O patrimônio histórico é como uma máquina do tempo, onde, olhando o passado pela janela da imaginação, novas camadas de pensamento se abrem e diversas dimensões de compreensão são vistas. Falaremos hoje de tais fatos que misturam antigos ideais da imaginação, mas são fatos históricos: princesas de outros reinos e de religiões diferentes, mulheres que encantaram seus maridos e se tornaram influentes além de suas épocas, histórias de amor que transcenderam barreiras religiosas e culturais. Sim, podemos dizer novamente que nossa introdução parece algo com contos de fadas ou livros de literatura do medievo, mas veremos duas princesas reais de vidas que inspiram a cultura popular de lugares separados por uma grande distância, mas que demonstram como o papel da mulher na cultura islâmica é forte há muito tempo.

Começamos pela história de Mariam-uz-Zamani (مريم الزمان) (1542–1623), também chamada “A Velha Maria”, uma referência à Maria, mãe do profeta Jesus, por sua forte influência nas políticas do imperador Akbar (nascido Abu'l-Fath Jalal-ud-din Muhammad Akbar; 1542 – 1605), de quem tornou-se esposa em 1562, e por ter gerado o príncipe Salim, o futuro imperador Jahangir (1569 - 1627).  Também conhecida como Harka Bai, Princesa Jodha ou Hira Kunwari, foi uma princesa de Rajput, do reino de Amber (atual Rajastão, Índia).

Nascida e criada no sistema religioso védico vaishnava, onde foi iniciada sob o nome Krishna Kumari, isto é, “Passatempo de Krishna” (GARBE, 2014) - era uma devota de Krishna. Filha de Raja Bharmal (1498 – 1574), o governador de Rajput, foi criada como um menino por seu pai: ao contrário de outras princesas da época, teve recebeu educação da luta de espadas e corporal e estudou desde cedo a arte do comércio, o que mais tarde foi uma característica diferenciada em sua vida, como veremos mais adiante (ERALY, 2000). converteu-se ao Islam para se casar com Akbar e estreitar os laços entre os mughals e rajputs, que viviam em confrontos principalmente no noroeste da Índia. Pouco antes do nascimento de Mariam-uz-Zamani, em 1526, os mughals iniciaram uma campanha contra os rajputs e saíram vitoriosos em 1527, depois da batalha de Bayana, causando diversas contestações e conspirações entre os dominadores mughals e os dominados rajputs. Akbar, que era neto de Babur, tomou Mariam-uz-Zamani como sua consorte-chefe para apaziguar os confrontos.

De fato, o casamento serviu para não só apaziguar os ânimos como foi um impulso à política de tolerância religiosa, que serviu para criar uma identidade cultural indo-persa (LAL, 1999). A história de Mariam-uz-Zamani já seria interessante apenas por estes aspectos, mas há muito além: também há romance, confrontos com piratas portugueses e grandes feitos, que inspiraram inclusive uma grande produção bollywoodiana, o seriado Jodha Akbar, que totalizou 568 episódios (2013 – 2015). Apesar da obra ser feita após pesquisas intensas, seu lançamento causou a fúria de nacionalistas hindus, que afirmam que Jodha nunca foi esposa de Akbar, justamente por sua conversão ao Islã – o que é refutado por seu enterro no mausoléu ao lado do sultão. Toda a disputa dos hindus se baseia em controvérsias pelos diversos nomes recebidos por Jodha, o que é explicado por dois fatores: primeiro, muitos indianos possuem mais de um nome, tanto por nascimento como por iniciações religiosas (o que era o caso de Jodha) e, em segundo, por sua conversão ao Islã, onde recebeu o nome de Mariam (Maria). Jodha também recebeu o título de Mallika-e-Hindustan e Mallika-e-Muazzma. Além do mais, há provas documentais de sua existência e atividades, como nos casos aqui mencionados do sequestro de seu navio pelos portugueses e no envio de um embaixador britânico ao reino.

A história de Jodha e Akbar tornou-se um dos principais pontos do imaginário hindu: uma bela e educada princesa, de personalidade forte e destemida, e seu amor por um imperador guerreiro e corajoso, o que rende ao imaginário popular o mesmo que os contos de fadas aos ocidentais – mas em uma história real. Pois embora Jodha fosse já a terceira esposa de Akbar, que mais tarde ainda casaria com mais outras quatro, não demorou para que suas habilidades e beleza a fizessem consorte-chefe e favorita de Akbar, além de obter outros favores que foram fundamentais ao império: Jodha inspirou Akbar a abolir o imposto de peregrinação dos hindus; Akbar também permitiu que ele adorasse o Senhor Krishna em seu palácio, antes de sua conversão ao Islã. Tais atitudes liberais de Akbar em relação aos hindus o tornou grande e admirado em toda a Índia. Desta forma, a relação dos dois permitiu que todos os grupos e seitas indianas passassem a ver Akbar como um protetor. Além do mais, Jodha era conhecida por ser versada em diversos assuntos, tantos religiosos como seculares, e seu entendimento sobre a religião dos indianos fez Akbar continuar suas políticas de tolerância religiosa. Como Akbar é relatado com pouco gosto pela leitura e pela escrita presume-se que Jodha foi fundamental para o desenvolvimento do império nas relações exteriores e no apoio aos escritores, músicos, pintores e estudiosos, como ao grande músico Tansen (1500 – 1589), que foi fortemente apoiado pela corte (LAL, op. cit.), o que facilitou a incursão de Akbar ao sul da Índia, que era recebido sem temor pela população conquistada.

