Místicos, poetas e filósofos mouros de Portugal
Autor: Antônio Borges Coelho 08/09/2022A Reconquista não suprimiu as marcas da civilização islâmica que perduraram na língua e em muitas técnicas agrícolas e artesanais até ao século XX. Os cristãos medievais herdaram a estrutura das cidades islâmicas, usaram os seus alarifes e alvanéis – os “meus mouros” de Afonso Henriques – na contrução de catedrais e fortalezas. Um deles deixou escrito no transepto da sé de Coimbra: “escrevo isto como recordação permanente do meu sofrimento. A minha mão perecerá um dia mas a grandeza ficará”. Silves, Santarém, Beja, Faro, Évora, Lisboa podem orgulhar-se dos seus homens de cultura, das suas escolas e de ousarem brilhar durante algum tempo como estrelas secundárias integradas no todo peninsular. No campo das ciências e da cultura, não faltaram, em território português, gramáticos de língua árabe, jurisconsultos, sufis, escreventes de história, de crítica literária e principalmente poetas.
O Gharb al-Ândalus [o Ocidente do Ocidente] não constituiu uma unidade acabada e homogénea no todo da civilização islâmica peninsular. No entanto, nele se radicaram as bases e as guarnições militares da chamada Fronteira Inferior; nele se definiram espaços de rebelião contra o poder central dos emires; nele se desenharam os reinos de Badajoz e de Sevilha e se definiram algumas cidades-estado.
Sevilha integrava-se no Gharb al-Ândalus. No século XI foi a capital do reino dos abádidas, que se estendeu de Córdova ao Algarve e ao sul do Alentejo. Durante o domínio almorávida e almóada tornou-se a capital do Andaluz. Se tivermos em conta o papel cultural de Sevilha e a sua inserção geográfica e política, podemos ligar ao Gharb al-Ândalus uma parte substancial dos pensadores islâmicos peninsulares.
Mas não vamos partir o território do Andaluz a régua e esquadro. A história, que nunca definiu completamente o Gharb, acabou mais tarde por desintegrar o ocidente do ocidente. Assim, neste último ponto, consideraremos somente os literatos e pensadores originários do actual território português.
Como dissemos, Silves, Santarém, Beja, Faro, Évora, Lisboa podem orgulhar-se dos seus homens de cultura, das suas escolas e de ousarem brilhar durante algum tempo como estrelas secundárias integradas no todo peninsular.
Por outro lado, este Islão hispânico pulsava em sintonia, certamente desigual, com todo o mundo islâmico, em particular com os grandes centros orientais.
O sunismo medinense chegou bastante cedo a Córdova. Mas a filosofia, olhada com desconfiança ou perseguida por alfaquis e ulemas, pulsava com atraso. Segundo Miguel Cruz Hernández, a primeira citação fiável de Al-Kindí (século IX) cabe a Ibn Hazm (século X) e a de Al-Farabí (primeira metade do século X) a Ibn al-Sid (segunda metade do século XI e princípios do século XII), precisamente dois filósofos originários do Gharb al-Ândalus.
Teremos de esperar pela época dos Descobrimentos e Conquistas para que o Oriente penetre de novo e intensamente na nossa cultura. Mas, nesse mesmo tempo, os expoentes de referência do conhecimento científico, continuarão a ser o médico al-Razí, o médico hispânico Avenzoar, o uzbeque Avicena e o cordovês Averróis, como poderemos verificar, por exemplo, no Colóquio dos Simples e das Drogas de Garcia da Orta.
A Reconquista não suprimiu as marcas da civilização islâmica que perduraram na língua e em muitas técnicas agrícolas e artesanais até ao século XX. Os cristãos medievais herdaram a estrutura das cidades islâmicas, usaram os seus alarifes e alvanéis – os “meus mouros” de Afonso Henriques – na contrução de catedrais e fortalezas. Um deles deixou escrito no transepto da sé de Coimbra: “escrevo isto como recordação permanente do meu sofrimento. A minha mão perecerá um dia mas a grandeza ficará”.
