Em um mundo globalizado, é fácil saber o que se passa no outro lado do globo, assim como se comunicar com os habitantes de locais que nunca visitamos. Tal realidade se tornou mais acentuada através da ampla acessibilidade que temos com a Internet, onde em questão de segundos pesquisamos sobre as mais variadas civilizações, culturas, idiomas e localidades. Em outras épocas, contudo, muitas vezes se fazia necessário ir até determinadas regiões para de fato conhecer algo sobre um povo e cultura.

Antigamente, porém, a locomoção não era tão fácil como hoje em dia. Se hoje temos navios, aviões e carros, em dado momento da história as pessoas precisavam se locomover usando as próprias pernas, mediante tração animal ou em embarcações com condições por vezes muito precárias. Diante disso, as histórias de viajantes que desbravaram o mundo conhecido da época se tornam mais impressionante. Dentre os grandes nomes que entraram para a história, pode-se citar personagens como Ibn Battuta, Ibn Khaldun, Ibn Fadlan e muitos outros.

As histórias dessas figuras vão além de “meras” viagens, uma vez que os mesmos chegaram a locais muito remotos e seus relatos por vezes são a única ou a mais importante fonte a respeito de certos povos, como Ibn Battuta na África ou Ibn Fadlan dentre os povos vikings do Volga, possuindo assim grande importância historiográfica.

Para quem ouve essa história e conhece um pouco das relações dos europeus com os vikings, pode estar se perguntando como esses povos nórdicos foram parar na porção oriental da Europa e também na Ásia Central, ou ainda como desenvolveram essa inclinação ao comércio ao ponto de negociarem com os mercadores e governos muçulmanos.

Mais de um milênio atrás, enquanto as frotas dos invasores vikings estavam causando medo nos habitantes da costa de toda a Europa ocidental, contudo, outros nórdicos de inclinação mais mercantil estavam se dirigindo para o leste. Com não menos ousadia e vontade, eles adentraram nas vastas estepes do que hoje é a Ucrânia, Bielo-Rússia e Rússia e trilharam seu caminho até a Ásia Central. Lá eles encontraram comerciantes muçulmanos que pagavam pelas mercadorias nórdicas com moedas de prata, que os próprios vikings não cunhavam, mas que cobiçavam adquirir.

Suas rotas eram diversas e nos séculos IX e X uma rede regular de comércio cresceu. Alguns nórdicos viajaram por terra e por rio, enquanto outros navegaram pelos mares, mais especificamente o Negro e o Cáspio, pois como todos sabem, os povos do norte eram exímios navegadores. Após isso, se juntaram às caravanas e cavalgaram a camelo até Bagdá, que então estava sob o domínio abássida e habitada por quase um milhão de pessoas. Lá, os mercadores escandinavos encontraram uma civilização que não poderiam imaginar nem em seus mais férteis sonhos, pois em suas terras natais cercadas de fiordes só haviam visto recentemente o surgimento de algumas cidades rudimentares. Cidades imensas que também serviam como grandes centros culturais e intelectuais feito Bagdá era algo inimaginável, algo que quem sabe poderia ser comparado somente aos salões de Valhalla.

Para os habitantes de Bagdá, contudo, é provável que a presença viking não tenha gerado o mesmo espanto e admiração, uma vez que por se tratar de uma grande capital, eles estavam acostumados a receber povos de todos os cantos do mundo conhecido. Eles também eram observadores atentos e letrados. Historiadores abássidas e enviados dos califas (dentre eles ibn Fadlan) colocaram no papel relatos enquanto testemunhas oculares dos viajantes escandinavos, deixando um legado de grande importância histórica.

Desde a época dos primeiros ataques Viking à Inglaterra no final do século VIII, os escandinavos se aventuraram mais longe do que quaisquer outros europeus. Eles colonizaram quase todo o Atlântico Norte, estabelecendo até mesmo um assentamento na América do Norte na virada do milênio, muito antes dos famosos viajantes europeus que só chegariam às Américas a partir do século XV.