Representação artística de Akbar e Jodha

Lavina Tandon e Rajat Tokas interpretando a Princesa Jodha e o Imperador Akbar, em Jodha Akbar

Jodha ficou conhecida por sua extrema benevolência e era amada por hindus e muçulmanos e também era admirada por sua beleza física. Também ficou mui conhecida por suas habilidades comerciais, pois tornou o império uma grande potência no comércio de especiarias e seda (INDIAN TODAY, 2016). Junto de seu marido, levou a boa fama do império até o Ocidente, o que convenceu a rainha britânica Elizabeth I (1558-1603) a enviar um embaixador para o império, chamado Sir Thomas Roe. O embaixador ficou impressionado com a beleza arquitetônica, instituições de caridade, escolarização e tolerância religiosa do local (BHARGAVA, 1961).

Segundo alguns hindus, Jodha teria permanecido uma adepta da religião de seus pais, mas não há evidências para tanto: 20 anos depois da morte de Akbar, Jodha faleceu e foi enterrada segundo os ritos islâmicos ao lado de seu marido, onde seu filho, Salim, construiu um belo mausoléu:

As tumbas da Princesa Jodha e do Imperador Akbar.

O mausoléu em seu lado exterior.

Sua morte foi por um fulminante ataque cardíaco, aos 81 anos de idade, uma longevidade incomum para a época, depois de 43 anos como a “Rainha do Hindustão”, título dado por seu filho Salim. Jodha também foi a única consorte a dar a Akbar um filho que sobreviveu à infância: todos os filhos nascidos de outras consortes eram natimortos ou morriam nos primeiros dias.

Há um fato curioso em sua vida depois do falecimento de seu marido: pelo fato de sua profunda competência no comércio internacional, seus navios atraíram a atenção de piratas e de potências ocidentais. Em 1613, sua embarcação chamada Rahimi foi capturada por comerciantes portugueses e levada à Goa, junto de seus mais de 700 tripulantes (FINDLY, 1988). Embora a tolerância religiosa fosse a marca do governo de seu marido, como também do governo de seu filho, Salim, este incidente transformou a relação dos mughals com o ocidente: após diversas negociações para a devolução do navio e seus bens fracassarem, Jahangir ordenou o fechamento de todas as paróquias jesuítas de seu reino e ordenou o banimento de todos os padres e missionários.

Sua história remonta a algo comum na cultura indo-islâmica, e sua figura neste sentido é tão importante quanto a do poeta Kabir (1398 – 1518), que chegou a causar controvérsias entre hindus e muçulmanos por seus poemas místicos que advogavam o monoteísmo e a tolerância, mas depois passou a ser disputado como adepto de ambas religiões.

Representação Artística da Princesa Jodha Bay

A história de Jodha não é a única no Islam na qual uma mulher convertida, de uma outra cultura, se transforma em uma mulher importante e influente. Hurrem Sultan (1504 - 1558), nascida Alexandra Anastasia Lisowska, foi chefe-consorte do Sultão Sulayman, o Magnífico (1494 – 1566), e também veio de um outro ambiente cultural: nasceu na Rutênia, filha de um sacerdote cristão ortodoxo, chamado Pe. Gabriel. De acordo com a versão mais comum de sua história, no início dos anos 20 do século XVI, os tártaros fizeram outro ataque às terras ucranianas-polonesas. Durante o ataque, Alexandra Lisovskaya foi capturada e levada para a Crimeia, por volta de seus 15-16 anos. Da Crimeia, junto com de escravos, foi levada a Istambul e depois ao palácio do sultão. O vizir imperial Ibrahim Pasha ficou encantado com a garota de aparência incomum e a levou de presente ao sultão. A partir deste momento começa a extraordinária história da poderosa sultana. Acredita-se que o próprio sultão deu o nome de "Hurrem" à concubina. Em russo, esta palavra é traduzida como "jubilosa". Muito rapidamente, sua beleza conseguiu encantar o sultão Sulayman, que se apaixonou irrevogavelmente e idolatrou Alexandra Anastasia Lisowska pelo resto de sua vida. Sulayman deu um passo importante: ele se casou legalmente com a concubina que o cativou. Até aquele momento, nenhum sultão havia se permitido tamanha liberdades - ninguém se casava oficialmente com concubinas. Juntamente com o status de esposa legal, Hurrem obteve uma grande influência no império, que manteve por 40 anos.

