Hoje em dia, os muçulmanos indianos enfrentam diversos preconceitos, que vão desde a oposição a sua existência por parte de nacionalistas hindus do país até a violência pratica, destinada à essa população de quase 200 milhões de pessoas que compreende a segunda maior religião da Índia. Uma das principais acusações de radicais hindus, conhecidos como hindutvas, é que o Islã é uma religião “estrangeira”, que foi “forçada” por dinastias e povos igualmente estrangeiros sobre a população aborígene indiana, alcunhando os governantes, generais e santos sufis de outrora como “mlecchas”, termo que significa “bárbaro” e era usado pelos indianos hindus para se referir a seus senhores turcos muçulmanos. Uma música pop hindu de um gênero musical crescente na Índia conhecido como hindutva pop diz “Os muçulmanos terão que aprender a dizer vande mataram”. Vande mataram signfica “ovacionar a pátria”, reproduzindo e assumindo, mais uma vez, o discurso histórico de que os muçulmanos indianos são estrangeiros em sua própria terra apenas por sua fé.

Como é de se imaginar, tal discurso não só é falso como é hipócrita e ridículo: o Hinduísmo também não é nativo do subcontinente indiano, cuja população aborígene é de origem étnica dravidiana, etnia essa que ocupa as castas mais baixas e desassistidas do sistema de castas hindu (que os muçulmanos combateram), como os dálites/xandalas e xudras, enquanto as “castas superiores” como brâmanes, vaixás e xátrias, são histórica e geneticamente de origem indo-ariana, advindos de uma torrente migratória que chegou ao subcontinente milênios antes de Cristo e trouxe consigo a Religião Védica, que é a base e a alvenaria do edíficio religioso hindu.

Além disso, essa assunção de que os muçulmanos são bárbaros estrangeiros despidos de qualquer patriotismo pode ser facilmente refutada ao se verificar a história: incontáveis dinastias muçulmanas não apenas dominaram o subcontinente, mas o desenvolveram e o defenderam contra invasões estrangeiras, seja dos mongóis pagãos, dos ingleses e portugueses cristãos ou mesmo de outros muçulmanos. Este último caso é o que iremos explorar nesse artigo: como o Sultanato de Délhi, com uma dinastia de origem indo-ariana pashtun e com seus sultões muçulmanos, enfrentaram, resistiram e por fim capitularam frente ao maior poderio islamo-turco que já governou a Índia – os mogóis (não confundir coms o mongóis).

A Dinastia Lodi foi uma dinastia afegã de origem pasthun (e, portanto, indo-europeia, assim como a maioria dos povos do Norte da Índia e do vale do Indus, no atual Paquistão) que governou o Sultanato de Délhi de 1451 a 1526, tendo sido também a quinta e última dinastia desse outrora poderosos sultanato. Ela foi fundada por Bahlul Khan Lodi, que herdou o posto de Governador da província de Sirhind, na região do Punjab, tendo mais tarde assumido o poder no Sultanato quando o último governador Sayyid, Alauddin Shah, abdicou do trono. Um de seus maiores feitos foi a conquista da província de Jaunpur. Já seu segundo filho, Sikandar Shah, deslocou a capital de Délhi para Agra; um poeta de renome, foi padroeiro de uma grande empreitada linguística que traduziu os livros medicinais em sânscrito para o persa, tendo sido sua maior conquista a anexação de Bihar.

Como seus predecessores, os sultões de Lodhi se estilizaram como os deputados dos califas abássidas e, assim, reconheceram a autoridade de um califado unido sobre o mundo muçulmano. Eles patrocínio estatal e concederam terras isentas de receita (incluindo aldeias inteiras) aos ulemás muçulmanos, aos sheykhs sufis, aos alegados descendentes do Profeta Muhammad e aos descendentes de árabes supostamente membros da tribo coraixita.

Sikandar durante seu reinado tentou sanar um grande e persistente problema entre os diferentes chefes e nobres pashtuns que compunham, à época, o Sultanato de Délhi: o faccionalismo e a autonomia exacerbada dos diferentes chefes e tribos. Sikandar tentou centralizar a autoridade do Sultanato, especialmente através do incentivo do comércio, das artes e da literatura em língua persa, e também através do traslado de sua corte para Agra. Mesmo a despeito de sua mãe ser uma hindu, Sikandar foi adpeto e proponente de um legalismo sunita arraigado, banindo muitos festejos e prociessões populares sufis e assegurando a segregação de gêneros em lugares sagrados. Suas políticas públicas, no entanto, não foram de muito efeito, uma vez que o Sultanato se via em complicações dada à sua incapacidade de se defender com êxito de incursões de seus vizinhos, como os turcos, também muçulmanos, do Oeste e os Rajputs hindus do Sul do subcontinente.