Foram em grande parte os vikings da Noruega e da Dinamarca que fizeram essas viagens ocidentais, mas ondas dos chamados "vikings orientais", predominantemente suecos, seguiram para o sudeste para estabelecer centros comerciais em Kiev e Novgorod, onde a elite entre eles se tornou príncipes e governantes. Foi nessas terras que foram observados por vários historiadores muçulmanos, dentre eles Ibn Fadlan, com um dos relatos mais ricos e curiosos em detalhes a respeito dos povos do norte.

O nome viking, porém, não era o utilizado pelos escritores árabes, mas sim Rus, de onde deriva o nome Rússia. O termo viking vai surgir por influência dos povos britânicos, os únicos a chamarem os povos do norte por essa terminologia. Na Europa Ocidental, os registros sobre os ataques vikings eram frequentemente escritos por monges e padres cujos interesses estavam em pintá-los com os aspectos mais obscuros e selvagens. Já no Oriente a história era outra. Lá, os Rus eram principalmente exploradores, colonizadores e comerciantes e, embora chegassem bem armados nos locais, os relatos muçulmanos os descrevem como guerreiros mercadores, cujo principal negócio era o comércio e não a pilhagem.

Na verdade, saberíamos pouco sobre os Rus, os nórdicos no Oriente, se não fosse pelos cronistas muçulmanos. Ibn Fadlan, cuja Risala (Carta) do século IX é o relato mais rico de todos, manteve um diário que detalha seus encontros com os Rus ao longo do Volga, assim como com muitos outros povos. Um século depois, al-Tartushi, um comerciante de Córdoba, descreveu uma cidade mercantil dinamarquesa, legando para nós um raro vislumbre dos nórdicos em seu ambiente doméstico. Outros relatos, como o de al-Masudi escrito em 943 e também o de al-Mukaddasi depois de 985, foram mais breves em suas menções aos vikings, mas coletivamente foram todos pioneiros no que era então o campo da geografia islâmica, uma resposta à sede de conhecimento sobre o vasto mundo islâmico e as regiões além dele, cuja curiosidade se expandia no mesmo ritmo que os estados muçulmanos alcançavam novos povos e países.

Como dito anteriormente, os relatos muçulmanos dos vikings são mais confiáveis do que muitos dos relatos escritos por monges e padres medievais, uma vez que os muçulmanos não viam esses povos com os mesmos olhos. Muitos dos relatos muçulmanos foram traduzidos para as línguas europeias nos últimos dois séculos e estão se mostrando valiosos na interpretação de evidências arqueológicas que continuam a surgir a respeito dos povos nórdicos.

A referência mais antiga de escritores muçulmanos aos nórdicos itinerantes foi feita no início do século IX por Ibn Khurradadhbih, que chefiava o serviço postal e de informações do califa al-Mutamid. Em 844, ele escreveu sobre as viagens dos saqalibah, um termo geralmente usado para os europeus de cabelos claros e pele avermelhada. Eles vieram em seus barcos, escreveu ele, "trazendo peles de castor, peles de raposas e espadas, desde a parte mais longínqua das terras eslavas até o mar Negro". Os mercadores rus, escreveu, transportavam suas mercadorias em camelos partindo de Gorgan, uma cidade iraniana na extremidade sudeste do mar Cáspio, para Bagdá, onde servos saqalibah, que haviam aprendido árabe, atuavam como intérpretes.

Todavia, o relato mais importante a respeito dos vikings pela pena de um escritor muçulmano foi justamente o de Ibn Fadlan no século X.

Ahmad ibn Fadlan, nascido por volta de 879 d.C., foi um faqih na corte do califa abássida al-Muqtadir. Faqih, basicamente, é um expert na fé e jurisprudência islâmica. Contudo, apesar de ter ocupado um importante cargo dentro do califado, assim como ter sido uma importante figura histórica, pouco se sabe da vida de Ibn Fadlan antes de suas famosas viagens a serviço da corte abássida.

Em 921, Ibn Fadlan seria enviado como secretário de um embaixador abássida em uma missão diplomática pelo califado até Almis, o elteber da Bulgária do Volga. Elteber, basicamente, era uma espécie de “rei vassalo”. Nesse caso, Almis era rei-vassalo dos Cazares, povo de origem turcomana seminômade que dominou a região centro-asiática a partir do século VII ao X.

