Ramadã, é a quarta e última história de “Espelhos Distantes”, volume consagrado da multipremiada série de histórias em quadrinhos – ou “HQ” – conhecida como Sandman. A obra de fantasia sombria de Neil Gaiman, cujo universo será aproveitado na nova série da Netflix (“Perpétuos”), gira em torno de diversas narrativas com Sonho, um dos Pérpetuos – entidades cósmicas que regem diferentes aspectos dos seres vivos no universo – encarregado do domínio dos sonhar. Sonho também é conhecido por nomes como Morpheus, Oneiros, Kai’Ckul ou, mais convenientemente, Sandman (o Homem da Areia), é essa entidade superlativamente poderosa que interage com réles humanos no curso da História.

O conto conhecido como Ramadã é narrado no Mundo Islâmico Medieval, mais especificamente, na capital do Califado Abássida durante o afamado governo do califa Harun al-Rashid, conhecido tanto no Oriente quanto no Ocidente por seus feitos históricos e pela sua adaptação literária nas “1001 noites”, o clássico compilado de contos árabes que tanto cativou intelectuais orientalistas. Orientalismo, por sinal, talvez seja a perspectiva pela qual um americano liberal tenta enxergar a realidade islâmica daquela época; mas tais rótulos, como sempre, são geralmente controversos e nunca ditos sem suas devidas objeções. O que é pertinente, porém, é a narrativa por trás deste conto de Sandman, que a despeito de qualquer crítica ou controvérsia, ainda permanece como uma das produções mais clássicas e aclamadas da série.

Nossa história se desenvolve em Badgá, a cidade celestial e da cidade da paz, criação mais sublime do Califado Abássida e por muito tempo antes de sua eventual destruição pelos mongóis a maior cidade do mundo medieval, e de todos os períodos que vieram anteriormente. A narrativa se centra no reinado de Harun al-Rashid (786-809), um dos maiores governantes da História Islâmica, cujo reinado é considerando por todos, dos acadêmicos aos leigos, como o ápice do Califado Abássida; e o último suspiro glorioso de um Império à beira do colapso.

A narrativa começa mostrando as glórias da Bagdá Abássida: uma cidade de intelectuais de todos os gêneros, de comércio, de magia e de misticismo, com sacerdotes e eruditos das três religiões abraâmicas, onde ouro e riquezas são tão abundantes quanto as belas mulheres e rapazes da corte califal. Fugindo das expectativas convencionais, a Bagdá de Sandman é repleta de criaturas mágicas, autômatos, animais falantes e feiticeiros.

Guerreiro, teólogo, governador e poeta, o califa Harun al-Rahid medita sobre seu glorioso império e sobre a perenialidade tudo aquilo. Apesar de todas os feitos e divertimentos, o poderoso monarca se encontra visivelmente assolado por uma inquietação avassaladora. Um a um, diversas pessoas próximas ao grandioso califa tentam distraí-lo de sua frustração: sua mulher, com carinhos e prazeres sensuais; seu vizir e amigo, com diversas propostas de divertimento; seu principal poeta, com uma série de elaborações prosaicas. Nenhuma delas tira o rei das trevas de sua alma.

Foi neste momento que, sem esperanças, o Califa saca uma chave de ouro, a qual escondia entre suas roupas, e caminhando por escadarias, desce em direção às profundezas do seu palácio. Conforme caminha, Harun desbrava os ambientes mais extravagantes e diversos do seu palácio: de salões de mulheres, onde um homem se entregaria à toda sorte de luxúrias, às câmaras de tortura e calabouços. Conforme utiliza a chave dourada para abrir portões misteriosos em níveis profundos, o califa atravessa as câmaras com as riquezas mais diversas de seu reinado: de salões negros onde se poderia ouvir as vozes dos mortos, labirintos, salões repletos de cristais, de espadas e objetos encantados, e até mesmo um salão repleto de ovos de criaturas mágicas, de todos os gêneros, incluindo fênices e rocas. Após andar por quilômetros, a última porta, feita de fogo, guarda um objeto solitário, e ao mesmo tempo o mais precioso de seu império: uma esfera de vidro fino, com diversas nuvens que dançavam no seu interior, possuindo um selo que parecia prender alguma coisa não-natural lá dentro. Após atravessar por atalhos secretos do seu palácio, edificado por um grupo seleto de construtores que o próprio Califa tirara a vida, para monopolizar seu conhecimento oculto, Harun finalmente chega no telhado mais alto do seu palácio. Sob o céu estrelado e vibrante da Bagdá noturna, o Califa ordena que o próprio Príncipe dos Sonhos venha ter com ele.

