A Vida e a Obra de Omar Khayyam
Autor: Lucas de Oliveira Ralla 04/10/2022Através da História Islâmica, pessoas dedicadas e promovidas não apenas por um Estado ou área do conhecimento, mas a vários deles – todos eles com visões religiosas e filosóficas distintas entre si, que poderia ir desde a ortodoxia religiosa sunita de Ibn al-Haytham, indo em direção ao sunismo místico e filosófico de Ibn Sina, passando, no caminho, pelo xiismo alquímico e esotérico de Ibn Hayyan para chegar na filosofia incomum e racionalista de Ibn Tufayl e, enfim, desembocar no ateísmo e racionalismo de al-Ma’arri.
Acontece que, entre Ibn Tufayl e al-Ma’arri, há uma vaga que pode ser muito bem preenchida por um grande polímata persa, fundamental principalmente para a matemática (especialmente na álgebra) e para a astronomia – mas não apenas isso –, ele é bem-quisto e renomado por sua poesia característica e única, com uma mensagem subliminar curiosa e, também por sua filosofia, que tentava expressar através de seus poemas.
Estamos falando de de Omar ibn Ibrahim Nisaburi, conhecido como Omar Khayyam, um polímata e poeta persa que viveu entre os séculos XI e XII. Como seu nome diz, Omar era natural de Nishapur, na região chamada de Khorasan (muitas vezes aportuguesada como ‘Coração’), que hoje compreende a região montanhosa entre o Uzbequistão, o Tajiquistão, o Afeganistão o Turcomenistão e o Irã, tendo sido a região colonizada por persas e tribos nômades, incialmente indo-europeias e posteriormente túrquicas. A região também foi o lar de diversos nomes de peso do Islã, tanto na área das ciências naturais quanto na área das ciências religiosas. Sua data de nascimento é especulada como tendo sido 18 de Maio de 1048, uma vez que o historiador Zayd-e Bayahaqi apresenta o Mapa Natal Astrológico de Khayyam: “Ele era um geminiano, com o Sol e Mercúrio na casa Ascendente [...]”.
Omar teve o privilégio de estudar grandes tutores que ensinavam as crianças da nobreza local, além de ter a oportunidade de aprender diversas matérias diferentes, uma vez que a região de Nishapur, à sua época, era conhecida pela efervescência da troca cultural e comercial, ocasionada pelo constante influxo de mercadores e imigrantes árabes de um lado e peregrinos e caravaneiros persas e turcos de outro, além de ser parte da Rota da Seda com a China também com as rotas de comércio até o continente índico. Em virtude disso, não foi nenhuma surpresa ou dificuldade que logo que completou seus estudos em Nishapur, Omar mudou-se para Bucara em 1068, onde continuou a estudar até mudar-se novamente para Sarmacanda, dois anos depois, sendo estas duas cidades dois outros grandes centros culturais, comerciais e religiosos do Khorasan.
Em Sarmacanda, Omar recebeu o patrocínio para seus estudos e vida acadêmica do qadi (juiz-chefe) da cidade, começando assim a compor o que viria a ser uma de suas principais obras: Tratado sobre a Álgebra. Sua proficiência nos estudos matemáticos e astronômicos, bem como sua eloquência poética o conduziram até a corte do governante Caracânida da Ásia Central, Shams al-Mulk Nasr, que por sua vez fez amizade com Omar e o fez integrante não só da corte, mas do seu governo.