Em 21 de junho de 921, uma comissão diplomática liderada por Susan al-Rassi partiria da capital do califado Abássida. Al-Rassi, que era um eunuco da corte, tinha como objetivo principal explicar a lei islâmica para os povos búlgaros recém-convertidos que viviam na margem leste do rio Volga, levando consigo ibn Fadlan, um grande erudito com conhecimento o suficiente para essa empreitada. Não somente, mas a missão diplomática liderada por al-Rassi também servia como uma resposta ao pedido do rei dos búlgaros do Volga que apelou ao califa para que o ajudasse contra seus inimigos, os já mencionados Cazares.

Os búlgaros eram um ramo dos povos turcos que os cazares haviam dividido no século VII. Um grupo migrou para o oeste, onde se assimilaram com os eslavos e fundaram o que se tornou a moderna Bulgária, a oeste do Mar Negro; outros se voltaram para o norte em direção à região do Volga, onde continuaram a ter problemas sob a governança dos cazares, cujo domínio do norte do Cáucaso e da região do Cáspio marcava os limites ao norte do poder abássida. Ao buscar ajuda de Bagdá, o rei dos búlgaros buscava uma aliança contra esses inimigos de longa data.

A rota tomada pela embaixada do Califado Abássida foi mais longa do que poderia ter sido por outros caminhos, uma vez que evitaram cruzar pelas terras dominadas pelos cazares. Ao todo foram percorridos 4 mil quilômetros até chegarem ao destino. Em seu Risala, Ibn Fadlan descreveu os numerosos povos que encontrou, e cerca de um quinto de seu relato é dedicado aos vikings.

As artes vikings de joias e ornamentação corporal eram bem desenvolvidas, e Ibn Fadlan descreveu as mulheres usando colares de ouro e prata, "cada um por 10.000 dirhams [moeda de prata]; algumas mulheres têm muitos. Seus ornamentos mais valiosos são contas de vidro verde de argila, que são encontradas nos navios. Elas negociam contas entre si e pagam um dirham por cada. As usam como colares...”. Elas também usavam grinaldas de contas coloridas, grandes broches ovais nos quais penduravam itens como facas, chaves e pentes, e o que Ibn Fadlan descreveu como "vestes peitorais feitas de ouro, prata e madeira".

O contato dos vikings com o Islã levou alguns a aceitarem a religião, embora Ibn Fadlan tenha observado que velhos hábitos ainda tinham sua influência: "Eles gostam muito de carne de porco e muitos daqueles que seguiram o caminho do Islã sentem muita falta disso". Outra prática alimentar viking que não é bem vista pela religião islâmica era o consumo de nabith, uma bebida fermentada que Ibn Fadlan frequentemente mencionava como parte da alimentação diária dos nórdicos.

A maioria dos vikings, mesmo com sua conversão ao Islã, continuou a observar suas próprias práticas religiosas ancestrais, que incluíam a oferenda de sacrifícios. Ibn Rustah também no século X fez menção a um sacerdócio profissional de xamãs Rus (a quem ele chamava de attibah) que possuíam um status muito elevado ao ponto de deterem o poder de selecionar como sacrifício para seus deuses quaisquer homens, mulheres ou gado que desejassem.

Testemunhando um grupo de mercadores celebrando de uma viagem bem sucedida pelo Volga em 922, Ibn Fadlan descreveu como os vikings oravam a seus deuses e ofereciam sacrifícios a figuras de madeira presas ao solo, pedindo a suas divindades que enviassem mercadores com quantidades abundantes de moedas de prata para comprarem o que eles (vikings) tinham para vender.

Ibn Fadlan também testemunhou o funeral de um líder que foi cremado com seu navio, o famoso “funeral viking”. Sua descrição é um dos documentos mais notáveis da Era Viking, repleto de detalhes sobre o líder morto deitado em seu barco em meio a um tesouro, grandes quantidades de alimentos e bebidas fortes, bem como um cachorro, cavalos, bois e aves, acompanhado também por uma escrava que se ofereceu para ter a honra de ser morta e queimada com seu mestre.