O hospitalário Afonso Peres Farinha, cavaleiro de uma lança e futuro prior da ordem do Hospital em Portugal, exemplifica a recepção contraditória dessa influência que teve o seu ponto alto, no ponto de vista da cultura literária, no trabalho dos tradutores muçulmanos e cristãos das cortes de Afonso X o Sábio e do seu neto o nosso rei D. Dinis.
Na lápide funerária de Afonso Peres Farinha proclama-se: viveu durante vinte anos nas margens do Guadiana, nas vilas conquistadas de Moura e Serpa, fazendo muita guerra e muito mal aos mouros e tomando-lhes Arouche e Aracena. Atravessou três vezes o mar e lá viveu longo tempo. Residiu em muitos locais estrangeiros. Viu muitas e grandes coisas e muitos homens bons daquele tempo, tanto cristãos como mouros.l Os “muitos” vêm carregados de espanto.
No campo das ciências e da cultura, não faltaram, em território português, gramáticos de língua árabe, jurisconsultos, sufis, escreventes de história, de crítica literária e principalmente poetas.
Abu al-Hayaye al-Halam de Santarém escreveu um comentário sobre a obra do poeta oriental Mutanabi. Por sua vez, Ibn Abdun de Silves analisou o longo poema sobre o fim trágico dos abádidas e aftácidas, escrito pelo poeta eborense Ibn Abdun.
Entre os jurisconsultos, destaque para o bejense Abu al-Walid al-Baji (1012-1081) que peregrinou pelo Oriente e polemizou com Ibn Hazm.
A história e a biografia contaram com vultos de importância capital. O primeiro foi Ibn Mozain, da família dos reis que dominaram a cidade de Silves nos princípios do século XI. Só nos chegaram fragmentos conservados por outros historiadores mas a ele devemos notícias preciosas sobre a distribuição das terras quando os muçulmanos se apossaram de Hespanha.
Ibn al-Imam AL-SHILBI (+c. 1156) escreveu as biografias de muitos dos seus contemporâneos na obra Simt al-djuman, infelizmente perdida. No entanto, restaram trinta e cinco passagens conservadas por Ibn Said no Mugrib, passagens que constituem um quarto deste livro.
Para a história e a história da cultura do Islão Ocidental a Dakira (Tesouro) do santareno IBN BASSAM, de seu nome Abu al-Hassam ibn Bassam al-Santarini (+c.1147) é fundamental. A obra reune em quatro volumes uma antologia dos poetas peninsulares, recheada de preciosas notícias de natureza social e político-militar. Um outro texto, Al-Mann Bil-Imama do bejense IBN SAHIB AL-SALA aborda a história dos almóadas e de algum modo um pouco da história política no actual Alentejo e Algarve. Escreveu também o Kitab al-Muridin (Livro dos Adeptos), hoje perdido e que seria indispensável para o estudo do movimento dos muridines no sul do nosso território e no ocidente peninsular.
Os poetas perdem-se como abelhas ao redor do favo do poder. Mas alguns erguem-se a grande altura. Cantam os seraus nocturnos, o vinho, o amor, os jardins, a água, a paisagem humanizada. Aqui e ali ensaiam a especulação filosófica. No século XI sopra uma brisa de audácia e de liberdade com toda a ambiguidade que esta palavra carrega.
ALMUTAMIDE (+1095), natural de Beja, governador de Silves e rei de Sevilha entre 1069 e 1091, rodeou-se de literatos, historiadores, poetas como o seu amigo Ibn Amar, a sua mulher Itimad Romaiquia (ex-escrava de Romaiq) e seu filho Arradi ibn al-Mutamid, governador de Mértola.
A vida do rei poeta originou toda uma epopeia. Na batalha de Zalaca foi ferido seis vezes e não arredou pé até à vitória. Pouco depois, os seus aliados almorávidas, com o favor dos alfaquis de Sevilha, conquistaram a cidade e degolaram-lhe dois filhos à sua vista. A nora Zaida tornou-se concubina de Afonso VI de Leão e de Castela enquanto o filho Arradi era morto à traição pelos almorávidas em Mértola.