Representação artística de Hurrem Sultan

Mas não foi apenas a beleza a responsável por tamanha paixão: embora fosse atraente e charmosa, também era sábia, inteligente e educada. Foi por essas qualidades que o jovem padishah se apaixonou por ela, a quem chamou de dona do seu coração. Sabe-se que Hurrem já era bem educada, mas ainda enquanto concubina aproveitou para adquirir ainda mais conhecimento: ficou fluente em seis línguas estrangeiras, cantava lindamente, bordava lindamente, era versada em arte e podia expressar pensamentos valiosos sobre os assuntos políticos do estado. Por esta razão, o sultão, independentemente dos costumes islâmicos, permitiu que Hurrem participasse nas reuniões do divã e nas recepções da embaixada. Dizia-se que Suleiman, o Magnífico, se tornou o padishah de maior sucesso da dinastia otomana, não sem a participação de sua esposa astuta e perspicaz (LYIGUN, 2013).

Uma das maiores conquistas de Hurrem, que a elevou acima de todas as concubinas, é o nascimento de seis filhos - cinco meninos e uma menina:

  • Mehmet - Şehzade Mehmed (1521-1543);
  • Mihrimah - Mihrimah Sultan (1522-1578);
  • Abdullah - Abdullah (1523-1526);
  • Selim - Selim II (1524-1574)
  • Bayazid - Şehzade Bayezid (1525-1561);
  • Cihangir - Şehzade Cihangir (1531-1553)

Quase todas as crianças morreram antes do pai. Apenas dois sobreviveram a ele filha Mihrimah (Mihrimah Sultan) e filho Selim (II. Selim), que herdou o trono.

O Sultão chegou a compor um poema para sua amada, sob o pseudônimo Muhibbi:

“Meu amor de cabelos pretos e belas sobrancelhas, de olhos lânguidos e traiçoeiros

Sempre cantarei teus louvores /

Eu, Muhuibbi, amante com o coração atormentado

Com os olhos cheios de lágrimas, estou jubiloso.”

Hurrem, outrossim, não era apenas uma bela mulher voltada aos agrados do sultão: convertida ao Islã, tornou-se influente nas questões diplomáticas e sociais do império. Sua personalidade é reconhecida como forte, capaz inclusive de entrar em confrontos com o próprio sultão (MADAR, 2011). Ela também recebeu o título de Haseki, consorte do sultão, o que abriu caminho para uma longa linhagem de sultanas influentes. Através de diversas cartas trocadas entre ela e diplomatas estrangeiros, vemos que Hurrem foi uma das mulheres mais poderosas do mundo em sua época, e também financiou de seu próprio bolso a construção de madrassas, mesquitas, hospitais e casas de banho em Meca e Jerusalém (LYIGUN, 2013).

A história de Hurrem e Sulayman, como a história de Jodha e Akbar, também serviu de inspiração para a cultura pop moderna. Em 2011, na Turquia, foi produzido o seriado “Muhteşem Yüzyıl” (A Era Magnífica), uma produção caríssima e cuidadosa.

 

A atriz turca Meryem Uzerli interpretando Hurrem Sultan na série Muhteşem Yüzyıl

Como Jodha, Hurrem também foi importante na sucessão do Sultão Sulayman: ela também ficou viúva e protegeu seu filho, Selim (1524 - 1574), mais tarde Selim II e também chamado “o Loiro”, pois herdou de sua mãe características tipicamente eslavas.

Selim II, o Loiro

Hurrem Sultan morreu aos 55 anos e o procedimento para seu enterro foi realizado com honras incríveis. Nenhuma nobre muçulmana foi enterrada com tanto luxo. Suleiman, o Magnífico, ficou com o coração partido. Ele sobreviveu à sua amada esposa por 8 anos, mas nunca quis uma única concubina – durante a vida de Hurrem, é sabido que Suleiman passou a rejeitar outras concubinas e demonstrava até certa repugnância para com elas e a morte de Hurrem não acabou com isso (). O padishah deixou instruções para ser enterrado ao lado de sua amada, o que foi obedecido. Seus mausoléus estão localizados perto da mesquita Suleymaniye. Deve-se dizer que em toda a história do vasto império, nenhuma mulher foi homenageada com tal honra - ser enterrada ao lado do governante.

As tumbas de Sulayman e Hurram Sultan

No caso das duas princesas mencionadas, vemos o papel de duas mulheres que alcançaram grande influência durante e depois da vida de seus maridos e deixaram legados muito além de suas vidas.

Bibliografia:

  • MADAR, Heather (2011). Before the Odalisque: Renaissance Representations of Elite Ottoman Women. The University of Chicago Press.
  • LYIGUN, Murat (2013). The Capture of Maryam-uz-Zamānī's Ship: Mughal Women and European Traders. The University of Chicago Press.
  • FINDLY, Elison (1988). The Forgotten Millions: The Modern Jewish Exodus from Arab Lands. American Oriental Society.
  • LAL, Muni (1988) Mughal Glory. Konark Publishers Pvt Ltd.
  • ERALY, ABRAHAM (2000). Emperors of the Peacock Throne, Penguin.
  • BHARGAVA, V.S. (1961). Princess Jodha Bai, Indian History Congress.
  • GARBE, Richard Von (2014). Akbar, Emperor of India, Int'l Business Publications.