Texto de: Mohamad Ballan

Como muitos outros conceitos que moldam nossa compreensão da história medieval, a ideia de uma Idade de Ouro Muçulmana é uma construção historiográfica. Ela promove a noção de que, pelo menos até ao início do século XIII, o mundo muçulmano experimentou uma era de estabilidade sem precedentes, prosperidade e produção cultural.

Mais particularmente, ela enfatiza que o período entre os anos 800 e 1200, às vezes estendido para 1700, a fim de incluir os otomanos e mongóis (os safávidas são geralmente ignorados), como representante do auge do esforço humano no mundo muçulmano. Há muitos problemas com esta perspectiva.

A Ideologia por trás do mito

Deixando de lado o fato de que a narrativa da Idade de Ouro Islâmica impõe um quadro anacrônico na história muçulmana medieval, seu principal argumento de que o período entre 800 e 1200 pode ser caracterizado, principalmente, pela tolerância, eflorescência cultural, unidade política e harmonia religiosa, é contrário a muitos dos fatos que encontramos ao lermos a história das várias civilizações que são reunidas sob a categoria de Civilização Islâmica.

Outro fato importante é que o termo “Civilização Islâmica” esconde a diversidade linguística, cultural, intelectual, teológica e política das terras em que os muçulmanos residiram durante os períodos medieval e moderno.

Isso para não falar do fato de que as narrativas promovidas por essas perspectivas da Idade de Ouro são, geralmente, uma reformulação das histórias oficiais que não levam em conta as realidades dos grupos marginalizados durante o mesmo período.

A perspectiva da Idade de Ouro também é problemática porque é, em muitos aspectos, uma resposta aos muitos desafios políticos, religiosos e intelectuais enfrentados pelo mundo muçulmano no período moderno.

Particulares narrativas históricas sobre a Idade de Ouro Islâmica se tornam um repositório importante para a grandeza da “Civilização Islâmica” e um refúgio em que os muçulmanos podem buscar consolo para refutar a ideia, promovida por aqueles hostis ao Islã e a civilização muçulmana, de que ela foi, é, e sempre será caracterizada por morte, destruição e caos.

Uma das principais formas com as quais os muçulmanos tentam minar noções orientalistas de decadência da civilização muçulmana é, portanto, através da promoção de uma narrativa de uma Idade de Ouro muçulmana, gloriosa e ilustre, em que a civilização no Oriente Médio floresceu durante séculos sob os auspícios da Ideologia Islâmica.

É interessante notar que muitos orientalistas não foram os criadores da tese de declínio e muitos estudiosos orientalistas desempenharam um papel em fomentar o interesse na chamada Idade de Ouro.

Dessa maneira, a ênfase em uma Idade de Ouro Islâmica, normalmente, não é baseada em qualquer compromisso global com fontes históricas ou desejo de descobrir a realidade atual da história muçulmana medieval e moderna.

Na sua essência, o projeto é puramente reacionário e visa munir muçulmanos com a armadura ideológica de que necessitam para suportar críticas modernistas contra a sua civilização. Infelizmente, no entanto, no decurso de fazê-lo, o paradigma da Idade de Ouro tende a sujeitar fatos históricos aos seus interesses ideológicos estreitos.

Em outras palavras, as nuances da história muçulmana e da civilização são completamente obscurecidas em face de grandes declarações, voltadas para enfatizar não só a retidão, mas a supremacia absoluta da civilização muçulmana, como acreditava-se ter manifestado entre 800 e 1700.

É neste ponto onde a história deixa de ser um esforço intelectual crítico e, em vez disso, se torna polêmica e apologética. Neste pequeno espaço, eu irei apresentar um exemplo simples de como a perspectiva Idade de Ouro impede um entendimento sério da história muçulmana, olhando para o tema da tolerância e intolerância.

Tolerância vs. Intolerância

A afirmação “Saladino era o homem mais tolerante em sua época” é encontrada comumente entre muitos indivíduos e grupos que promovem a noção de uma Idade de Ouro Islâmica. Às vezes, somos ainda contados que a tolerância religiosa era desconhecida na Europa cristã, enquanto ela supostamente prosperava no mundo islâmico.

Tais declarações são repetidas até em círculos intelectuais tradicionais, ainda que com argumentação mais sofisticada e embasada. No entanto, um compromisso histórico sério com a história medieval vai mostrar que Saladino não era exatamente uma anomalia como ele é muitas vezes retratado sendo.

