Texto de: Leonardo Marconde

Um mal-informado (mal-intencionado) meme que corre nas redes sociais quer “culpar a vítima” dizendo que os negros escravizaram os portugueses por quase um milênio  –durante a ocupação moura muçulmana na península ibérica — e, portanto, não se pode falar em reparação de dívidas históricas. Qual o problema dessa afirmação? Além do racismo implícito, não é uma verdade histórica ou etnológica.

Em si o argumento é falacioso. Primeiro, se os mouros escravizaram os portugueses, isso não passa a “culpa” às miríades de etnias sub-saharianas que nada tiveram com a ocupação islâmica da Ibéria. Segundo, se os mouros escravizaram os portugueses, isso não exime os mouros de reparação aos portugueses tanto quanto não exime os portugueses e espanhóis de reparação aos descendentes dos mouros e sub-saharianos. A Espanha já iniciou uma reparação com lei de retorno aos descendentes dos judeus expulsos em 1492, embora ainda falte estender o mesmo direito aos descendentes dos mouriscos expulsos em 1613. Terceiro, se os mouros escravizaram os portugueses, os lusitanos já tiveram sua reparação na Reconquista, apropriando bens e direitos dos mouros até a fatídico decreto manuelino de expulsão em 1497.

A falácia etimológica de que mouro signifique negro é fraca. Embora em grego mauros signifique “escuro” (e provavelmente, mais escuro em relação aos gregos), os significados da palavra mouro mudaram conforme o tempo. No período do al-Andalus, o termo mouro tinha conotação geográfica e religiosa. Geograficamente, remete ao latino Mauritania, terra dos mouros, para compreender todos os grupos que lá viviam, não importando a cor da pele. E a Mauritania dos gregos e romanos não coincidia com os limites do país homônimo atual; antes, o nome compreenderia o Magreb e a porção ocidental do Sahara. Religiosamente, remetia aos muçulmanos, não importando a etnia, que viviam no noroeste africano e na península ibérica, sendo eles de origem bérbere, ibero-romana, árabe, turca e até mesmo germânica — mesmo o nome da península ibérica em árabe, (v)andaluz, vem das ondas germanizadas dos vândalos, suevos e visigodos.

Mulher berbere de origens céltico-magrebinas e seu sobrinho, Kabylie, Norte da Argélia.

Os mouros não são “negros” — não na acepção usada no Brasil e restante da América Latina. Os traços fenotípicos da população do noroeste africano são tipicamente do grupo clinal causcasiano: arcada supraciliar proeminente, maçãs do rosto salientes e pele de várias matizes. É provável que o cadinho étnico dos mouros incorporou indivíduos de origem sub-sahariana, pois as rotas de caravanas através do Sahara são antigas. Entretanto, não chegavam a formar uma comunidade étnica identificável. A única população “negra” sub-sahariana na região dos mouros é originária de migrações do século XI d.C.. São os haratins ou belbali, os 3.000 falantes do korandjé (um idioma da família linguística songhai) em uma remota aldeia no oásis de Tabelbala, no sudoeste da Argélia.

lustração do século XVI pelo alemão Christoph Weiditz (1529) retratando mouriscos (descendentes dos mouros) de Granada dançando zambra.

A escravidão ibérica não foi exclusividade dos mouros, pois desde o direito romano visigótico até o direito árabe e das ordenações da Reconquista havia escravidão baseada em religião e outros fatores como aprisionamento por dívidas ou por guerra. Mas não em etnia ou cor da pele. Durante o Portugal mouro (perdoem-me o anacronismo) havia tanto portugueses livres quanto havia mouros escravos. Depois da expulsão dos muçulmanos a escravidão ainda continuou em Portugal e Espanha como no Magreb. Corsários e piratas europeus e mouros aterrorizaram cidades costeiras e navios, aprisionando europeus e africanos para servirem como escravos no norte da África, Europa e Américas até o início do século XIX.

A escravidão não tinha preconceito de cor. No Brasil mesmo há relatos de escravos de origem inglesa como Anthony Knivet ou Knyvett e de até de origem japonesa, como Cristobal e Cosme, no século XVII. No entanto, a partir das proibições filipinas no século XVI de escravizar os indígenas começou a escravização em massa de africanos sub-saharianos. Para justificar tal dominação, consolidou-se o racismo. Se antes já havia a xenofobia e o ódio pelo Outro, a partir de então argumentos pseudoteológicos (“a maldição de Caim ou de Cão”), políticos (“vamos civilizar os infiéis”) ou pseudocientíficos (“a inferioridade ‘natural’ dos negros”) inovaram o instituto da escravidão. Com esses argumentos acorrentaram e marcaram a ferro — literal e figurativamente– várias populações basicamente por critério de cor de pele. E o estigma e exclusão sociais atingem seus descendentes, carecendo de políticas públicas ativas para a mitigação desses males.

Agora, falsificar fatos histórico, jurídico e antropológico para tornar justificável manter um racismo estrutural do presente porque houve injustiças contra esse ou aquele povo no passado é de desanimar com a humanidade. Isso demonstra o quanto há pessoas capazes de manipulação desses fatos e discursos, falsificando novos Protocolos dos Sábios de Sião e instigando seus respectivos holocaustos, como também a existência de uma larga massa acrítica disposta a engolir esses vômitos.

Fonte: Ensaios e Notas