais do partido e os membros de suas famílias (sim, famílias inteiras eram internadas em campos de concentração para trabalharem em regime de escravidão e serem executadas, isso quando não morriam no processo), causando, inclusive, o Holodomor que, assim como a Grande Fome da Índia que trataremos aqui, foi um regime de fome evitável que dizimou cerca de 7 milhões de ucranianos. Um verdadeiro Holocausto socialista. Após a Segunda Guerra, o ódio de Stalin foi lançado sobre as minorias étnicas que ele julgava terem “colaborado” com os nazistas, notadamente as muçulmanas, como os tártaros da Crimeia e os chechenos e ingushes do Cáucaso; o resultado foi que ambas as populações foram reduzidas pela metade através de deportações em massa para a Ásia Central onde a maioria dos deportados pereceu ou na ida, ou ao lá estabelecerem-se devido às paupérrimas condições de vida.

Mao Zedong, por outro lado, ao assumir o controle da maior parte da China em 1949 após derrotar os Nacionalistas de Chiang Kai-Shek, que fugiram para Taiwan e Burma, declarou a República Popular da China com a intenção de levar a China e seus povos ao Comunismo pelo Socialismo à semelhança de Stalin. Mao, com sua própria interpretação do Marxismo-Leninismo (que ficaria conhecida como Maoísmo) fez, então reformas agressivas na economia e estruturas sociais chinesas. Ao incitar os estudantes marxistas e “guardas vermelhos”, a jovem vanguarda do Partido Comunista a “destruírem a velha China”, Mao iniciou a Revolução Cultural Chinesa, marcada pelo assassinato indiscriminado de possíveis “elementos reacionários”, de religiosos budistas, taoístas, muçulmanos e cristãos (bem como seus fieís), pela destruição de templos e de construções históricas de arquitetura tradicional chinesa – até mesmo seções inteiras da Grande Muralha foram destruídas pelos comunistas –. Mao, com suas coletivizações e campanhas agrícolas estúpidas e fracassadas ainda levou mais de 20 milhões de pessoas à morte por inanição após, além de fracassar nas produções, cometer absurdos como exterminar pássaros que comiam os cereais plantados (para aumentar a prodrução), o que levou a uma superpopulação de de pragas e insetos que dizimou o plantio agrícola. Mais aulas de biologia e menos de Marx teriam ajudado o camarada Mao.

Do mesmo modo, os aliados não estavam isentos de cometer crimes de guerra: o bombardeio de Dresden com bombas incendiárias pela Força Aérea Real Britânica na cidade, que não tinha nenhum alvo militar relevante e cujos danos foram 90% em áreas civis. Muitos argumentam que foi a “vingança” da RAF pela Blitz de Londres, quando a cidade foi pesadamente bombardeada pela Luftwaffe alemã. O bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, também cidades sem nenhum alvo militar relevante, dispensa comentários ou apresentações. Há ainda do Bombardeios de Tóquio, feitos com bombas incendiárias entre 1942 e 1945 que, numa cidade feita majoritariamente de madeira, carbonizaram milhares.

Uma ainda mais pouco falada ação genocida é a qual trataremos, mais especificamente, neste texto. À semelhança do Holodomor, a Grande Fome da Índia de 1943, também conhecida como A Grande Fome de Bengala ou O Genocídio de Bengala por alguns acadêmicos mais ousados foi causada por uma soma de fatores: catástrofe alimentar cruelmente agravada pela ação propositalmente negligente e omissa dos líderes-máximos das nações envolvidas. Ela leva esse nome pela enorme maioria das 3 milhões de vítimas terem falecido na região de Bengala, onde hoje é o Leste da Índia e o Bangladesh.

Já no começo de 1933, dez anos antes da fome genocida, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill mostrava seu desdém pela Índia, cujos desejos e agitações independentistas já estavam incomodando Londres:

“Na minha opinião, a Inglaterra está agora começando um novo período de luta e lutando por sua vida, e o cerne disso não será apenas a retenção da Índia, mas uma afirmação muito mais forte de direitos comerciais.”