Almutamide morre cativo em Agmat, no Atlas sobranceiro a Marraquexe. A caminho do desterro escreveu o poema:
Saíram para pedir a chuva e disse-lhes:
– Pudessem
as minhas lágrimas substituir a chuva
que reclamais.
Responderam-me: é verdade, nas tuas lágrimas
encontraríamos
o bastante. Mas de que nos serviriam elas
se estão misturadas com sangue?2
Noutro dos seus poemas, propõe uma ética dos prazeres, que certamente haveria de chocar os alfaquis, ao mesmo tempo que esclarecia a sua ideia do sábio:
Acaso te deixarás conduzir pela tristeza
até à morte
quando o alaúde e o vinho fresco
estão aí à tua espera?
Que as preocupações não se tornem
senhoras de ti
enquanto a taça for uma espada cintilante
na tua mão.
Conduzir-se como sage é deixar-se assaltar
pelas preocupações até ao mais fundo
de si mesmo:
Ser sage para mim é não ser sage.
IBN MUCANA Alisbuni Alcabdaq (o lisboeta, o de Alcabideche) (+pouco depois de 1068) cantou os bois de lavra, os javalis que assolavam as hortas, as abóboras, as cebolas, os moinhos de vento.
Abu Mohammad IBN SARA Assantarini (o santareno) (+1123) comparava os relâmpagos a um abissínio que ri com as suas lágrimas. Cantou o papeleiro, a laranjeira, a beringela, o tanque com tartarugas que lembravam soldados cristãos com os seus escudos de alce. Cantou a estrela cadente, cavaleiro a quem, na rapidez do galope, se lhe desatasse o turbante/ e o arrastasse atrás de si como um véu que flutua”.
Uma ética hedonista e céptica transparece nalguns versos, por exemplo no Poema da Serra Nevada:
“Quando sobre a vossa terra sopra o vento norte
que felicidade para um pobre pecador
gozar as fornalhas do inferno”. …
Se um dia entrar nos tormentos do inferno
será num dia tão rigoroso
em que até o inferno há-de ser bom.
Ou no claro poema:
Quando me visitou senti desejo de beijá-lo
e duas vezes o beijei em cada face.
Disse depois: por favor, deixa que beije
a tua boca
prefiro as brancas margaridas às rosas vermelhas.
Noutro poema tomou o amor udri como companheiro e afirmava que “a castidade é virtude/ quando aquele que a observa/ tem a plenitude física”. E apontava como guia da acção o binómio facto-consequência.
O sul de Portugal foi terra de sufis, os místicos muçulmanos.
IBN KASI, Abu 1-Kasim Ahmad b. Husayn (+1152). De origem moçárabe nasceu no termo de Silves. Durante a mocidade só pensou nos prazeres do mundo. Depois abraçou a vida ascética. Deu em esmola os seus bens e percorreu o Andaluz a pregar o desprezo pelos bens deste mundo. Em Almeria conheceu o sufi Ibn Al-Arif (+Marraquexe 1141) quando este embarcava para Marrocos.
Regressado à aldeia natal dedicou-se à leitura dos livros de Al-Gazallí espalhando as suas doutrinas. Em breve tomou o título de mahdi (o imã encoberto). Perseguido, conseguiu escapar mas alguns dos seus seguidores foram presos pelos almorávidas em Sevilha.
Em 539, os seus seguidores, os muridun (os adeptos, aspirantes à vida mística) assenhorearam-se da praça forte de Mértola. Évora, Silves, Beja, Huelva e Niebla apoiaram o mahdi. Mais tarde, Ibn Wazir, senhor de Évora e Beja e a seguir de Badajoz e a quem os lisboe-tas cercados pediram auxílio em 1147, subleva-se contra Ibn Kasi que se dirige a África a incitar o desembarque dos almóadas. Regressa com o exército africano e torna-se governador de Silves.