A situação foi agravada pois o sucessor de Sikandar, Ibrahim Lodi, que apesar de ser um bravo guerreiro era um político medíocre, e tentou em vão perseguir os mesmos ideais de centralização e absolutismo de seu pai, ao mesmo tempo que enfrentou inúmeras rebeliões – inclusive uma encabeçada por seu próprio irmão, Jalaluddin, que obteve o apoio de diversos nobre pashtuns – e fez guerra contra os turcos, afegãos e reinos hindus do Sul para manter Délhi de pé.

Ibrahim viria a ser o último governante da dinastia de Lodi e do Sultanto de Délhi em virtude do intrincado mundo de conspirações e rebeliões derivadas do faccionalismo dentro de seu próprio domínio, além do constante atrito e assédio de seus vizinhos. Ibrahim não conseguiu, por todo seu reinado, conceber ou estabelecer um sucessor para a coroa de Délhi, o que levou a muitos nobres a apoiarem insurreições contra ele. Mais longe ainda, seu próprio tio, Alam Khan, aliou-se aos mogóis de Babur, o governante timúrida (descendente de Timur, ou Tamerlão, líder turco-uzbeque que aterrorizou a Ásia). Juntou-se a Alam, para se vingar de insultos feitos por Ibrahim, Daulat Khan Lodi, o governador de Lahore, que pediu ao governante de Cabul, que invadisse seu reino.

Assim, depois de ter assegurado a cooperação de Alam Khan e Daulat Khan, Babur reuniu seu exército e marchou em direção ao Leste. Ao entrar nas planícies do Punjab, os principais aliados de Babur o aconselharam Babur a ajuntar-se aos poderosos Rajputs de Janjua, velhos inimigos dos Lodi e de Délhi e cuja postura rebelde da tribo ao trono Sultanato era bem conhecida. Ao conhecer seus chefes, Malik Hast e Raja Sanghar Khan, Babur mencionou a popularidade dos Janjua como governantes tradicionais de seu reino e seu apoio ancestral ao seu patriarca Emir Timur durante sua conquista de Hind.

Foi aí que Babur e Ibrahim, dois muçulmanos sunitas – um sendo um governante afegão de ascendêmncia turco-mongólica e o outro, um governante indiano indo-ariano – se enfretaram decisivamente na Batalha de Panipat. Babur e seu exército de 24.000 homens marcharam para o campo de batalha com um grande trunfo: estavam armados com mosquetes e artilharia. Ibrahim preparou-se para a batalha reunindo 100.000 homens (bem armados, mas sem armas, munidos apenas de armas brancas e setas) e 1.000 elefantes de combate. Ibrahim estava em desvantagem tecnológica e moral, por causa de sua infantaria antiquada e rivalidades internas dentro de seu próprio corpo militar. Embora tivesse mais homens, nunca havia lutado em uma guerra contra armas de pólvora e não sabia o que fazer estrategicamente contra esse novo poderio. Babur pressionou sua vantagem desde o início e Ibrahim morreu no campo de batalha em abril de 1526, junto com 20.000 de seus homens, marcando, assim, o fim da Dinastia Lodi e do Sultanato de Délhi e o ínicio do maior poder muçulmano que já teve presença na Índia: o Império Mogol, que duraria até meados do século XIX.

Após a morte de Ibrahim, Babur nomeou-se imperador sobre o território de Ibrahim, em vez de colocar Alam Khan (tio de Ibrahim) no trono. A morte de Ibrahim marcou o fim da dinastia Lodi e levou ao estabelecimento do Império Mughal na Índia. Os territórios restantes de Lodi foram absorvidos pelo novo Império Mughal. Babur continuou a se envolver em mais campanhas militares. O irmão de Ibrahim, Mahmud Lodi, declarou-se Sultão e continuou a resistir às forças mogóis durante certo tempo, até sua morte anos depois.

Desse modo, podemos ver como aquelas alegações, citadas no início deste texto, são fantasiosas e desleais: vemos aqui uma guerra entre pessoas da mesma fé e, possivelemente, da mesma escola de Crença dentro do Islã, enfrentando-se até a morte: um, martirizado, em defesa de seu reino e seu povo e o outro, realmente, um invasor (mas não um bárbaro). Não demoraria muito para os mógois também se assimilarem e misturarem com os povos, culturas e costumes do subcontinente indiano, mais tarde, nos séculos XVII, XVIII e XIX, sendo eles a defender a Índia de novos “mlecchas”, que dessa vez não vinham a cavalo, mas em navios à vela.

Bibliografia:

DESOULIERES, Alain (1988). "Mughal Diplomacy in Gujarat (1533–1534)” in Correia's 'Lendas da India'.”

CHANDRA, Satish (2009). “Medieval India: From Sultanat to the Mughals”, Part II. Har-Anand Publications.

Lodī dynasty - Encyclopædia Britannica.