A principal área de interesse, além da Astronomia, para Khayyam, era a Matemática. Poucos de seus trabalhos, porém, sobreviveram, sendo um deles o Risāla fī šarḥ mā aškala min muṣādarāt kitāb Uqlīdis, isto é, o “Comentário sobre as dificuldades nos postulados dos elementos de Euclides”, um trabalho sobre a matemática do grego Euclides. Uma parte do comentário de Khayyam sobre os Elementos de Euclides trata do chamado “axioma dos paralelos”. O tratado de Khayyam pode ser considerado o primeiro tratamento do axioma a ser tratado em postulado mais intuitivo, ao mesmo tempo que Khayyam refuta as tentativas anteriores de outros matemáticos. Baseando-se nos pontos de vista de Aristóteles, ele rejeita o uso do movimento na geometria e, portanto, descarta a tentativa diferente de Al-Haytham. Insatisfeito com o fracasso dos matemáticos em provar a afirmação de Euclides a partir de seus outros postulados, Omar tentou conectar o axioma com o Quarto Postulado, que afirma que todos os ângulos retos são iguais entre si.
Como verdadeiro polímata, Khayyam teve diversos outros temas sobre os quais escreveu ou comentou: um pequeno tratado é sobre a teoria musical em que ele discute a conexão entre música e aritmética. A contribuição de Khayyam foi fornecer uma classificação sistemática de escalas musicais e discutir a relação matemática entre notas menores e maiores. Do mesmo modo, Khayyam pode ser considerado o precursor de Descartes na invenção da geometria analítica, uma vez que em outra obra sobrevivente sua, o Tratado sobre a divisão de um quadrante de um círculo, Khayyam aplicou a álgebra à geometria para dela derivar suas conclusões racionais.. De fato, o trabalho de Khayyam é um esforço para unificar álgebra e geometria
Após os ataques seljúcidas contra os Caracânidas, Omar faria seu caminho até as mãos do governante do Império Turco-Seljúcida, Malik Shah, que o recebeu com honras. O Grão-Vizir de Malik Shah logo delegou a Omar a tarefa de montar e liderar um grupo de cientistas-astrônomos para operarem num observatório que viria a ser construído em Isfahan, no Irã, com a tarefa de reformarem com maior precisão o Calendário Persa. Havia um time de oito estudiosos trabalhando sob a direção de Khayyam para fazer observações astronômicas em larga escala e revisar as tabelas astronômicas do então Calendário Persa. Centro do Sol no equinócio vernal. Isso marca o início da primavera ou Nowrūz, um dia em que o Sol entra no primeiro grau de Áries antes do meio-dia e o Ano Novo persa. O calendário resultante foi nomeado em homenagem a Malik-Shah como o Calendário Jalali, e foi inaugurado em 15 de março de 1079. O observatório em si foi desativado após a morte de Malik-Shah em 1092.
O calendário feito sob medida por Omar e seu time de astrônomos resultou num genuíno Calendário Solar que mescla a Astronomia e a Astrologia, numa época em que ambas andavam juntas, antes da chegada do conceito ocidental-iluminista de “segregação dos saberes” que elevou a Astronomia ao patamar de ciência moderna mas relegou a excelse ciência da Astrologia ao limbo das crendices religiosas, uma vez que no calendário de Omar, a duração de cada mês é igual ao tempo da passagem do Sol pelo Signo correspondente do Zodíaco. A reforma do calendário introduziu um ciclo único de intercalação de 33 anos. Conforme indicado pelos trabalhos dos historiadores, o grupo de Khayyam implementou um sistema de intercalação baseado em anos bissextos quadrienais e quinquenais. Portanto, o calendário consistia em 25 anos comuns que incluíam 365 dias e 8 anos bissextos que incluíam 366 dias. O calendário permaneceu em uso em todo o Grande Irã dos séculos 11 ao 20. Em 1911, o calendário Jalali tornou-se o calendário nacional oficial do Irã da Dinastia Qajar. Em 1925, sob Mohammed Reza Pahlavi Shah, ele foi simplificado e os nomes dos meses foram modernizados, resultando no calendário iraniano atual. O calendário Jalali é mais preciso que o calendário gregoriano de 1582, com um erro de um dia acumulando mais de 5.000 anos, comparado a um dia a cada 3.330 anos no calendário gregoriano. O historiador Moritz Cantor considerou-o o calendário mais perfeito já criado.