Ao ser ignorado em sua invocação, Harun anuncia ter em suas mãos nada menos que o globo de Suleiman ben Daoud, o rei Salomão, filho de Davi, das histórias bíblicas. O globo de vidro fino não era nada menos que uma prisão, para os 9009 demônios, djinns e ifrits que o rei de Israel havia prendido há milênios. Como forma de barganhar sua aparição, o califa ameaça lançar o globo do alto de seu palácio, estilhaçando a prisão daqueles milhares de espíritos malignos e extremamente vingativos. Sem obter sua resposta, o califa arremessa o globo, fazendo-o cair sob as ruas noturnas.

Poucos centímetros antes de beijar o solo, o globo é pego por um par de mãos pálidas e sombrias, que pertenciam a um corpo de aparência exótica e assustadora: no fim das contas, o califa conseguiu forçar o Perpétuo a visitá-lo, não sem notar o visível descontentamento da entidade sobrenatural antropomorfizada à sua frente, capaz de pulverizar o homem mais poderoso do mundo com pouco esforço.

O Califa logo ordena que vinho seja servido ao convidado, uma clara representação da falta de severidade religiosa do próprio Harun, que é censurada devidamente por Morpheus: mais do que tudo, eles estavam no mês santo do Ramadã, onde os fiéis muçulmanos jejuam por todo o dia. Após a recusa, Harun pergunta ao Perpétuo se ele “é da Fé?” ao que Morpheus responde: “comungo de todas as fés à minha maneira”.

Terminadas as apresentações, Harun explica o motivo da sua invocação: ele queria barganhar com Morpheus, aquela entidade poderosa, mas procurar reservar sua intenção. Por proposição do próprio Morpheus, que diz que o lugar adequado para barganhas era o souk (mercado) e não o palácio do líder dos fiéis – afinal, Harun era o representante máximo da fé islâmica, ou pelo menos de sua tradição sunita –, Harun consente e manda seus serviçais buscarem um rico porta-joias de marfim e madrepérola, ricamente talhado. O que esse baú guardava não era muito mais que um tapete rústico e longo, aparentemente sem valor. Após ser convidado pelo califa, Morpheus toma seu lugar no tapete, que assim como outras relíquias da corte de Bagdá, não se tratava de uma peça ordinária: o tapete era mágico, e por ele tanto Harun quanto Morpheus voam pelo mercado da cidade, mostrando ao Perpétuo toda a grandeza daquela capital.

Durante o vislumbre das maravilhas do mercado e da cidade, o califa finalmente decide revelar sua proposta: Harun oferece a própria Bagdá como mercadoria ao Perpétuo, que prontamente declara o seu desinteresse em ser soberano terreno. Mas Harun elabora: sua preocupação, que tanto o aflingia, vinha do fato de que ele sabia que muitos impérios haviam sido estabelecidos antes do dele, tendo visto as ruínas de suas glórias pelas areias do deserto, sendo cobertas e descobertas pela ação do vento selvagem. Harun estava ciente de toda a magnanimidade de Bagdá, mas por quanto tempo ela duraria e por quanto tempo as pessoas se lembrariam dela? Temendo que a mesma fosse alvo da damnatio memoriae experimentadas pelos impérios antigos e já fossilizados, a oferta de Harrun buscava preservá-la; em termos mais oficiais, Morpheus levaria Bagdá para o reino dos sonhos.

