Na tradição ocidental, o holandês Hugo Grotius ou Grócio (1583-1645) é considerado o pai fundador do Direito Internacional. A Sociedade Americana de Direito Internacional realiza uma ‘’Conferência Grotius’’ anual; e a biblioteca do Palácio da Paz em Haia o homenageia como o “fundador da doutrina moderna sistemática do direito internacional”. O direito internacional moderno inclui, entre outros, o tribunal penal internacional, direitos humanos, tratados internacionais e as Nações Unidas. Portanto, você pode esperar que seu pai fundador tenha sido um defensor de pelo menos algumas dessas coisas - ou, pelo menos, que forneça uma base para os princípios que as sustentam, certo? Bem, não exatamente...
 
Em seus tratados iniciais, The Free Sea (1609) e The Law of War and Peace (1625) ,Grotius dá sua propria versão do que para ele seria o ‘’direito internacional’’, o que levanta questionamentos se realmente é a ele que nossas noções de direito das nações são devidas. No Livro III de The Law of War and Peace, por exemplo, ele escreve que "matar é um direito de guerra", acrescentando que se aplica "a todas as pessoas que estão no território do inimigo". Além disso: “o direito de matar tais escravos [“ cativos feitos na guerra ”] não deve ser restringido em nenhum momento”; e “incluso na lei da guerra” é “o massacre até de crianças e de mulheres”. Você também pode devastar e pilhar a propriedade de um inimigo. Os prisioneiros podem não apenas ser mortos ou escravizados, mas ele também cita Sêneca que: "Não há sofrimento que não possa ser infligido a tais escravos, nenhuma ação que não possa ser ordenada ou forçada por tortura a fazer, de qualquer forma.’’ Conceitos ‘’primitivos’’ demais para quem é internacionalmente conhecido como ‘’pai’’ do direito internacional moderno.
 
Porém, a história do direito internacional não começa na Europa ou mesmo com Hugo Grotius e seus conceitos questionáveis. No século VIII, mais especificamente no ano de 749, nascia o árabe Muhammad al-Shaybani, em uma familia de militares em Wasiti no Iraque, na época parte do Califado Omíada em transição para o Abássida. Em sua infâcia, Muhammad já não mostrava que seguiria a carreira militar de seu pai, sendo mais predisposta as letras, e assim, partindo ainda jovem para estudar com ninguém mais ninguém menos que o patrono da maior escola juridica islâmica sunita, Abu Hanifa.
 
Porém, seu tempo com o sábio não foi muito longo, e este morreu quando Muhammad tinha por volta de 18 anos, legando para seu aluno o seu sucessor, o grande jurista Abu Yussuf, que passou então a direcionar a educação do jovem pupilo.Contudo, a educação de al-Shaybani não se resumira a somente uma pedra angular no pensamento juridico islâmico. Ele também teve outros professores proeminentes: como Sufyan al-Thawrī e al-Awzāī. mais tarde, ele também visitou Medina e estudou por de dois a três anos com Malik Ibn Anas, fundador da escola de jurisprudencia malikita. Assim, como resultado de sua educação, al-Shaybani tornou-se um grande jurista em seu proprio direito ainda muito jovem, aos 20 anos já ministrava aulas de direito islâmico na cidade de Kufa no Iraque abássida.
De lá, al-Shaybānī mudou-se para Bagdá, capital do califado abássida, onde continuo sua atuação. Ele tornou-se tão respeitado no local, que até mesmo o grande califa Harun al-Rashid o nomeou qadi (juiz) de sua outra cidade principal, Raqqa. Como uma nota adicional, ele também foi professor de Idris ash-Shafii, fundadar da escola de direito islâmico shafeita.
 
Muito próximo da corte, Muhammad al-Shaybani acompanhou califa para a provincia de Khorasan, onde serviu como juiz chege até sua morte em 805 na cidade de Rey. Ele morreu no mesmo dia e no mesmo lugar que o eminente filólogo e gramático al-Kisāi. Assim, o califa Harun al-Rashid observou que "enterrou a lei e a gramática lado a lado’’. Foi atuando como jurista para o califado abássida que al-Shaybani escreveu sua obra ‘’Kitab al-Siyar al-Kabir.’’, também conhecida como ‘’Introdução ao Direito das Nações’’. Nela, ele forneceu diretrizes detalhadas para a conduta exemplar de respeito e moral bélica que muçulmanos deveriam ter quando combatessem outras nações, bem como diretrizes sobre o tratamento de súditos não muçulmanos sob o domínio islâmico. Al-Shaybani escreveu um segundo tratado mais avançado sobre o assunto, e outros juristas muçulmanos logo o seguiram com uma série de outros tratados em vários volumes, nos quais lidavam ttanto com o direito internacional público quanto do direito internacional privado.
 
Esses primeiros tratados jurídicos islâmicos cobriam a aplicação da ética islâmica, da jurisprudência econômica islâmica e da jurisprudência militar islâmica ao direito internacional, e preocupavam-se com vários tópicos do direito internacional moderno, incluindo o direito dos acordos de paz; o tratamento de diplomatas, reféns, refugiados e prisioneiros de guerra; o direito de asilo; conduta no campo de batalha; proteção de mulheres, crianças e civis não combatentes; contratos através das linhas de batalha; o uso de armas venenosas; e limites de danos ao território inimigo, com muito mais sabores de modernidade e requinte de que as justificativas para o assassinato de mulheres e crianças que seriam apresentadas por Hugo Grotius 700 anos depois, e que sedimentariam as sangrentas guerras com inumeras violações que ocorreriam na Europa e além nos séculos seguintes até os dias atuais.
 
O livro de Muhammad al-Shaybani foi traduzido ao inglês e comentado pelo jurista iraquiano Majid Khadduri, que faleceu em 2007, sob o titulo ‘’The Islamic Law of Nations: Shaybani's Siyar’’, que ainda pode ser adquirido através de compras em sites de livrarias virtuais.
 
Bibliografia:
-Bashir, K R. Islamic International Law: Historical Foundations and Al-Shaybani’s Siyar, Edward Elgar.
 
-Tabassum, Sadia (20 April 2011). "Combatants, not bandits: the status of rebels in Islamic law". International Review of the Red Cross. 93 (881): 121–139.
 
-Should Grotius still be considered the founding father of international law?: t.ly/EjM5
 
-"al- Shaybānī , Abū ʿAbd Allāh Muḥammad b. al-Ḥasan b. Farḳad ." Encyclopaedia of Islam
 
-`Abd al-Ḥayy al-Laknawī from the introduction of The Muwatta of Imam Muḥammad, transl. Abdurrahman and Clarke, p. 27;
 
--Chaumont, E. "al- S̲h̲aybānī , Abū ʿAbd Allāh Muḥammad b. al-Ḥasan b. Farḳad ." Encyclopaedia of Islam. Edited by: P. Bearman, Th. Bianquis, C.E. Bosworth, E. van Donzel and W.P. Heinrichs. Brill Publishers, 2008. Brill Online.
 
-Mahmassani, Sobhi. The Philosophy of Jurisprudence in Islam, translated by Farhat J. Ziadeh. Leiden: Brill, 1961.
 
´-Schacht, Joseph. The Origins of Muhammadan Jurisprudence. Oxford: Clarendon Press, 1975.
 
-Weeramantry, Judge Christopher G. (1997), Justice Without Frontiers: Furthering Human Rights, Brill Publishers.