No Ocidente oficial e nos principais meios de comunicação de seus regimes há um dicionário e um guia de sinônimos especializado para traduzir ao público ocidental tudo sobre Israel e Palestina.

Oficiais e jornalistas também devem aderir a uma sintaxe gramatical especial, particularmente quando estão usando verbos na voz verbal ativa e passiva.

Esta prática de definição e tradução é central para as políticas da representação ocidental. Ela garante uniformidade ideológica na questão de Israel e Palestina dentro de todo o espetro político respeitável, que, ao menos nos Estados Unidos, é tão estreita entre os partidos Democrata e Republicano, que poderia ser medida em milímetros.

Depois de 7 de Outubro, a aplicação deste dicionário e deste léxico foi intensificada para dar cobertura à selvageria de Israel em Gaza.

Isto incluiu a demanda de que o governo e a mídia não poderiam citar as estatísticas do Ministério da Saúde Palestino sobre as vítimas do genocídio de Israel sem usar a expressão “controlado pelo Hamas” para lançar dúvidas sobre os números.  

Tais diretivas iam contra as posições da Organização Mundial de Saúde e outras agências humanitárias internacionais, que expressaram plena confiança na precisão dos números de vítimas.

A recusa em aceitar estes números é a posição oficial do governo estadunidense e da organização anti-palestina Anti-Defamation League, que liderou a acusação a esse respeito.

No entanto, o governo dos Estados Unidos não estava satisfeito com a imposição de seu dicionário apenas nos EUA, buscando impô-lo também na mídia árabe.

No último outubro, o Secretário de Estado Antony Blinken garantiu a líderes judeus-estadunidenses que pediu que o governo do Catar impusesse o dicionário estadunidense na rede Al Jazeera durante sua cobertura sobre o genocídio.

De fato, os governos ocidentais e as elites financeiras reconheceram há muito tempo a centralidade da língua em seu projeto de doutrinação política. Para este fim, são imperativos os seus esforços contínuos para policiar jornalistas, acadêmicos e o público em geral – e fazer cumprir o dicionário ideológico sancionado pelo governo.

Uma revisão de alguns exemplos destes esforços de tradução pelos governos ocidentais e de seus meios de comunicação subservientes é instrutiva.

Policiando a Língua

O New York Times, a voz não-oficial do regime estadunidense e o principal guia do resto da mídia ocidental, lidera em sua aderência vigilante a estas acrobacias linguísticas e dicionariais.

Em novembro de 2023, a editora de padrões do The Times, Susan Wessling, junto ao editor internacional Philip Pan e seus adjuntos, enviaram um memorando interno aos repórteres que cobriam a guerra de Israel em Gaza.

De acordo com seus autores, o propósito deste memorando era prover “orientação sobre alguns termos e outras questões com as quais [eles] têm lidado desde o início do conflito em outubro”. Esta era apenas a última atualização sobre o uso da língua na cobertura do jornal sobre Israel e Palestina.

Os editores do The Times instruíram os jornalistas a restringirem o uso de termos como “genocídio” e “limpeza étnica”, a não usarem a palavra Palestina “exceto em raros casos” e a evitar termos como “campos de refugiados” e “território ocupado” para descrever os campos de refugiados palestinos e os territórios ocupados por Israel.

O memorando também pedia aos jornalistas que fossem cuidadosos no uso de termos “incendiários”, como “morticínio”, “massacre” e “carnificina” para descrever as mortes “em todos os lados”.

Ainda assim, como o The Intercept revelou, o jornal continuou a usar esta linguagem “repetidamente para descrever ataques contra israelenses feitos por palestinos e quase nunca no caso das mortes em larga escala de palestinos por Israel”.

Na verdade, foi a raiva e as lutas internas entre os próprios jornalistas do The Times sobre o viés pró-Israel do meio de comunicação que levou os quadros superiores a emitirem este memorando e endireitá-los.

Guerra de Palavras

A linguagem usada na nomeação de guerras e operações militares também é indicativa destas práticas de tradução.

