Yusuf Asar Yathar, mais conhecido como Dhu Nuwas, foi um rei judeu do Reino Himiarita no Iêmen, fundado em 110 d.C. De acordo com historiadores árabes, o seu nome Dhu Nuwas (senhor dos dois cachos) é devido aos seus payots judaicos que usava, enquanto outros especialistas conectam seu nome à fortaleza Nuwash, na região sul da Arábia. Pouco se sabe sobre a sua vida, sendo registrado mais o seu governo, que foi marcado principalmente pela perseguição religiosa contra cristãos.

Contexto

O reino Hiamirita, localizado hoje no atual Iêmen, possui uma história com o judaísmo um bom tempo antes do surgimento de Dhu Nuwas na Arábia.

Tudo começaria quando o antigo rei do Iêmen, Tubaa Abu Kariba Asad, se tornou o rei da região por volta de 390, vindo a governar até o ano 420 d.C. Nomeado como rei do Iêmen por um chefe local, é narrado que Abu Kariba levaria sua tribo até o norte para Yathrib (Medina) para que pudesse guerrear com os judeus daquela cidade. Entretanto, diferentemente de seu objetivo inicial em batalhar contra os judeus, acabou aprendendo com eles e vindo a se converter ao judaísmo, voltando para o Iêmen na companhia de dois rabinos. Dessa maneira, seus seguidores seguiram os mesmos passos, transformando assim o Iêmen (até então Reino Hiamirita) em um território judeu.

Após isso, o Reino Hiamirita seria continuamente governado por judeus. Porém, caso os historiadores árabes estejam certos sobre Dhu Nuwas, o mesmo não era judeu de nascimento, mas sim um convertido ao judaísmo, assim como Abu Kariba mais de um século antes dele. Ao se converter para o judaísmo, Dhu Nuwas teria adotado o nome Yusuf.

Chegando ao poder em 522, provavelmente após assassinar o governante anterior, Dhu Shanatir1. Após seu assassinato, a cabeça de Shanatir ficou exposta na janela do palácio, e Nuwas assumiu o governo do Reino Hiamirita.

Dhu Nuwas e os cristãos de Najran

A comunidade cristã da cidade de Najran (sudeste da atual Arábia Saudita) é atestada por diversas fontes, dentre elas historiadores árabes-muçulmanos. Ibn Ishaq, historiador muçulmano e um dos primeiros biógrafos do Profeta Muhammad, afirmou que foi em Najran onde o cristianismo de fato enraizou-se na região Sul da Arábia. É interessante observar, por exemplo, que os cristãos de Najran mais tarde viriam a interagir com o próprio Profeta, pois o mesmo deixou os cristãos rezarem em sua mesquita.

Assim como os coraixitas de Meca antes do advento do Islã, o povo de Najran também estava imerso no politeísmo antes da ascensão do Cristianismo, adorando como divindade uma tamareira, árvore muito comum na Arábia. Os habitantes de Najran também realizavam festivais em honra à árvore, até que o chefe da comunidade, Abullah ibn ath-Thamir se converteu ao cristianismo, sendo o primeiro membro da cidade a abraçar a fé cristã. Pouco após, um cristão chamado Phemion que trabalhava com construções se assentou na cidade, levando os habitantes locais para o cristianismo e ensinando-os sobre a fé.

Entretanto, apesar da adoção da fé cristã, o cristianismo dos moradores de Najran não é o que pode ser considerado historicamente como “cristianismo ortodoxo”, mas sim duas vertentes consideradas heréticas: nestorianismo e monofisismo. No caso do nestorianismo, era mais uma variante das doutrinas de Nestório, adquirida após um viajante de Najran voltar de seu trajeto em al-Hira, atual Kufa.

A Igreja de Najran era chamada de Ka’bat Najran (”Caaba de Najran”), sendo a cidade um importante centro para o cristianismo no sul da Arábia, assim como o foco de grandes intrigas políticas, econômicas e religiosas2.

