A comédia de restauração de William Congreve, “The Way of the World” (1700) conta a história de dois amantes, Sr. Mirabell e Sra. Millamant. No Ato IV, Cena 5, Mirabell instrui sua futura esposa a “se limitar a bebidas simples e naturais de mesa de chá”, como o “chá, chocolate e café” [1]. Dada as origens exóticas destas bebidas, no entanto, as ordens de Mirabell mostram, ainda que de forma um tanto irônica, quão rapidamente foram apropriadas pela sociedade inglesa. O café e as cafeterias, por exemplo, chegaram na Inglaterra durante o século XVII, e, na virada do século XVIII eles já tinham se tornado um lugar-comum urbano, onde a classe média emergente discutia negócios, política e tendências literárias. A história de seus importantes efeitos na cultura inglesa foi contada com frequência, mais notavelmente pelo filósofo social alemão Juergen Habermas (1989) e mais recentemente por Markman Ellis (2004) e Brian W. Cowan (2005), mas menos conhecidas são as origens da cultura das cafeterias no mundo muçulmano e seus primeiros impérios modernos. Esta postagem discutirá, portanto, as histórias interconectadas entre Oriente e Ocidente ao mesmo tempo em que lança uma nova luz sobre a coisa confusa que passamos a chamar de democracia.

À medida que a exploração mundial inglesa começou a se intensificar no começo do século XVII, vários viajantes prouveram seus leitores com descrições detalhadas da vida social otomana. George Sandys (1610). William Lithgow (1632) e Henry Blount (1636), dentre outros, reportaram como os homens otomanos se reuniam, conversavam e bebiam em público. Buscando, em vão, por uma taverna em Istambul, Sandys, por exemplo, descreve suas “casas de coffa”, que se pareciam com uma. Lá, eles ficavam sentados, conversando ao longo do dia; bebendo um gole da bebida chamada “coffa”... em pequenos pratos de porcelana, servidas fervendo [2]. Diferentemente do álcool nas “innes e ale-houses” inglesas, escreve Henry Blount mais de duas décadas depois, o seu “Cauphe... nunca causa embriaguez”, sendo um mero “entretenimento inofensivo de boa camaradagem” [3]. Para os dois viajantes, a convivência masculina nas casas de café parece ter sido uma característica marcante da sociedade otomana, não apenas pela novidade do café, mas também pela interação relativamente pacifica que gerava. E assim que os “turkes” se sentavam juntos, tinham ampla oportunidade de fofocar, trocar notícias e discutir política.

Não é de surpreender, portanto, que Blount tenha continuado a defender o café ao longo de sua vida. Em 1657, ele publicou Organon Salutis. Na Instrument to Cleanse the Stomach, um texto curto, no qual descrevia os bons efeitos do café. E, à época, as primeiras cafeterias já tinham sido abertas em Londres, e nas décadas seguintes, se tornariam destinos cada vez mais populares para oficiais de governo, os elegantes e os homens da classe média, que estavam interessados em promover seus interesses comerciais e impulsionar mudanças sociais através de discussões políticas. Podemos vislumbrar o complexo e multifacetado mundo social da cafeteria através do diário do administrador naval Samuel Pepys, que manteve de 1660 a 1669. Em 3 de fevereiro de 1663 (ou 1664), por exemplo, Pepys destaca o seguinte: “Em Covent Garden esta noite, indo buscar minha esposa para levar para casa, parei na grande cafeteria de lá, onde nunca estive antes; onde Dryden, o poeta (que conheci em Cambridge), e todos os gênios da cidade, e Harris, o jogador, e Sr. Hoole, da nossa faculdade. Se eu tivesse tempo, então, ou pudesse em outras ocasiões, seria bom ir até lá, pois lá, percebo, há uma discurso muito espirituoso e agradável” [4]. Ao longo de seu diário, Pepys relata suas visitas frequentes às cafeterias de Londres, detalhando tanto a companhia quanto os tipos de conversas que aconteciam lá. O inglês, em geral, e Pepys, em particular, parece, eram bastante afeitos a esta importação otomana, incorporando-o de vez ao tecido cultural da Londres da Restauração e capacitando as classes médias a participar da disseminação de notícias e do debate político.