Imediatamente após Israel lançar seu genocídio contra o povo palestino em outubro, seus proponentes na grande imprensa apressaram-se para lhe dar o apelido de “Guerra Israel-Hamas”.

Este foi um rótulo interessante, dado que o Hamas é o corpo governante legítimo de Gaza. O movimento de resistência palestino ganhou a última eleição democrática realizada na Cisjordânia e em Gaza de forma esmagadora em janeiro de 2006.

Logo após assumir a liderança, o Hamas foi confrontado com um golpe apoiado pelos estadunidenses para reinstalar o partido colaboracionista Fatah, que buscava retomar o controle da Autoridade Palestina.

O golpe estadunidense foi bem-sucedido na Cisjordânia, mas falhou em Gaza, onde o governo democraticamente eleito do Hamas derrotou os conspiradores golpistas do Fatah e seus apoiadores. Todas as tentativas de realizar novas eleições, desde então, foram veementemente contestadas pela Autoridade Palestina, apoiada pelos EUA e dirigida pelo Fatah, que usurpou o poder no golpe.

Baseado nesta história recente bem-documentada, a guerra genocida de Israel contra o povo palestino deveria ter sido ao menos referenciada como “Guerra Israelo-Palestina”, o que seria a descrição mais neutra do que está acontecendo.

Isto não é menos verdade dada a escalada massiva da violência israelense e do assassinato de palestinos na Cisjordânia Ocupada desde outubro.

O governo israelense declarou repetidamente estar em guerra contra todos os palestinos, mas os meios de comunicação ocidentais continuam a apontar apenas o Hamas como o alvo da guerra de Israel.

A condenação do movimento pelo oficialato ocidental permitiu que a classe política, midiática e ONGs protegessem Israel de ser visto como agressor do povo palestino como um todo.

Mesmo após matar mais de 40 mil e ferir mais de 90 mil, as ações de Israel continuam a ser descritas como uma luta contra terroristas ilegítimos.

Mas se as afiliações particulares dos movimentos e partidos políticos em poder são tão pertinentes para a guerra, como os políticos e editores de notícias ocidentais parecem acreditar, então porque não chamá-la de “Guerra Likud-Hamas”?

Este processo de nomenclatura, é claro, nunca seria aplicado às guerras dos Estados Unidos.

Deveríamos falar, por exemplo, da “Guerra Republicana-Baath” para descrever a invasão de Bush ao Iraque em 2003?

Desde a Guerra Civil Americana e até a administração de Reagan, todas as invasões estadunidenses e guerras estrangeiras foram iniciadas quando o Partido Democrata estava no poder.

Devemos, então, falar das invasões do Partido Democrata estadunidense na Coreia e no Vietnã, em vez da nomenclatura ofuscante usada na “Guerra da Coreia” e na “Guerra do Vietnã”?

Na verdade, o falecido senador republicado Bob Dole se referiu a essas guerras como “Guerras Democratas” em 1976. Se o fizéssemos hoje, seríamos, de fato, inteiramente corretos ao atribuir a culpa ao Partido Democrata dos EUA por sua carnificina imperialista que matou milhões na Coreia e no Vietnã.

Seria igualmente justo responsabilizar o partido por seu apoio incondicional à carnificina de Israel em curso em Gaza.

A grande mídia, como o The Times, no entanto, quer esconder a verdade de que Israel está usando o Hamas, primariamente, como pretexto para seu morticínio em massa do povo palestino. O número de vítimas civis, incluindo o assassinato sistemático de jornalistas, médicos e trabalhadores humanitários, não parece desviá-los desta narrativa.

Termos Especializados

Também foi notado, por décadas, que o The Times e boa parte da grande mídia ocidental sempre usa a voz passiva ao reportar os assassinatos israelenses de palestinos.

Palestinos são misteriosamente “mortos” (talvez por extraterrestres), ou “morrem” repentinamente. Por outro lado, a cobertura da mídia sobre os ataques palestinos contra israelenses sempre emprega a voz ativa e claramente identifica os perpetradores.