Os cristãos no reinado de Dhu Nuwas

Durante o reinado do rei judeu hiamirita, vários são os relatos de perseguições e massacres contra os cristãos, principalmente aqueles da já referenciada comunidade de Najran. Não somente, mas dentre as referências de tal perseguição é o próprio Alcorão Sagrado, que considera os cristãos mortos em Najran como mártires fiéis que morreram pela fé em Deus:

Condenados estão os escavadores da trincheira. Que acenderam uma fogueira com abundantes combustíveis: E sentaram-se em volta dela, para assistir à tortura dos crentes. E foram torturados só por terem acreditado em Deus, o Poderoso, o Digno de louvores! Ao Qual pertence o reino dos céus e da terra; e Deus é, de tudo, Testemunha. Sabei que aqueles que perseguem os fiéis e as fiéis e não se arrependem, sofrerão a pena do inferno, assim como o castigo do fogo.(Surah 85:4-10).

De acordo com a própria Enciclopédia Judaica, foi o zelo de Dhu Nuwas que o levou a sua queda. Dessa maneira, ao ouvir sobre a perseguição sofrida pelos judeus por conta do Império Bizantino, retaliou os ataques contra mercadores de bizâncio passando por território hiamirita e que viajavam em negócios.

Esse tipo de atitude desmedida de Dhu Nuwas certamente não ficaria impune, e de fato acabou gerando uma guerra entre o rei judeu e o rei Aidug, uma vez que esses ataques aos mercadores bizantinos haviam destruído o comércio entre o Iêmen e a Europa. Nuwas acabou derrotado em uma batalha em 521, porém voltaria a atacar os cristãos, dessa vez declarando guerra contra os habitantes de Najran.

O rei judeu primeiramente ofereceu a possibilidade de conversão ao judaísmo, prometendo assim imunidade a quaisquer ataques ou punições, caso contrário seriam mortos. Como de se esperar, os cristãos de Najran recusaram a proposta de conversão de Dhu Nuwas, o que selou o destino dos cristãos najranis.

Em sua mais nova represália, Nuwas começaria matando o chefe de Najran, Harith ibn Kaleb ( São Aretha, para católicos e ortodoxos) em 523, e em seguida 340 homens que também foram selecionados para abraçar a morte.

Conforme em outras fontes medievais da época dos acontecimentos, Dhu Nuwas atacou a cidade de Najrani, massacrou a população local (que se recusaram a abraçar o Judaísmo). Porém, algo que chama atenção é que Nuwas mandou algumas cartas para o rei Lacmida3, al-Mundhir III ibn al-Numan de al-Hirah, assim como o rei da Pérsia, Kavadh I, informando-os de suas atitudes para com os cristãos, e encorajando os dois líderes a seguirem seu exemplo. Entretanto, o que Dhu Nuwas não esperava era que al-Mundhir receberia em seu reino uma embaixada enviada diretamente da capital do Império Bizantino, Constantinopla.

Ao receber a carta de Dhu Nuwas, al-Mundhir expôs o conteúdo da mesma para os embaixadores bizantinos, que horrorizados com o ocorrido, fizeram logo a notícia se espalhar durante todo o território bizantino e persa. Logo a informação do massacre sofrido pelos cristãos de Najran chegaria até os ouvidos do imperador Justino I, que ordenou que os mártires cristãos fossem devidamente vingados.

Dessa maneira, o Império Bizantino entraria em cena. O interesse de Bizâncio não era somente vingar a morte de inocentes cristãos, mas havia também interesses geopolíticos, uma vez que os Najranis eram ligados ao Império, enquanto que as comunidades judaicas do Reino Himiarita eram ligadas aos Sassânidas, império rival do Bizantino.

A estimativa de mortos no massacre, em geral, fica em torno dos 2 mil mortos. Porém, algo que choca na atitude do rei judeu foi justamente a crueldade em que os cristãos foram tratados, algo que o próprio Alcorão narra: os fiéis foram jogados vivos em trincheiras em chamas.

Com Bizâncio em jogo, em breve o terror perpetrado pelo reino judeu Hiamirita chegaria ao fim em Najran. A opressão de Dhu Nuwas viria seu fim após a derrota sofrida pelo exército Abissínio (Etiópia), aliados do Império Bizantino. Nesse sentido, é provável que o imperador Justino I tenha requisitado ao seu aliado Ella-Asbeha, rei da Abissínia, que invadisse Najran, matasse Dhu Nuwas e anexasse ao império o Reino Hiamirita.

