Ibn Tufail: O filósofo islâmico que ensinou John Locke a pensar
24/11/2020O escritor, romancista, filósofo, teólogo, médico, astrônomo e político andaluz Ibn Tufail nasceu em Guadix, no atual sul da Espanha, na época parte do Império Almorávida, no ano de 1105. De origem árabe da tribo dos qays, na juventude foi educado por ninguém menos do que Ibn Bajjah, conhecido no ocidente como ”Avempace”, polímata muçulmano cujo legado na história é bem conhecido. Após a conquista os almorávidas pelo Califado Almóada, ele serviu como secretário do governante de Granada e, mais tarde, como vizir e médico do califa Abu Yaqub Yusuf, a quem recomendou Ibn Rushd (Averróis) como sucessor em sua aposentadoria, quando partiu para o Marrocos. Ibn Rushd mais tarde diria que não foi outro senão Ibn Tufail, seu professor, a lhe incentivar a escrever seus famosos tratados aristotélicos que o imortalizaram. Outro de seus alunos famosos, só que no campo da astronomia, foi o famoso al-Bitruji ou “Alpetragius”, em cuja homenagem uma das crateras da Lua é nomeada.
Contudo, o maior legado de Ibn Tufail, que faleceu em 1185 no Marrocos, é sem dúvida seu romance “Hayy Ibn Yaqzan”, ou “Vivo filho do Desperto”, traduzido no ocidente sob o título de “O Filosofo Autodidata”. Nele o autor narra a história de Hayy (Vivo), um menino nascido por geração espontânea ou abandonado por sua mãe que chega a uma ilha onde é criado por gazelas sem qualquer contato humano. A história gira em torno do desenvolvimento de suas faculdades intelectuais através de experiencias, seguindo um esquema de sete septênios (períodos de sete anos), baseando-se nos preceitos da metafisica e filosofia islâmicas.
Nos seus primeiros sete anos, Hayy é criado por uma gazela, que o alimenta e protege como se fosse sua mãe. O menino vai crescendo entre os animais no mundo natural e nota as diversas desvantagens de seu corpo, desprotegido e sem armas, em comparação com outros seres. Para resguardar-se, fabrica para si uma roupa de folhas, que, no entanto, continuamente secam e caem. Ao completar o primeiro septenio, que no Islã é quando a criança atinge a responsabilidade espiritual, morre a gazela que se fazia de mãe para Hayy. O menino de sete anos, consternado, examina o corpo dela a fim de encontrar a fonte do mal que provocara sua morte. Não achando o mal no corpo, infere disso a existência da alma.
Dos 15 aos 21 anos de idade, Hayy adquire o conhecimento da técnica. Passa a examinar todas as várias espécies animais, vegetais e minerais. Conhece também o fogo. Melhora suas condições de vida, fabricando diversos utensílios úteis para seu dia-a-dia. Domestica animais para seu uso. No quarto septênio, Hayy obtém o conhecimento teórico. Medita sobre a essência da matéria e seus diversos estados e atributos. Estabelece a forma e a extensão como atributos da matéria. Esboça-se em seu pensamento uma vaga idéia de um Criador da forma.
No quinto septênio, Hayy ibn Yaqzan observa o céu e seu movimento. Ocupa-se com uma dúvida: seria o universo algo que sempre existiu ou teria começado a existir em certo momento a partir do nada? Por raciocínio, chega a conclusão da existência de um Ser Absoluto, criador do universo — a causa, da qual a criação é a conseqüência. Investiga e descobre os atributos desse Ser Absoluto. No sexto septênio, tendo conhecido Deus, o filósofo autodidata passa a refletir sobre a essência humana e suas particularidades, sua própria essência e sobre a essência do Ser Supremo.
No sétimo septênio, Hayy compreende que possui uma parte semelhante aos animais, uma parte semelhante aos corpos celestes e uma parte semelhante ao Ser supremo. A partir daí, começa a praticar exercícios em busca da ascese a da “união mística” com Deus. Atinge, pelo êxtase, este estado último com perfeição, desligando-se e retornando ao mundo físico sensível à vontade. Após ter completado 50 anos e ter atingido a grau máximo de sabedoria, Hayy ibn Yaqzan encontra-se pela primeira vez com um outro ser humano — Assal. Este era um anacoreta que havia ido para a ilha habitada por Hayy para isolar-se da sociedade. Lá, ele conhece Hayy e ensina-lhe a linguagem. Logo, Assal percebe que, por via da intuição e da razão, Hayy tornara-se um grande sábio. Assal relata a Hayy sobre a tradição religiosa dos homens e seus aspectos exteriores e Hayy deseja ir ter com esses homens e falar-lhes da via direta de contato com a divindade. Ao sair para viver em sociedade, ele determina que certas armadilhas da religião, a saber, imagens e dependência de bens materiais, são necessárias para as massas, a fim de que ela possa ter uma vida decente. No entanto, as imagens e os bens materiais são distrações da verdade e devem ser abandonados por aqueles cuja razão reconhece que sim. Não sendo bem sucedido em seu intento, Hayy e Assal retornam à ilha, onde vivem até o final da vida em êxtase místico.
Alguns historiadores dizem que “O Filosofo Autodidata” de Ibn Tufail foi escrito como uma resposta a “incoerência dos Filósofos” de al-Ghazali, e este, por sua vez, foi rebatido pelo não menos importante Ibn al-Nafis, que escreveu o “Risalah Kamiliyah” ou “A Mensagem Completa”, traduzido ao Ocidente como “O Teólogo Autodidata”.
Hayy ibn Yaqdhan teve uma influência significativa na literatura não só do mundo muçulmano, mas também se tornou um influente best-seller em toda a Europa Ocidental nos séculos XVII e XVIII após sua tradução para o latim em 1671 por Edward Pococke. A obra de Ibn Tufail tornou-se um dos livros mais importantes que anunciaram a Revolução Científica e o Iluminismo europeu. Os pensamentos expressos no romance podem ser encontrados em diferentes variações e graus nos escritos de Thomas Hobbes, John Locke, Isaac Newton, e Immanuel Kant.
Segundo especulam alguns pesquisadores, as traduções ocidentais do livro de Ibn Tufail podem ter inspirado Daniel Defoe a escrever Robinson Crusoé, que também apresentava uma narrativa na mesma ambientação. O romance também inspirou o conceito de “tabula rasa” desenvolvido em ”Ensaio acerca do Entendimento Humano” (1690), de John Locke, que foi aluno de Pococke, tradutor do original em árabe. Seu ensaio acabou se tornando uma das principais fontes do empirismo na filosofia ocidental moderna e influenciou muitos filósofos do iluminismo, como David Hume e George Berkeley. As ideias do personagem Hayy sobre o materialismo no romance também têm algumas semelhanças com o materialismo histórico de Karl Marx, que pode também ter tido algum impacto no filosofo alemão. Ibn Tufail também prenunciou o Problema de Molyneux, proposto por William Molyneux a Locke, que o incluiu no segundo livro de seu Ensaio. Outros escritores europeus influenciados por “O Filosofo Autodidata” de Ibn Tufail incluem Gottfried Leibniz, Melchisédech Thévenot, John Wallis, Christiaan Huygens, George Keith, Robert Barclay, Samuel Hartlib, Voltaire, e o filosofo judeu holandês Baruch Espinoza.
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