Pouco depois quer sacudir o domínio dos almóadas e pede auxílio a Afonso Henriques que lhe manda um cavalo, um escudo e uma lança. Descontentes, os habitantes de Silves usam um ardil para entrar no Alcácer das Varandas. Entrados, cortam a cabeça do sufi e exibem-na na ponta de uma lança: – Eis aqui o mahdi dos cristãos!
Escreveu o livro Os dois Sapatos Descalços de que existe um manuscrito na biblioteca de Constantinopla. Segundo os seus detractores, afirmava que fizera a peregrinação a Meca durante uma noite; transmitia mentalmente o pensamento; gastava dinheiro do tesouro de Deus, só que este dinheiro levava o cunho dos almorávidas.3
AL-URYANI, Abu Yafar (sec. XII).
Camponês, natural de Loulé, não sabia ler nem escrever mas foi o primeiro e um dos mais importantes mestres de Ibn Al-Arabi em Sevilha. “Quando falava da ciência da unificação, não havia outra coisa a fazer senão ouvir. Com sua só intenção fixava as ideias como se as consignara por escrito e com a sua palavra punha a descoberto a realidade positiva dos seres”.4 Dedicava o tempo à oração mental, previamente purificado pela ablução ritual e voltado para Meca.
Um dia, Ibn al-Arabi entrou em sua casa perturbado com o espectáculo das gentes, empenhadas em contradizer a lei de Deus. Al-Uryani disse-lhe:
– Preocupa-te com Deus.
Al-Arabi seguiu depois para casa de outro mestre, Abu Imran de Mértola que lhe disse:
– Preocupa-te contigo mesmo! Perplexo, Al-Arabi respondeu:
– Al-Uryani quer que eu me preocupe com Deus e tu dizes para me preocupar comigo mesmo.
O Mertolense replicou:
– O que disse Al-Uryani é a verdade. O que sucede é que cada um de nós te indica o que o seu próprio estado místico exige.
Al-Arabi voltou a casa do Louletano e contou-lhe o sucedido.
– Abu Imran disse bem porque ele te indicou o caminho da perfeição enquanto que eu te indiquei qual é o companheiro da viagem.5
AL-MERTULI, Abu Ymran Musa. Poeta e sufi.
Antes da batalha de Alarcos, o califa almóada Yacub visitou-o em sua casa. Mais tarde enviou-lhe um mensageiro com uma certa quantia:
– O teu senhor tem mais necessidade desse dinheiro do que eu. Toma cem dinares de proveniência lícita. Diz-lhe que, para a sua manutenção pessoal, gaste só deste dinheiro e obterá a vitória.
É dele o poema:
Quantas coisas digo que não faço
Quantas voltas sem me decidir a pôr meu pé
em terra.
Critico os meus olhos e não se convencem
aconselho minha alma não aceita
os meus conselhos.
Ai quantas coisas se desculpam dizem
“talvez mais tarde”. Quantas se demoram.
Outros sufis de nomeada, no século XII, foram Abu Abd Allah b. al-As al-Bayy, alfaqui de Beja, e Abu Abd Allah b. Zayd al Yeburi, de Évora. Este último explicou o Corão e ensinou gramática na mesquita al-Udays de Sevilha. Uma noite, lia uma obra em que se refutava al-Gazalli e cegou de repente. De joelhos, jurou que não voltaria a ler o contestário de al-Gazalli. Então Deus devolveu-lhe a vista.
IBN AL-SID (Silves 1052-Valencia 1127).
Ficou conhecido como o de Badajoz mas al-Makkari dá-o como natural de Silves. Amigo de Umar al-Mutawakkil, senhor de Évora e depois último rei berbere de Badajoz. Viveu em Albarracin, Toledo, Saragoça e Valência. Polemizou com Ibn Bayya.
Matemático e poeta, escreveu livros de temas filológicos, de crítica literária, de gramática. De Aristóteles conhece a Lógica, a Metafísica e também o Timeu de Platão. Introduz Al-Farabí no Andaluz. Fala em Tales e Zenão.
Obras principais: Livro do Aviso Equânime acerca das Causas que engendram as Discrepâncias de Opinião no Islão (Kitab al-insaf…), o Livro das Questões (Kitab al-Masail) e principalmente o Livro dos Círculos (Kitab al hadaiq).