Isso também se aplica ao uso do termo “terrorista”, um termo reservado apenas para palestinos e do qual Israel também está protegido.

Como disse duas décadas atrás, a descrição do “terrorista” é baseada na identidade nacional e racial da parte que comete um certo ato violento (às vezes não-violento) e não o ato em si.

Quando Israel mira, deliberadamente, em civis e matam dezenas de milhares deles em escolas, abrigos da ONU, hospitais, nas ruas e em suas casas, seus crimes nunca são descritos como “terroristas”, enquanto os ataques palestinos contra soldados israelenses são instantaneamente rotulados de “terroristas”.

Isso está em linha com as definições do léxico político israelense, sobre o qual falei anteriormente.

Outro termo popular neste dicionário especializado é um que também tenho reclamado há décadas.

A palavra “conflito” tem sido o termo escolhido pelas representações ocidentais e israelenses sobre a questão Palestino-Israelense, quando ninguém jamais teria descrito o Colonialismo Francês na Argélia e a Resistência Anticolonial Argelina como “o Conflito Franco-Argelino”.

Isso também se aplica às guerras anticoloniais de liberação tunisianas, líbias, quenianas, angolanas, zimbabuanas e outras. No entanto, o ofuscante termo “neutro” ocidental de “conflito” é insistentemente usado para defender o colonialismo israelense.

A recusa em referir-se ao colonialismo israelense facilitou para a narrativa oficial israelense e ocidental descrever a Operação Dilúvio de al-Aqsa do Hamas como um ataque aos judeus israelenses por causa de sua identidade judaica, em vez de sua apropriação e colonização das terras palestinas.

Tais descrições impõem a história do antissemitismo cristãos europeu, que vitimou os judeus, à resistência anticolonial palestina. Seu objetivo é remover os palestinos do contexto das lutas anticoloniais asiáticas e africanas contra os colonizadores europeus, nos quais asiáticos e africanos foram as vítimas, bem como do contexto do colonialismo judeu e israelense que vitimiza palestinos.

Dicionário Ideológico

A singularidade deste dicionário ocidental especializado quando se trata dos palestinos e dos israelenses é bastante notável, pois se estende até mesmo à geografia.

Desde os séculos IX e XIII, respectivamente, todos os mundos falantes de árabe e muçulmanos reconheceram as cidades palestinas de al-Quds (também conhecida como Bayt al-Maqdis) e al-Khalil.

Ambos, no entanto, continuam a ser referidas pelos seus nomes antiquados, anteriores ao século IX, sumério/acadiano/aramaico e cananeu/amorita (frequentemente confundidas com hebraico), respectivamente “Jerusalém” e “Hebron”, em uma obstinada recusa em usar os nomes há muito estabelecidos e conhecidos por seus habitantes.

Compare isto com a mudança ocidental na nomenclatura “Beiping” e “Peking” para “Beijing” nos anos 1980 (mesmo que tenha sido décadas após a República Popular da China adotar oficialmente “Beijing” como a tradução correta em 1958) ou a mudança ocidental em nomear “Bombay” como “Mumbai” em 1995, quando o governo nacionalista indiano adotou oficialmente a mudança no nome.

Mais recentemente, quando o governo ucraniano pós-2014 reescreveu “Kiev” em russo como “Kyiv” e lançou uma campanha em 2018 para impor a nova grafia internacionalmente, a oficialidade ocidental e sua empresa alinhada se apressaram em adotar a nova grafia.

Enquanto isso, a mídia ocidental ainda se recusa a adotar o nome “Türkiye” para a Turquia, apesar de o país ter mudado seu nome oficialmente na ONU em 2021. O The New York Times, inclusive, zombou da mudança.

NO caso palestino, os nomes das cidades palestinas devem ser estar sujeitas à nomenclatura bíblica cristã e judaica ocidental, independentemente das mudanças ocorridas na geografia e sociologia palestina nos últimos 14 séculos.

Em qualquer outro caso, tal uso terminológico bíblico seria risível.