Além desse impressionante relato a respeito do funeral do líder viking, outra história marcante narrada por Ibn Fadlan foi a respeito da higiene e hábitos desses povos do norte. O jurista muçulmano os admirava pela beleza, estatura e bravura, mas tinha um completo nojo de seus hábitos ao se lavarem pela manhã, o que seria esperado vindo de um muçulmano altamente higiênico e proveniente de uma grande capital como Bagdá. O árabe, porém, não era nenhum “moralizante”, ele apenas registrava o que via e não insistia em juízos de valor a respeito das práticas desses povos. Segue o relato de Ibn Fadlan a respeito da higiene dos vikings do Volga:

Eles são as criaturas mais imundas criadas por Deus. Não tem vergonha quando urinam ou defecam, e não se lavam após a relação sexual os deixar sujos. Eles nem sequer lavam suas mãos depois de comer. São como jumentos perambulantes. Eles chegam, atracam seus barcos no rio Itil, e constroem grandes casas de madeira na sua margem. Eles compartilham a mesma casa em grupos de dez ou vinte, cada um dormindo na sua esteira. Lhes acompanham lindas escravas para serem negociadas com os mercadores. Eles fazem sexo com elas na frente de seus companheiros. Ás vezes se juntam em um grupo e fazem isso uns na frente dos outros. Um mercador pode vir a querer comprar uma escrava, e se depara com seu dono transando com ela. E o viking não a deixa até que satisfaça seu desejo.

Eles têm que lavar seus rostos e cabeças todos os dias na água mais podre e mais estragada que você possa imaginar. Deixe-me explicar. Toda manhã uma escrava lhes traz uma larga bacia cheia de água e a dá ao seu dono. Ele lava suas mãos, rosto, e cabelo naquela água. Em seguida, molha um pente na mesma água e penteia seu cabelo. Então assoa seu nariz e cospe na bacia de água. Ele é disposto a fazer qualquer imundice ou ato impuro naquela água. Quando termina, a escrava carrega a mesma bacia com água para o proximo homem no local, que faz a mesma coisa que o anterior. Ela carrega aquilo de um homem para o outro, até que tenha passado por todo mundo na casa. Todos os homens assoam o nariz e cospem na bacia, e então lavam seu rosto e cabelo nela.

Esse icônico relato de Ibn Fadlan a respeito dos hábitos de higiene dos vikings inspiraria uma passagem do livro de Michael Crichton, Devoradores de Mortos, que por sua vez foi recriado no filme O 13º Guerreiro de 1999, onde Ahmad Ibn Fadlan é representado por Antonio Banderas.

Na trilogia de livros Magnus Chase e os Deuses de Asgard de Rick Riordan, o mesmo criador de Percy Jackson, Samirah al-Abbas, um dos personagens principais, assim como Amir Fadlan, seriam descendentes de Ahmad ibn Fadlan.

Não somente, mas séries e filmes retratando a Era Viking, como a série Vikings da Netflix que acompanha a vida de Ragnar Lothbrock, dificilmente seriam possíveis sem os relatos preciosos de Ibn Fadlan e outros viajantes árabes. Além de fornecer um enriquecimento cultural e relatos interessantes sobre um período pouco conhecido, os viajantes muçulmanos servem também como uma das mais importantes fontes historiográficas para um dos povos mais icônicos de toda história humana.

REFERÊNCIAS

FADLAN, Ahmad ibn. Ibn Fadlan and the Land of Darkness: Arab Travellers in the Far North. Penguin, 2012.

GABRIEL, Judith. Among the Norse Tribes: The Remarkable Account of Ibn Fadlan. Saudi Aramco, 1999.

MONTGOMERY, James E. Ibn Fadlan and the Rusiyyah. Journal of Arabic and Islamic Studies, 2000.

MUSLIM HERITAGE. Ahmad Ibn Fadhlan in Northern Europe: A Survey of his Account of Russian Vikings in the 10th Century. Muslim Heritage, 2008.