No primeiro livro, de finalidade teológica, segue os cépti-cos gregos acerca da impossibilidade da verdade absoluta. Segundo ele, as opiniões reflectem o modo de ser dos homens nas suas diferenças físicas, raciais, éticas e ideológi-cas. Mas estas desigualdades aumentam devido a oito causas: o uso de termos equívocos; a interpretação literal ou metafórica; o múltiplo conteúdo semântico dos termos por causa do sentido geral tomar o do particular e vice-versa; o exces-sivo uso do argumento de autoridade; a utilização abusiva dos argumentos analógicos; o esquecimento de textos que invalidam outros anteriores; as naturais diferenças em maté-rias opináveis.6
No Livro das Questões defende a possibilidade da concordância da razão e da fé pois a filosofia e a religião coincidem no seu objecto, que é a verdade, e no seu fim, que é a felicidade humana. Só se separam quanto ao método, discursivo racional na primeira e convencimento na segunda. Esta diferença é necessária enquanto existam dois tipos humanos diferenciados: o comum dos homens e os sábios.7
No Livro dos Círculos propõe-se discutir sete teses dos filósofos: lª a ordem em que os seres procedem da Causa Primeira parece-se a um círculo ideal e o lugar de retorno do círculo reside na forma do homem; 2ª a essência do homem atinge, depois da morte, o termo a que chegou a sua ciência durante a vida e essa ciência parece-se também com um círculo ideal; 3ª na potência do entendimento particular está o informar-se com a forma do entendimento universal; 4ª o número é um círculo ideal, por exemplo, o círculo das unidades, o das dezenas, o das centenas e o dos milhares; 5ª os atributos do Criador não podem predicar-se dele a não ser por via da negação; 6ª O Criador não conhece outra coisa senão a si mesmo; 7ª qual a prova apodítica da sobrevivência da alma racional depois da morte.8
O texto toma as suas cautelas: “espero em Deus que me preservará do erro” e diz que fala “como mero informador dos propósitos e intenções dos filósofos, embora se sirva de termos aproximados, diferentes dos que eles usam”.
Os seres emanam da Causa Primeira, Primeiro Agente ou Causa das Causas, usando a linguagem dos filósofos. O exemplo mais aproximado para explicar essa emanação ou como do Criador “procede o ser dos entes é o modo como procede do 1 o ser dos números ainda que não seja lícito comparar o Criador – exaltado seja! – com coisa alguma bem como os seus atributos e operações… De modo aproximado diremos que assim como o 3 não procede do 1 senão mediante a existência do 2, e igualmente o 4 não existe senão por meio da existência do 3 e do 2, e o 5 tãopouco existe a não ser mediante a existência do 4 do 3 e do 2, e assim o resto dos números, pelo que o ser de cada um vem a ser a causa do ser de todos eles, pois não cabe admitir que o mais afastado exista a não ser pela existência do mais próximo – também de um modo aproximado, mas não na realidade, procede do Criador-exaltado seja! – o ser dos entes.”9
A exposição de Ibn al-Sid usa a linguagem matemática e também a poética para expor a doutrina aristotélica da matéria e da forma. “A ciência do homem começa pelos números que não necessitam para ser concebidos de matéria alguma. Depois sobe deles a especular sobre as grandezas que já necessitam de matéria, embora menos que outros: a grandeza que menos necessita dela é o ponto, princípio da linha e que carece de extensão; segue-se depois a linha, princípio da superfície; e depois a superfície, princípio do corpo, as quais já necessitam de matéria para serem concebidas”.
E no poema:
“Ó homem tu és um meio entre dois extremos
opostos
foste composto ao modo de uma forma numa hilé
Se resistes à paixão, elevas-te às alturas
Se te submetes a ela desces ao mais baixo.”10
Considera as propriedades da alma vegetativa, da alma animal, da alma racional, da alma profética, da alma universal e fala das propriedades da alma filosófica que consistem no “amor dos acontecimentos filosóficos que são aqueles que não aspiram a mais que a informar-se das essências; o desejo de conhecer as causas ocasionais e eficientes das coisas; o induzir das aparências externas das formas, as suas realidades interiores; o conhecer o grau dos entes quanto ao ser e o modo como todos emanam do Criador… e como uns emanam depois de outros quando neles flui a unicidade de Deus”.