Em seu estudo amplamente influente, “Mudança Estrutural da Esfera Pública” (1962), Juergen Habermas considerou as cafeterias, bem como as interações que gestaram, como uma inovação inglesa e um “caso modelo” [5]. Muitos historiadores sociais e culturais seguiram seu exemplo, oferecendo críticas feministas e baseadas em gênero à teoria da esfera pública e debatendo até que ponto ela existia como realidade factual ou como um ideal que ainda não havia sido realizado. Deixando de lado tais nuances históricas e diferenças teóricas, no entanto, o cerne do argumento de Habermas ainda está conosco hoje e é mais ou menos assim: durante grande parte do período moderno inicial, a “esfera pública literária” existia apenas no domínio privado, permitindo que indivíduos fora das cortes absolutistas pudessem discutir, principalmente, a produção literária contemporânea de maneira mais ou menos apolítica [6]. Restrita às cortes reais, assuntos políticos eram centralmente administrados e culturalmente policiados. Mas, conforme as estruturas sociais rígidas do estado absolutista se tornaram mais porosa durante a emergência de uma classe média comercialmente inclinada e tais importantes mudanças políticas, como a Revolução Gloriosa em 1688, os debates sociais começaram a incorporar material político mais urgente. Com o advento das cafeterias na Inglaterra, estas trocas encontraram um fórum público e acessível. Por meio de suas discussões nas cafeterias, continua o argumento de Habermas, o povo adquiriu peso político, estabelecendo, em última análise, uma “esfera pública política” completa no início do século XVIII e levando ao desenvolvimento de instituições democráticas nascentes (por exemplo, uma imprensa independente).

Por exemplo, Richard Steele e Joseph Addison, fundadores do, respectivamente, The Tatler (1709-11) e o The Spectator (1711-12) esperavam que seus periódicos fossem lidos em voz alta e debatidos em público para disseminar as publicações do dia [7]. Sobre um copo de café, então, a “classe média inglesa começou”, como o sociólogo Hans Speier argumentou, “a se educar nos cafés” [8]. Mas, à medida que as estruturas democráticas incipientes ganharam força nas décadas seguintes, a memória das origens otomanas da cultura das cafeterias começou a desaparecer, levando, eventualmente à reificação da democracia como uma invenção genuinamente europeia. No entanto, sem o café ou a cafeteria, a trajetória dos desenvolvimentos políticos na Europa provavelmente teria sido muito diferente. E vistas dessa forma, as raízes da modernidade, das sociedades multiculturais e das instituições democráticas estão, sem dúvida, no mundo muçulmano. E sempre que tomamos uma xícara de café, sem perceber, na verdade, absorvemos um bocado de história interconectada, dívida cultural e diversidade étnico-religiosa que poderia, num mundo ideal, reescrever um passado anglo-islâmico perdido e levar a futuros mais desejáveis tanto para a Europa quanto para o Oriente Médio.

Referências:

[1] William Congreve, The Way of the World (1700), Act IV, lines 240-1.

[2] George Sandys, A Relation of a Journey begun An. Dom 1610 (London: W. Barret, 1615), 66.

[3] Henry Blount, A Voyage into the Levant (London: John Legatt, 1636), 105-6.

[4] Samuel Pepys, ‘Wednesday 3 February 1663/64,’ in: The Dairy of Samuel Pepys: Daily Entries from the 17th Century London Diary. https://www.pepysdiary.com/diary/1664/02/03. Accessed: 10 July 2020.

[5] Juergen Habmermas, The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Burgeois Society, transl. by Thomas Burger (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1989), 57 – 67.

[6] Brian Cowan, ‘What was Masculine about the Public Sphere? Gender and the Coffeehouse Milieu in Post-Restoration England,’ History Workshop Journal, No. 51 (Spring, 2001), pp. 127 – 157, here: 129.

[7] Gerald MacLean, Looking East: English Writing and the Ottoman Empire before 1800 (Basingstoke: Palgrave, 2007).

[8] Hans Speier, ‘The Historical Development of Public Opinion,’ in Speier, ed., Social Order and the Risks of War (Cambridge, Mass. & London: M.I.T. Press, 1952), 323–338, here 329-30.

Texto original: A Cup of Democracy, Anyone? Or: A Different Story of Modernity | MEMOs