Tal afirmação seria o prólogo do que ainda estava por vir: em 1939 a Alemanha invadiu a Polônia, o que levou à França e Grâ-Bretanha a prontamente declararem guerra ao Reich de Hitler. Desde então, o conflito apenas se escalou mais e mais, com a Alemanha Nazista dominado a maior parte da Europa, com exceção das Penínula Ibérica, da Suécia, da União Soviética e das Ilhas Britânicas. Em 1941, a Força Aérea Alemã, a Luftwaffe, impôs uma pesada investida aérea sobre toda a Ilha da Grã-Bretanha, especialemente sobre Londres, então capital do maior Império do Mundo. Por meses, a situação dos britânicos foi calamitosa, com a Royal Air Force – RAF, fazendo o possível e o impossível para assegurar a resistência e sobrevivência do coração do Império. Mais à frente, em 1942 e 1943, que a maré começa a virar: após invadir a União Soviética, em 1942-1943 a Alemanha toma uma invertida no front oriental, mas ainda assim consegue mater sua pressão aérea sobre a Grã-Bretanha, embora com menos fôlego; ao mesmo tempo, a Itália e o Norte da África estavam sendo tomados por forças aliadas dos EUA, da França Livre e do Exército Britânico, que contava com as tropas da sua Commonwealth, enquanto suas colônias na Ásia – tais como Malásia, Singapura e Burma – eram atacadas pelo Japão.

Como todos sabemos, guerra não é, a priori, força bruta militar; guerra é, antes de tudo, logística. Os britânicos conseguiram resistir tanto tempo aos ataques alemãos, produzir seus novos aviões Spitfire (superiores aos Stukas e Messerschimdt alemães) e continuar sustentando suas tropas, produção bélica e população graças, sem dúvida alguma, às suas colônias, muito especialmente em relação à Índia, que sempre foi “A jóia da Coroa Britânica”. A Índia era a maior produtora de manufaturados e exportadora de commodities de todo o Império Britânico. Desde o final do século XIX ao começo do XX, as tensões separatistas, independentistas e religiosas cresciam no subcontinente indiano. Com o advento da Guerra na Europa, a colônia do Vice-Reinado da Índia naturalmente despontou como a maior colaboradora do esforço de guerra de sua metrópole, exportando diversas commodities, mas, especialmente, aliementos – principalmente arroz –.

O grande problema dessa “troca” era a situação econômica do Reino Unido: precisando desesperadamente, ao mesmo tempo, de provisões e de equilíbrio econômico para continuar conduzindo a guerra, Londres passou a importar os materiais e alimentos necessários apenas com a promessa de um pagamento futuro ao Vice-Reinado da Índia; em outras palavras, a metrópole britânica estava ‘pegando fiado’ da própria colônia, fato esse que levou a uma dramática e preocupante virada no débito metrópole-colônia: Londres passou a dever a Índia, não o contrário, como usual. Em virtude disso, a Índia teve seus estoques drásticamente reduzidos, operando com o mínimo de provisões e materiais estocados possível, ao passo de que essa situação forçou cada vez mais o governo colonial a importar provisões, tendo que, para isso, imprimir indiscriminadamente papel-moeda para arcar com os gostos das importações e das próprias exportações para a Metrópole.

Em 1943, todavia, o quadro de ‘saque colonial’ chegou a um ponto crítico: graças a um aglomerado de tragédias climáticas relacionadas, ao mesmo tempo, às monções, pragas e secas, a produção de arroz indiana em Bengala (o “cinturão” alimentar da colônia) falhou miseravelmente, o que desestabilizou completamente a segurança alimentar do país que, entre Janeiro e Julho de 1943, quando os eventos catastróficos e suas consequências mais imediatas tiveram lugar, a Índia já havia exportado cerca de 70 mil toneladas de arroz para a Grã-Bretanha – números esses que, segundo estimativas, poderiam ter sidos utilizados para manter 400 mil pessoas vivas e bem-alimentadas por um ano inteiro.

A catástrofe da colheita arruinada foi agravada pelo fato de a metrópole britânica, apesar dos apelos e pedidos de ajuda do Vice-Rei e do Conselho colonial, ter se mantido intransigente e inflexível quanto às cotas de commodities a serem exportados, por decisão do próprio primeiro-ministro Churchill, que, segundo o Vice-Rei britânico da Índia, não era nada amigável aos indianos, pelo contrário, desprezava-os, vendo-os como “os mais bárbaros humanos, próximos apenas aos alemães”. Tal desprezo foi agravado pelo fato da Coroa estar devendo à Índia. “Deveríamos nos endividar com a Índia para, logo em seguida, a perdermos?” perguntava-se Churchill.

O leitor não deve pensar, no entanto, que todo o Império estava em escassez: na Austrália, parte da Commonwealth até hoje, havia abundância de cereais, em especial o trigo, que poderiam ser enviados à Índia para avaliar a fome e os estoques indianos, que provaram-se insuficientes frente à demanda colossal que houve no subcontinente. Na realidade, esses eram os apelos dos dirigentes coloniais: utilizar-se da marinha mercante do Índico para transportar os grãos da Austrália até a Índia. Acontece que a marinha mercante britânica do Índico estava à serviço do esforço de guerra na Europa e na Malásia; Churchill, então, simplesmente não apenas negou o uso do transporte marítimo para aliviar a fome na Índia como também determinou que os grãos australianos fossem estocados para uma futura utilização na Europa e na própria Austrália.