Num tempo em que o nosso másculo primeiro rei assinava de cruz, Ibn al-Sid explica deste modo a tese dos filósofos de que o número é um círculo ideal: “Hás-de saber que a unidade é o princípio e origem do número e a causa da sua existência ainda que ela própria não seja número. Todo o número implica, pois, uma relação com uma unidade e a ela volta como o fim do círculo volta ao seu principio… Assim como todos os números tomam o seu ser do 1 sem necessidade de movimento, tempo, nem lugar, porque o 1 não necessita mais do que da sua própria essência para lhes dar o ser, assim também os seres nascem do Criador (exaltado seja!) sem movimento, tempo, lugar nem instrumentos e sem que necessite de nenhuma outra coisa senão dele mesmo para lhes dar o ser.”11
O homem é “a criatura mais extraordinária como obra de arte e a mais maravilhosa”. Segundo os filósofos, a finalidade da sua existência é a perfeição. O Criador, depois de ter criado uma substância inteligível e uma substância sensível, achou que a perfeição ou complemento da sabedoria estava em criar uma terceira substância que unisse em si as outras duas e harmonizasse as duas naturezas. E criou o homem.
Notas
1 Alexandre Herculano, História de Portugal, Paris-Lisboa, Aillaud y Bertrand, 8ª ed. s/d, vol. IV, p. 351.
2 António Borges Coelho, ob. cit., IV p. 310.
3 Ibidem, III, 247.
4 Miguel Asín Palacios, Vidas de Santones Andaluces, Madrid, Libros Hiperion, 1981, p. 55.
5 Ibidem, p. 52.
6 Miguel Cruz Hernández, II, p. 417.
7 Ibidem, II, p. 418.
8 Ibn al-Sid, “Livro dos Círculos”, in Portugal na Espanha Árabe, IV, p. 152.
9 Ibidem, IV, p. 154.
10 Ibidem, p. 184.
11 Ibidem, p. 196.
BIBLIOGRAFIA
Fontes
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Al-Farabi, Catálogo de las Ciencias, trad. de Ángel Gonzalez Palen-cia, Madrid, Imprenta y Editorial Maestro, 1953.
António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, 2a ed., 2 vols., Lisboa, Editorial Caminho, 1989.
Averróis, Exposicion de la “Republica de Platón, trad. de Miguel Cruz Hernandez, Madrid, Tecnos,1994.
Ibn Battuta, Através del Islam, trad. de Serafin Fanjul y Federico Arbós, Madrid, Alianza Editorial, 1993. (Trad. portuguesa de Frei José de Santo António Moura, Viagens extensas e dilatadas do célebre árabe Abu Abdallah, 2 vols. Lisboa, Academia Real das Ciências, 1840-1855).
Ibn Hayyan, Cronica del califa Abdarrahman III An-Nasir entre los anos 912-942 (al-Muqtabis V), trad. de Maria Jesus Viguera y Federico Corriente, Zaragoza, Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1981.
Ibn Hazm, el colar de la paloma, trad. de Emilio García Gómez, Madrid, Alianza Editorial, 1971.
Ibn Idari, La caída del califado de Córdoba y los
reyes de Taifas, trad. de Felipe Maíllo Salgado,
Salamanca, Universidade, 1993.
Ibn al-Kardabus, História de al-Andalus, trad. de Felipe Maíllo Salgado, Madrid, Akal, 1993.
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Foto: Placa tumular dedicada a Ibn Mucana , erguida em Alcabideche ( junto ao Office Center e Aki) nos anos 50 por um grupo de cidadãos e onde se pode ler : "Se és homem decidido , precisas de um moinho que trabalhe com as nuvens sem dependeres dos regatos"