Ele poderia ser facilmente comparado com vários governantes não-muçulmanos que viviam nos séculos XII e XIII. Por exemplo, Afonso VI de Castela e Leão (r. 1077-1109), James I de Aragão (r. 1213-1276), ou Roger II da Sicília (r. 1130-1154), os quais toleraram um grande número de muçulmanos e judeus que viviam sob os seus domínios.

Alfonso VI adotou o título de “Imperador das duas religiões” para sublinhar o seu compromisso com seus súditos muçulmanos, e Roger II era conhecido como “O Sultão batizado” por seu tratamento benevolente com muçulmanos e promoção da cultura árabe.

Por uma questão de fato, no século XV, haviam, provavelmente, mais muçulmanos sob o domínio cristão na Espanha do que aqueles que viviam sob o domínio muçulmano. Na verdade, um grande códice da lei islâmica, O Brevario Sunna, foi compilado em espanhol por Yca de Segovia, por volta de 1450, para uso dos hispano-muçulmanos.

No entanto, esses fatos são problemáticos para muitos muçulmanos que buscam promover a perspectiva de Idade de Ouro, pois prejudica sua ênfase em um excepcionalismo islâmico, no qual Saladino é visto como representante.

Tolerância, definida estritamente no contexto medieval de aceitar a existência, mas não a legitimidade do outro, pode, portanto, ser encontrado em ambos os lados da linha divisória civilizacional na Idade Média. Tinham ambos os campeões e opositores da cristandade e do mundo islâmico.

Além disso, a prática muitas vezes não reflete a teoria. É, portanto, infundado tentar afirmar que a cristandade, não se limitando à Europa, ou a civilização muçulmana eram inerentemente mais tolerantes ou intolerantes.

Tolerância, uma categoria que é, por si só, muito difícil de definir no contexto medieval, é algo que vai muito além da contagem das atrocidades ou exemplos de convivência em cada lado da linha divisória civilizacional.

Seria um erro tentar identificar qualquer coisa parecida com a ideia moderna ou princípio de tolerância, muito menos impor-la como uma categoria definitiva sobre a Idade Média. Posto que, naquela época, ela estava em constante mudança, sendo implantada em momentos diferentes para uma variedade de razões.

O exemplo da promoção de Saladino como um modelo exemplar de tolerância é um caso em questão. Enquanto é mencionado que ele era tolerante em direção a seus inimigos, existem alguns aspectos-chave da sua carreira que são omitidos pelos promotores do paradigma da Idade de Ouro.

Saladino demonstra em sua própria vida que ele poderia ser tão cruel quanto qualquer monarca europeu contemporâneo, tendo impiedosamente executado centenas de homens desarmados, templários e hospitalários derrotados, após a batalha de Hattin em 1187.

Na verdade, seu objetivo inicial era conquistar Jerusalém pela força e abater ou escravizar os habitantes, como uma maneira de vingar a conquista cruzada de 1099, cuja lembrança ainda estava fresca na mente de muitos muçulmanos contemporâneos.

Além disso, quando ele finalmente aceitou a rendição de Jerusalém, ele impôs a condição de que centenas de seus habitantes cristãos fossem vendidos como escravos, a menos que eles pudessem comprar sua liberdade. O resgate foi de 10 dinares para os homens, 5 para mulheres e 1 para crianças.

Durante o seu reinado, o grande filósofo místico Shihab al-Din Suhrawardi (d. 1191), também foi executado, por crucificação, por contrariar a “ortodoxia” estabelecida. As bibliotecas fatímidas do Cairo, repositórios de centenas de milhares de obras, foram destruídas e saqueadas pelas tropas de Saladino.

Estes fatos dificilmente são um marcador de tolerância, mesmo para os padrões muçulmanos medievais. Na obra “Vida de Saladino”, escrita por Bahauddin, companheiro e cronista de Saladino, esses acontecimentos são claramente definidos. Nas crônicas contemporâneas de Imad al-Din al-Isfahani das Cruzadas essas histórias também são narradas.

Uma observação interessante é que a popularização da lenda de Saladino como um “cavaleiro cavalheiresco” e um exemplo de tolerância foi, parcialmente, um produto de muitos dos esforços dos orientalistas europeus durante o final do século XIX.

A Espanha Medieval Islâmica

Outro mito que os escritores da Idade de Ouro gostam de promover é a ideia da Espanha medieval islâmica (al-Andalus) como um refúgio de tolerância e coexistência. Embora seja verdade que houve um grande grau de coexistência de religiões na Espanha medieval e alguns exemplos importantes de tolerância, houveram também uma grande quantidade de intolerância.