Em troca, Harun pede a Morpheus: ele não quer morrer jamais! A condição para a efetivação do acordo era que Harun anunciasse a entrega da cidade ao seu próprio povo, o que é feito sem muita cerimônia. Logo após fazê-la, porém, Harun acorda, deitado no mesmo tapete que teria utilizado para voar com a entidade. Encontrado por um soldado, que atribui o sonho que o califa teria tido à insolação, Harun é escoltado dos subúrbios de Bagdá na direção do palácio, perdendo a memória de tudo o que havia feito, ou sonhado, até então. Pelo caminho, encontra o próprio Morpheus, a quem não mais reconhece, segurando uma garrafa de grandes dimensões. Dentro dela, a própria Bagdá. Surpreso pelo objeto, o califa pergunta àquela figura se ele havia feito tal obra, e se ela ainda estava a venda; ao que Morpheus responde: “Eu não a montei ... foi cedida a mim ... e não está mais a venda.”. Interessado na beleza do objeto, o califa é dissuadido por seu guarda-costas à retornar ao palácio, que assim o faz, antes de dar um último vislumbre no objeto.

A história é imediatamente interrompida, e um novo cenário surge; ou melhor, o mesmo, mas em outra era, a nossa! O que havia sido descrito até então não passava da narrativa de um ancião da cidade a um garoto aleijado, ambos vivendo numa Bagdá devastada pela guerra e pela miséria; um desfecho triste e irônico para a Cidade da Paz que um dia arrogou para si ser a mais prospera do mundo. O garoto maltrapilho, sem ter como dar o que o ancião-mendigo o pede, cigarros ou esmola, parte, sentindo as dores nas pernas e a fome. “Será fácil jejuar neste próximo Ramadã” considerando que a comida já é escassa. Conforme se arrasta pelos escombros, o menino sonhador imagina todas as riquezas, torres, príncipes e criaturas fantásticas por trás de seus olhos. Naquele cenário caótico, o menino pede a Allah para que se encontre aquela Bagdá, a Bagdá dos sonhos, e o outro ovo da fênix; uma súplica devota, para que a cidade renasça de suas cinzas.

Não é difícil perceber o porquê de Ramadã ser uma das histórias mais populares de Sandman. Mais do que isso, eu diria que, assim como obras como Neon Genesis Evangelion, a compreensão do leitor sobre a história seja episodicamente transformada à cada releitura, conforme os detalhes dão novas interpretações e deixam muitas dúvidas; provavelmente, a exata intenção por trás da composição da obra. Muitos elementos poderiam ser discutidos, embora fazê-los aqui possa tirar essa magia que cada pessoa tenha em dilapidá-las por conta própria.

Das que constam serem necessárias, e aqui vale um adendo de spoilers: é Ramadã uma obra orientalista? A resposta, obviamente, é complexa, e um leitor pode se ver tomado por novas interpretações contraditórias a cada releitura – precisamente o meu caso. Ao passo que muitos elementos parecem trair uma mentalidade particular óbvia dos elaboradores, como uns elementos anticristãos, a representação de Harun como um teocrata adepto de vícios costumeiramente heterodoxos – o que vai contrariamente contra o seu titulo de al-Rashid, “o ortodoxo” – podem ser discutivelmente o caso, assim como toda a introdução de elementos mágicos suscitaria algum debate do tipo de representatividade dada na obra; e claro, partindo do princípio que isso realmente importa, no fim das contas. Por fim, tive uma observação aparentemente original, e que curiosamente não foi notada por ninguém que havia lido ou comentado do assunto, seja ela influencer ou não: o acordo bilateral, onde Harun recebia imortalizada em troca da cidade, foi simplesmente ignorado pela maioria das pessoas; não seria aquele pobre senhor, o contador de toda a narrativa, o próprio Harun, simultaneamente abençoado e amaldiçoado com a vida eterna? Um detalhe geralmente ignorado, mas que enriquece muito a compreensão da obra, além de torna-la subjetiva e sujeitas ao juízo do leitor.