As grandes religiões do Mundo – o Cristianismo, o Islã, o Judaísmo e o Hinduísmo – reconhecem, cada um com suas particularidades, um fato em comum: que este mundo em que vivemos, um dia, chegará ao fim; a isto dá-se o nome de “escatologia”. Apesar dessa crença, no entanto, a maioria das correntes dessas referidas tradições religiosas exortam seus fiéis a levarem vidas normais, com a maioria destes, inclusive, não se preocupando tanto se o dia está próximo ou não. Todavia, ao longo da história das religiões, muitos começaram a desenvolver crenças recheadas de medo que o fim dos tempos estaria próxima, e a chegada de um “Messias”, junto. Isto levou a uma penca de movimentos inter-religiosos, especialmente entre as religiões abraâmicas, onde a escatologia é eminentemente messiânica, que acabaram por originar o fenômeno que hoje chamamos de milenarismo religioso. Este nome, “milenarismo”, nasceu e se popularizou com as seitas cristãos pós-Reforma protestante, especialmente da Inglaterra, que acreditavam que estavam no ‘último milênio’ e deveriam se preparar para a iminente volta de Jesus Cristo.

As ideias milenaristas, no entanto, são bem anteriores à própria cunhagem do termo: o monge Joaquim de Fiore disseminou suas ideias milenaristas e interpretações heterodoxas (se não heréticas) entre os franciscanos, na Alta Idade Média, do qual surgiram duas seitas: os fraticellis entre os franciscanos e o Culto ao Divino Espírito Santo, um culto popular na ilha dos Açores que inclusive fez sua via até o Brasil. No Judaísmo, o pretenso-messias Shabbetai Zevi dividiu a judiaria sefardita e ashkenazita do século XVII, reclamando para si a coroa messiânica judaica e a redenção dos Judeus. Acabou sendo preso pelo sultão otomano e se convertendo ao Islã para escapar de uma possível condenação à morte; a maioria de seus seguidores se arrependeu e voltou ao Judaísmo ortodoxo, mas seus mais fiéis seguidores se converteram ao Islã, também, e passaram a praticar secretamente um judaísmo distorcido pelas doutrinas heterodoxas e heréticas de Zevi. No Cristianismo, não nos faltam exemplos: de longe é a religião que mais produziu cultos milenaristas, mas poucos sabem que tais ideias fizeram seu caminho mesmo no Islã: podem ser ditos alguns cultos minúsculos dentre os xiitas dos primeiros séculos do Islã, como os Cármatas, a seita ismailita que saqueou Meca e destruiu a Caaba e a Pedra Negra em prol de sua utopia messiânica sediada na costa do Golfo Pérsico, por exemplo. Neste artigo, todavia, depois desta introdução ao tema, falaremos de um distinto movimento milenarista, dentre outros, que se originou no seio do Islã: o qadianismo, também chamado de Ahmadiyya em virtude do sobrenome de seu fundador.

Na província da Índia britânica do Punjab, nasceu em 1835 Mirza Ghulam Ahmad, na cidade de Qadian (de onde vem o epíteto qadiani), numa zona rural e pobre. Mirza, no entanto, não nasceu pobre: vinha de uma família com raízes aristocráticas. Ghulam Ahmad gozou de uma boa educação para a época e sobressaiu-se como escritor e debatedor do Islã. Quando ele tinha pouco mais de quarenta anos de idade, seu pai morreu e, nessa época, passou a crer que Deus começou a se comunicar com ele. Em 1889, enquanto o Império do Brasil desmoronava e a República despontava, ele fez um juramento de fidelidade de quarenta de seus apoiadores na cidade punjabi de Ludhiana e formou uma comunidade de seguidores sobre o que ele afirmou ser instrução divina, estipulando dez condições de iniciação, um evento que marca o estabelecimento do movimento Ahmadiyya.

Mirza Ghulam, então, proclamava-se com efeito o Mahdi, o “Messias” do Islã. Uma figura escatológica do Islã, o Mahdi viria para anunciar e abrir caminho para o retorno do Profeta ‘Isa (Jesus), que instituiria um Califado mundial que duraria até o Fim dos Tempos, no Dia do Juízo Final. Desse modo, Mirza fundava, então, um movimento milenarista, que acreditava não apenas que Mirza Ghulam Ahmad traria o Califado Vindouro, mas veio a estabelecer esse Califado através da sua dawah. O movimento qadiani, no entanto, não se resume a isso: suas crenças serão discutidas mais a frente, após vermos uma breve história do movimento.