O The Times, ou o governo secular dos EUA se refeririam ao Iraque, hoje, como “Mesopotâmia”, “Babilônia” ou “Ur dos Caldeus”, por exemplo, por que a Bíblia usa esses nomes?

Esta nomenclatura intransigente não é sustentável nem mesmo na história colonial.

Imagine se os Países Baixos, hoje, insistissem em chamar Nova Iorque de “Nova Amsterdã”, que é como os holandeses chamaram a parte sul de Manhattan quando a colonizaram pela primeira vez, ou “Nova Holanda” para o Leste dos Estados Unidos, ou se a França se referisse ao Haiti como “Saint-Domingue”.

Estas escolhas linguísticas e o dicionário ideológico orientador que as informa fazem parte do arsenal que os governos imperialistas ocidentais e a sua grande imprensa utilizam contra o povo palestino em apoio a Israel.

Eles também são usados para doutrinar os cidadãos ocidentais sobre a forma adequada e oficialmente sancionada de ver, ou não, a luta palestina pela libertação contra um estado colonial genocida.

Projeto de Doutrinação

O fato marcante de que um número crescente de estadunidenses e europeus, em décadas recentes, têm recusado estas acrobacias ideológicas e translacionais e a enxergá-las em seu apoio à luta palestina é uma evidência de que o Ocidente deveria ou usar métodos atualizados e mais sofisticados e doutrinação ideológica, ou assumir abertamente seu papel como o mais ávido apoiador e defensor do genocídio contra povos não-brancos, o que sempre foi.

O fato de racistas supremacistas brancos estarem ganhando poder político nos EUA e na Europa deveria tornar esses compromissos aberto com o racismo e com o genocídio mais fácil e mais aceitável para uma grande parte dos supremacistas. No mínimo, poupará os governos ocidentais e os principais meios de comunicação liberais das contínuas acusações de hipocrisia.

Isto foi demonstrado pelas grandes preocupações que autoridades dos EUA, juntamente com administradores universitários e seus conselhos administrativos, expressaram em relação ao movimento estudantil massivo e aos protestos nos campi em apoio à luta palestina.

A ascensão da cultura política fascista e supremacista branca no Ocidente possibilitou que membros do Congresso, bilionários estadunidenses e administradores universitários se posicionassem de maneira mais aberta e descarada conta a liberdade acadêmica e a liberdade de opinião, com poucas desculpas.

À luz do fracasso do projeto de doutrinação ideológica por parte dos governos e da mídia ocidental, a atenção se voltou às universidades, visando suprimir a produção de conhecimento acadêmico. Esses planos buscam transformar completamente os acadêmicos em disseminadores da mesma propaganda propagada pelos meios de comunicação e pelos governos ocidentais.

Alex Karp, CEO da Palantir, apoiada pela CIA, uma importante empreiteira do governo estadunidense com laços estreitos com Israel, foi muito honesto quando alertou recentemente: “nós meio que pensamos que pensamos que essas coisas que estão acontecendo, especialmente nos campi universitários, são como um espetáculo secundário – não, elas são o show”.

O autointitulado “progressista” explicou: “porque se perdemos o debate intelectual, jamais conseguiremos mobilizar quaisquer exércitos no Ocidente”.

A ele se juntam outros bilionários que instaram o prefeito de Nova Iorque a soltar forças policiais para reprimir os protestos no campus da Universidade de Columbia.

Os administradores da universidade, no entanto, não precisaram de nenhum encorajamento neste sentido, visto que eles deliberadamente convidaram a polícia para desmantelar violentamente os acampamentos estudantis e acabar com os protestos no campus.

Ao se submeter a estas demandas repressivas, as universidades estadunidenses e europeias virão a impor sobre os acadêmicos o dicionário especializado e o guia de sinônimos do governo e da mídia.

Uma vez forçados, o último bastião de produção de conhecimento no Ocidente que poderia escapar, pelo menos parcialmente, a esta programação ideológica, será alinhado com a ideologia reinante.

Resta saber se professores e estudantes aceitarão este léxico sem resistência.

Texto original: Why the West created a new dictionary for Israel and Palestine.