Algumas fontes afirmam que quem pediu a ajuda da Abissínia foram na verdade refugiados dos massacres. De qualquer forma, o rei etíope enviaria cerca de 7 mil homens para frear as atrocidades de Nuwas, liderados por Abraha al-Ashram, o vice-rei do Negus da Abissínia. Dessa maneira, al-Ashram finalmente colocaria um fim no reinado de terror de Dhu Nuwas,  

É interessante observar a maneira como os vitoriosos Etíopes mesmo século após os eventos se vangloriaram da superioridade africana ao derrotarem Dhu Nuwas e conquistarem novas terras, conforme narrado por al-Jahiz no século VIII:

Nós (africanos)…conquistamos o país dos árabes até Meca e os governamos. Derrotamos Dhu Nowas (rei judeu do Iêmen) e matamos todos os príncipes himiaritas, mas vocês, brancos, nunca conquistaram nosso país (BEN-JOCHANNAN, p. 231, 1991).

A invasão Abissínia à Meca, recém citada nos escritos de al-Jahiz, seria também lembrada pelo Alcorão, no episódio que ficou conhecido na história islâmica e pré-islâmica como o “Ano do Elefante”, que se seguiu a destruição de Himiar pelo exército etiope. A invasão em Meca foi devida à tentativa da Abissínia em rivalizar com Meca como centro religioso, na época do governador cristão da Arábia do Sul, Abraha al-Ashram, o mesmo que havia derrotado Dhu Nuwas. Para poder estabelecer o Cristianismo em solo Iemenita, os etíopes construíram uma grande igreja em Sanaã, atual capital do Iêmen. A igreja foi construída com o objetivo de se tornar um grande centro de peregrinação e uma “fonte de receitas” para rivalizar com a própria Meca. Ao finalizar o templo, Abraha expressou seu desejo de prosseguir com seu projeto imperial destruindo a Caaba pagã, pois assim, acreditava-se, que sem seu templo, os árabes tornariam-se facilmente cristãos, e leais súditos do Reino de Himiar. Naturalmente que houveram represálias por parte dos árabes pré-islâmicos da tribo Coraixita, sendo que um de seus membros foi até Sanaã, adentrou a igreja e (provavelmente) defecou em seu altar, profanando assim o templo cristão e gerando o envio de 40 mil homens em direção à Caaba para destruí-la.

No que tange ainda aos mártires cristãos de Najran, a notícia logo se espalhou pelos demais reinos, onde histórias recheadas de detalhes foram contadas sobre os martírios dos cristãos pelo rei judeu Dhu Nuwas. Dessa maneira, Najran se tornou um grande centro de peregrinação, por vezes rivalizando com a já mencionada Meca ao norte da terra maculada de sangue por Nuwas. O líder dos cristãos najranis, o primeiro a ser morto, seria posteriormente canonizado como santo, sendo chamado de Santo Aretas, venerado pela Igreja Católica Romana e pela Igreja Ortodoxa até os dias de hoje, e também partilhado na hagiografia islâmica como um dos fiéis martirizados no Alcorão.

NOTAS

[1] A maneira em que Dhu Nuwas assassinou o governante anterior foi um tanto quanto peculiar: com uma facada no ânus do rival.

[2] Por um tempo os monofisitas seriam perseguidos durante o governo de Shurihbil Yakkuf (c. 468-480), um líder Himiarita.

[3] Os Banu Lakhm (Lacmidas) foram um grupo de cristãos árabes, vassalos dos Sassânidas. Os lacmidas entrariam mais tarde em conflito com os Gassânidas (Banu Ghassan), outra tribo de cristãos árabes, aliados aos Bizantinos.

BIBLIOGRAFIA

FINKELSHTEYN, Norman J. Jewish Warriors. Geocities.

GOTTHEIL, Richard; BROYDÉ, Isaac. Dhu Nuwas, Zur’ah Yusuf ibn Tuban As’ad abi Karib. Jewish Encyclopedia, 1906.

BEN-JOCHANNAN, Yosef. African Origins of the Major “Western Religions”. Black Classics Press, 1991.

FAROUGHY, Abbas Faroughy. Introducing Yemen. Orientalia, 1947.

CONSINDINE, Craig. Pluralism and the Najran Christians: How Prophet Muhammad Went Beyond Tolerance”Huffington Post, 2016.

CONSINDINE, Craig. “Religious Pluralism and Civic Rights in a “Muslim Nation”: An Analysis of Prophet Muhammad’s Covenants with Christians“. Religions, 2016.

ESPOSITO, John. The Oxford History of Islam. Oxford University Press, 1999.