Ao mesmo tempo que trabalhava para a Corte Seljúcida, Omar teve que lidar com diversos boatos e ataques por parte do clero sunita, que o acusavam de heterodoxia e falta de zelo religioso, além de simpatia (ou mesmo prática secreta) da fé Zoroastrista. Tais alegações se devem, em parte, por muitos de seus poemas (chamados de rubayats, ou “quartetos’ por serem escritos em 4 versos) cujos temas aludem, ainda que subliminarmente, a temas tão controversos e até contrários à crença islâmica ortodoxa como o niilismo e o ocasionalismo existencialista, apesar de haver um certo problema historiográfico no que se diz respeito à verdadeira autoria de muitos rubayats que lhe são atribuídos. Mesmo não havendo consenso entre os historiadores, uma coleção de rubayats atribuídos a Khayyam foram traduzidos para o inglês no século XIX por Edward Fitzgerald e fizeram sucesso entre os orientalistas anglófonos.
Fitzgerald enfatizou o ceticismo religioso que encontrou nos poemas de Khayyam, ao compasso que muitos historiadores seguem essa mesma linha, incluindo historiadores árabes de sua época, como Ali ibn Yusuf Al-Qifti, que confirmava o viés subliminar dos poemas de Khayyar que, apesar de serem escritos em tradicional estilo sufi, carregavam uma agenda anti-religiosa e cética consigo. Se considerarmos seus escritos e comentários sobre filosofia, é uma hipótese bastante plausível: Khayyam é considerado ter sido influenciado pelo pensamento de Avicena. De acordo com al-Bayhaqi, ele lia o Livro da Cura de Avicena antes de morrer. Há seis artigos filosóficos que se acredita terem sido escritos por Khayyam. Um deles, Sobre a existência (Fi'l-wujūd), foi escrito originalmente em persa e trata do assunto da existência e sua relação com as variáveis universais. É de se notar que o tema do existencialismo é comum entre filósofos ceticistas. Desse modo, é plausível para nós encararmos Khayyam não como um ateu como al-Ma’arri nem como um sufi incompreendido como Ibn Tufayl, mas sim como um meio termo entre os dois: um existencialista agnóstico.
Após o assassinato de Malik Shah (possivelmente pela Tariqa ol-Hashshashin – a Ordem dos Assassinos dos ismailitas nizaris), Omar acabou caindo em desfavor mediante a Corte e a nobreza seljúcida. Para melhorar sua imagem e passar uma boa impressão, ele decidiu fazer o Hajj até Meca, ao que, logo depois de seu retorno, foi contratado pelo novo sultão, Sanjar, para a capital seljúcida de Merv para trabalhar como astrólogo. Com sua saúde se deteriorando, Khayyam retornou à Nishapur sob licença do Sultão, onde viveu uma vida reclusa até sua morte em 1131, aos 83 anos. Hoje, seu mausoléu em Nishapur é um famoso destino turístico da cidade, uma vez que, após séculos de negligência, foi erigida uma estrutura de mármore branco decorada com estilos persas e caligrafia dos rubayats de Omar, tornando-se um dos símbolos da arquitetura persa moderna. Omar ibn Khayyam deixou um grande e complexo legado, assim como também deixou muitas dúvidas e segredos para os historiadores que se dispõe a estudar sua vida, suas obras e seu legado. Sua contribuição para a Astronomia, a Matemática, a Astrologia e outras ciências exatas e naturais são inegáveis, mas as particularidades de sua vida pessoal, suas crenças ou mesmo a autoria de seus poemas, parecem-nos que continuarão a ser sempre incógnitas ou matérias de especulação. Se Omar quis esconder ou não dar pé de suas crenças, ele o fez tão bem que até hoje não pudemos, com certeza, afirmar qualquer coisa sobre elas ou sobre ele, exceto que foi um grande homem.
Bibliografia
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