O governo da Índia posteriormente calcularia uma lacuna entre a produção de arroz e o consumo de dois milhões de toneladas apenas em Bengala, com uma escassez de 3,5 milhões de toneladas na Índia em geral (incluindo requisitos de exportação e defesa) para o ano fiscal que terminou em 31 de Março de 1943. À medida que a fome se aprofundava, as importações diminuíam e os pedidos de ajuda do col. governo foram ignorados por Downing Street, o Vice-Reino da Índia começou a imprimir ainda mais dinheiro indiscriminadamente para pagar as importações de alimentos e lidar com as despesas do desastre agrícola que devastou a Índia, o que levou a uma altíssima inflação que, adivinhem, impossibilitou ainda mais o acesso aos escassos alimentos.

Se o leitor acredita que atitudes econômicas diretas (que até podem soar indiretas, mas são plenamente diretas, uma vez que o próprio Secretário de Estado da Índia á época, Leo Amery, descreveu a postura e as ações de Churchill como “ditatoriais”) de Churchill são toda a parte que lhe compete no Genocídio de Bengala, ainda há mais que o bebedor de whisky fez para piorar a situação dos indianos.

Para acrescentar mais combustível à pira funerária de milhões de índios, Churchil - com medo de uma invasão japonesa pela Bengala Oriental, já que o Exército Imperial Japonês já havia tomado a Birmânia e sua capital, Yangon, em 1942 e que avançou na direção do estado indiano de Assam em 1943 – deu ordens aos militares da região para empregarem uma polícia de terra arrasada, justamente na área de Bengala, vizinha de Assam e da Birmânia, com a polícia e os militares apreendendo e destruindo as poucas lavouras de arroz que cresceram, um fato sinistro que acrescentou uma carga bônus de destruição aos campos de arroz e agravou a crise não apenas na região, mas em toda a Índia.

As consequências do Genocídio de Bengala foram coletadas de sobreviventes, testemunhas oculares da fome e privação desnecessárias, pelo jornalista e escritor Madhusree Mukerjee e narradas em seu livro Churchill’s Secret War: The British Empire and the Ravaging of India in World War II. Os pais jogavam seus filhos famintos em rios e poços. Muitos tiraram a vida jogando-se na frente dos trens. Pessoas famintas imploravam pelo caldo com amido na qual o arroz havia sido fervido. As crianças comiam folhas e cipós, caules de inhame e grama. As pessoas eram fracas demais até para cremar seus entes queridos. "Ninguém tinha forças para realizar ritos [fúnebres]", disse um sobrevivente a Mukherjee. Cães e chacais se banqueteavam com pilhas de cadáveres nas aldeias de Bengala. Os que escaparam foram homens que migraram para Calcutá em busca de emprego e mulheres que recorreram à prostituição para alimentar suas famílias. "Mães se transformaram em assassinas, as donzelas das aldeias em prostitutas, pais em traficantes de filhas", escreve Mukherjee.

Como dito mais acima, cerca de três milhões de indianos morreram na fome de 1943, com a maioria das mortes ocorrendo em Bengala, afetando tanto hindus quanto muçulmanos igualmente. No final, Mukherjee escreve eloquentemente: "não foi tanto mais o racismo quanto o desequilíbrio de poder inerente à pirâmide social darwiniana que explica por que a fome pôde ser tolerada na Índia, enquanto o racionamento de pão era considerado uma privação intolerável na Grã-Bretanha durante a guerra". Hoje, muitos assim-chamados “conservadores”, “de direita” condenam líderes como Hitler, Stalin e Mao por suas ações cruéis, mas vêem em Winston Churchill um líder “conservador” exemplar a ser emulado, pois derrotou o Nazismo. Lembremos que o tão odiado Stalin também derrotou o Nazismo (sem bombardear Dresden), e que, do mesmo modo que o líder comunista chinês Mao é odiado por suas políticas catastróficas que mataram milhões de fome, ignoram e exaltam o homem que deixou outros milhões morrerem de fome, um homem que não escondia seu desprezo pela Índia e seu povo.

Bibliografia:

MUKERJEE, Madhusree (2011). Churchill’s Secret War: The British Empire and the Ravaging of India in World War II.

BISWAS, Soutik (28 October 2010). How Churchill 'starved' India. “Soutik Biswa’s India”, BBC News.

DEVEREUX, Stephen (2000). Famine in the twentieth century. Brighton: Institute of Development Studies.