Na verdade, alguns dos episódios mais brutais da história islâmica ocorreram em al-Andalus. Em 1066 um grupo de muçulmanos assassinaram cerca de 4000 judeus em Granada, enquanto que no século XII, a dinastia almóada forçou todos os judeus e cristãos em al-Andalus e Norte da África a se converterem ao Islã ou escolher o exílio.

Entre os mais importantes desses exilados estava o filósofo judeu Moses Maimonides, que se refugiou em outra área do mundo islâmico, o Egito.

As obras de vários filósofos e teólogos muçulmanos, incluindo tanto al-Ghazali (d. 1111) como Ibn Rushd (d. 1198), foram queimados publicamente no pátio da Grande Mesquita de Córdoba. Outros episódios, como os mártires de Córdoba, 851-859, e a destruição de Santiago de Compostela, em 999, também mostram que al-Andalus não pode ser simplesmente reduzida a um paraíso de tolerância.

A existência de instituições opressivas, como a escravidão e a estratificação social da sociedade andaluza também ressaltam este ponto. No entanto, assim como não devemos afirmar que al-Andalus era um refúgio de tolerância com base em vários exemplos e anedotas, nós também não devemos reduzir a história de al-Andalus a uma sequência de estragos e massacres, como alguns pensadores anti-islâmicos fizeram.

A complexidade das sociedades

A história islâmica iraniana, turca e sul-asiática também está repleta de episódios de intolerância e atrocidades. Timur, ou Tamerlão, disse ter deixado várias torres de 100.000 crânios depois de seu saque a Delhi, em 1399.

Entre 1501 e 1520, a dinastia safávida violentamente impôs a doutrina xiita sobre o planalto iraniano, matando dezenas de milhares de sunitas, enquanto o sultão otomano Selim I matou cerca de 40.000 xiitas na Anatólia, entre 1512 e 1515. A excomunhão mútua dos Impérios Safávidas e Otomanos também demonstram que, mesmo nas relações intra-muçulmanas, a intolerância pode prosperar.

No entanto, esta lista de atrocidades não significa que devemos tomar estes desenvolvimentos fora do seu contexto específico e justificar a usá-los para pintar uma imagem da civilização muçulmana medieval como uma fortaleza de selvageria e intolerância.

Assim como qualquer pessoa racional deve rejeitar a construção de uma grande narrativa da história islâmica com base nesta lista de atrocidades, também deve rejeitar as narrativas que são construídas em cima de anedotas de tolerância e convivência igualmente problemáticas.

Existem centenas de outros exemplos que podem ser implantados para demonstrar a violência da civilização islâmica, assim como centenas de exemplos podem ser citados para provar a tolerância do mundo islâmico medieval e moderno, além dos brilhantes exemplos de arte e literatura que foram produzidos como resultado de contatos inter-religiosos e inter-culturais.

É muito irresponsável assumir qualquer dos exemplos de tolerância ou os exemplos de intolerância e agregá-los juntos em uma narrativa que prepara-se para lançar o mundo muçulmano em uma determinada luz, criando uma generalização.

Vale ressaltar que muitas das mesmas dinastias e civilizações responsáveis por grande parte do florescimento intelectual, magníficos monumentos e produção cultural durante o início do período moderno também eram capazes dos piores exemplos de intolerância.

Isso é algo em que vale a pena prestar mais atenção, e só ressalta a inutilidade dos paradigmas da Idade de Ouro, ou Idade das Trevas, que reduzem a complexidade da civilização para um modo singular de conduta, sem levar em conta que, muitas vezes, tolerância e intolerância foram subprodutos da mesma civilização.

O problema com o paradigma da Idade de Ouro Islâmica, além disso, é que ele não reconhece a complexidade das sociedades e da história muçulmana e tende a passar por cima de realidades e fatos incômodos, em sua tentativa de retratar um quadro róseo do passado islâmico.

Isso não é diferente dos propagandistas anti-islâmicos que buscam demonizar os muçulmanos, apontando para as acontecimentos vistos como intolerantes, tirados do passado muçulmano.

De qualquer forma, reduzir qualquer civilização a uma mera categoria de tolerante ou intolerante é, portanto, exibir grande desconhecimento da realidade das sociedades humanas. É melhor deixar isso ao reino da polêmica e apologética.

Fonte:

Sobre a questão de Saladino ter ou não destruído a biblioteca fatímida, deixo esta analise historiográfica: https://goo.gl/5UjNcM