Como vimos, Mirza Ghulam Ahmad nasceu em 1835 e começou sua “dawah”, isto é, seu proselitismo, apenas em 1889, apesar de ter reivindicado a nomeação divina como reformador (mujjadid) já em 1882, não tendo feito, todavia, nenhum anúncio “público” ou feito seus seguidores lhe prestarem fidelidade (bayah), qual qual acontece numa tariqa (ordem sufi). Já em 1889, Ahmad anunciou que Deus havia ordenado que os seus entrassem em uma bayah com ele e lhe prestassem fidelidade. Em janeiro de 1889, ele publicou um panfleto no qual expunha condições e instruções a seus seguidores; em março, seus seguidores saíram para o proselitismo, iniciando assim, de fato, o movimento ahmadiyya, com cerca de quarenta seguidores no total. Ao longo do seu tempo à frente da comunidade, lutou para estabelecer-se como o Mahdi e um Mujaddid e ser reconhecido pela comunidade islâmica mundial e pelos ulemás. Os ulemás, no entanto – os juristas e os sufis, os estudiosos no geral – o rechaçaram e, em Medina, foi declarado herege e apóstata. Mirza Ghulam utilizava-se de debates e retórica para angariar apoio e prosélitos para sua seita, aproveitando-se de tudo que podia ser aproveitado: em 1864 e, depois em 186, três anos depois de sua “revelação”, aconteceram dois eclipses solares, que Ghulam, bem inteirado na literatura clássica islâmica de que um dos sinais do Mahdi serão eclipses, utilizou-se disto para legitimar-se. Mirza Ghulam faleceu em 26 de maio de 1908, tendo morrido “oficialmente” como resultado de velhice e fraqueza, embora haja diversas lendas sobre sua morte (como a muito difundida que teria morrido de diarreia). Seu corpo foi posteriormente levado para Qadian e enterrado lá.

Logo após sua morte, foi sucedido pelo seu “Primeiro Califa” (uma vez que, como veremos adiante, Mirza Ghulam não parou em se considerar o Mahdi e um mujaddid: ele passou a se considerar, também, um profeta!), Hakeem Noor-ud-Din. No período de seu califado, marcado por uma grande aliança e cooperação com os ingleses, ele supervisionou uma tradução para o inglês do Alcorão, o estabelecimento da primeira missão muçulmana Ahmadiyya na Inglaterra.

 Mirza Basheer-ud-Din Mahmood Ahmad foi eleito o segundo califa, de acordo com a vontade de seu antecessor. No entanto, diferenças doutrinárias e de “personalidade” (isto é, jogo de poder pela sucessão) levaram à primeira “fitna” (cisão) do movimento: separou-se da comunidade Ahmadiyya os Lahore Ahmadiyya, No entanto, que, como diz o nome, sediaram-se na cidade paquistanesa de Lahore. Esse movimento todavia teve relativamente pouco sucesso e não conseguiu atrair um número considerável de seguidores.

Eleito ainda jovem, o califado de Mahmood Ahmad durou quase 52 anos. Ele estabeleceu a estrutura organizacional da Comunidade e dirigiu extensa atividade missionária fora do subcontinente da Índia. Várias semanas após sua eleição, delegados de toda a Índia foram convidados a discutir sobre a propagação da religião. Duas décadas depois, Mahmood Ahmad lançou um esquema duplo para o estabelecimento de missões estrangeiras e a educação moral dos qadianis. Este esquema conclamou os membros da Comunidade a dedicarem seu tempo e dinheiro na causa de sua fé. Com o tempo, o esquema produziu uma vasta literatura em defesa do Islã em geral e das crenças Ahmadiyya em particular. Os fundos também foram gastos no treinamento e envio de missionários Ahmadi para fora do subcontinente indiano. Durante seu tempo, missões foram estabelecidas em 46 países, mesquitas foram construídas em muitos países estrangeiros e o Alcorão publicado em várias línguas importantes do mundo. Embora a Comunidade tenha continuado a se expandir no curso dos califados sucessivos, às vezes em um ritmo mais rápido, o segundo Califa é creditado por grande parte de seu início. Mahmood escreveu muitas obras escritas, das quais a mais significativa e um comentário de dez volumes do Alcorão.

Em 2016, a comunidade havia sido estabelecida em 209 países e territórios do mundo, com concentrações no sul da Ásia, África Ocidental, África Oriental e Indonésia. A comunidade é uma seita muito minoritária em quase todos os países do mundo. Em alguns países como o Paquistão, é praticamente ilegal ser ahmadi. A maioria das fontes independentes estimam que a população seja de pelo menos 10 a 20 milhões em todo o mundo, representando assim cerca de 1% da população muçulmana do mundo (ainda que, pela imensa maioria dos muçulmanos, sejam considerados uma religião a parte). Em 2001, a World Christian Encyclopedia, estimou que o movimento Ahmadiyya foi o grupo que mais cresceu dentro do Islã. Estima-se que o país com a maior população Ahmadiyya seja o Paquistão, com cerca de 4 milhões de Muçulmanos ahmadis. A população está quase inteiramente contida no movimento único, organizado e unido, encabeçado pelo Califa. O outro é o Movimento Ahmadiyya de Lahore, que representa menos de 0,2% da população total Ahmadiyya. Estima-se que os Ahmadiyya sejam de 60.000 a 1 milhão na Índia.

Os ahmadis sofrem muito preconceito e até já sofreram perseguições, a grande maioria delas perpetradas pelos governos locais do Punjab com a conivência das autoridades – inglesas ou paquistanesas. Em documentos oficiais da República do Paquistão, os adeptos têm de usar o termo “qadiani” em seus documentos, não sendo considerados, nem pela ulemá nem pelo governo, como muçulmanos. Ataques por parte de extremistas Deobandis e Salafis não são incomuns, também, tanto no Paquistão quanto na Índia.

As crenças ahmadis-qadianis não diferem tanto, ao menos ‘esteticamente’ se assim podemos dizer do Islã normativo, uma vez que, como todo muçulmano absolutamente normal, eles rezam 5 vezes ao dia em direção a Meca, aderem aos Cinco Pilares e aos Seis Artigos de Fé do Islã. Têm o Alcorão como livro sagrador seus profetas contidos nele, mas a questão está justamente na sucessão profética.

O grande problema no movimento está na sua gênese, no seu milenarismo: Mirza Ghulam Ahmad proclamou que ele era o Messias Prometido e Mahdi. Ele alegou ser o cumprimento de várias profecias encontradas nas religiões do mundo sobre a segunda vinda de seus fundadores, tais como o Mashiach judaico, o Saoshyant zoroastra e o Mahaprabhu prometido nos Vedas hindus. Naturalmente, para quem conhece o Islã, é sabido que, como já foi dito, a vinda do Mahdi precede a de Jesus de Nazaré. Os seguidores de Mirza Ghulam Ahmad dizem que ele nunca afirmou ser o mesmo Jesus físico que viveu dezenove séculos antes. Mirza Ghulam Ahmad afirmou que Jesus morreu de morte natural, em contradição com a visão muçulmana tradicional da ascensão física de Jesus ao céu e a crença cristã tradicional da crucificação de Jesus: Jesus teria sobrevivido à crucificação e vivido uma vida normal até morrer e ser enterrado na Caxemira, na fronteira do Paquistão com a Índia. Ele afirmou em seus livros que havia uma decadência geral da vida islâmica e uma extrema necessidade de um messias. Ele argumentou que, assim como Jesus apareceu no século 14 depois de Moisés, o messias prometido, ou seja, o Mahdi, também deve aparecer no século 14 depois de Muhammad. Mais ainda, Ghulam e seus seguidores o consideram um “profeta”, mesmo que, para o Islã, o último Profeta foi o Profeta Muhammad. Mirza Ghulam seria o grande novo “Profeta-Mahdi-Reformador”, com seu desejo de guiar o Islã e modernizá-lo, tornar ele e seus seguidores, seu povo, mais “refinado” e “europeu”; ao mesmo tempo que se apresenta como uma alternativa aos ocidentais e seu materialismo excessivo.

Desse modo, fica claro que mesmo concordando em muitas coisas do Islã e mantendo outras, a Ahmadiyya é simplesmente um movimento religioso mais que heterodoxo: as reinvindicações de Ghulam e seus seguidores são o suficiente para colocá-los fora do Islã normativo, tanto sunita quanto xiita, que apesar de muito diverso, tem seus limites do que considera uma diversidade aceitável, de modo que hoje em dia a vasta maioria dos estudiosos e do próprio senso comum islâmico determina exatamente isso: os qadianis são uma religião com elementos do Islã, como há em tantos outros micro sectos, não sendo considerados muçulmanos.

Bibliografia:

  • ADAMSON, Iain (1990): “Ahmad, The Guided One”, Islam International Publications.
  • VALENTINE, Simon Ross (2008). “Islam and the Ahmadiyya jamaʻat: history, belief, practice”. Columbia University Press.
  • GUALTIERI, Antonio R. (1989). Conscience and Coercion: Ahmadi Muslims and orthodoxy in Pakistan”. Guernica Editions.
  • "History of the Ahmadiyya Community". Human Rights Watch. 2005.
  • KHAN, Adil Hussain (2015). “From Sufism to Ahmadiyya: A Muslim minority Movement in South Asia”. Indiana University Press.