As relações da Sérvia com os muçulmanos são, ao menos hoje em dia, conturbadas. Durante a década de 90 o regime sérvio da Iugoslávia, encabeçado por Slobodan Miloshevich cometeu o maior massacre genocida em solo europeu desde o Holocausto até então: o Genocídio Bósnio, cujo alvo foram os bosníacos, a minoria bósnia muçulmana que, hoje, na República da Bósnia-Herzegovina, é uma ligeira maioria, mas à época lutava pela sua independência política da moribunda República Federativa da Iugoslávia, seguindo o exemplo dos croatas e eslovenos católicos.

Miniatura otomana do século XVI retratando Sokollu ao lado do sultão otomano Sulayman, o Magnífico. 

Os bosníacos, no entanto, não diferem muito dos sérvios a não ser pela religião; aliás, não diferem em nada a não ser pela religião e pela cultura que, ao longo dos séculos, se formou advinda desta. Nos séculos XVII e XVIII, houve um grande movimento de conversão de sérvios ao Islã na região onde hoje fica a Bósnia. Os descendentes destes convertidos acabaram formando uma etnia separada dos sérvios cristãos-ortodoxos e dos croatas-católicos; em suma, pode-se dizer que se tornaram sérvios muçulmanos. Não pensem, no entanto, que a história servo-islâmica ficou apenas nisso: os servo-muçulmanos muitas vezes desempenharam papéis importantes dentro da instituição que proporcionou sua mudança religiosa, o Império Otomano. Um dos mais notáveis foi Sokollu Mehmed Pasha, que chegou ao cargo mais alto do Império abaixo apenas do Sultão: o de Grão-Vizir.

Nascido no seio de uma família sérvia cristã-ortodoxa perto de Sokolovich (de onde deriva seu nome) com o provável nome de batismo de Bajica, Sokollu, tinha dois irmãos e uma irmã, a qual casou-se com um importante oficial muçulmano, também de origem eslava, chamado Hüseyn Pasha Boljanich e seu tio era um monge no Monastério de Milasheva. Sokollu abraçou o Islã em certo ponto da sua juventude, o que acarretou em muitas oportunidades lhe sendo abertas no Império. Ele não foi o primeiro nem o último de sua família a se converter e, mesmo depois de sua conversão, nunca esqueceu de suas raízes e sua família cristã.

Adotando o nome islâmico de Mehmed, ele se mudou para Edirne onde começou seus estudos e treinamento como aprendiz no corpo dos Janízaros (uma espécie de “tropa de elite” turco-otomana da época, composta inteiramente de jovens vindos de países e famílias cristãs, convertidos ao Islã ou criados pelo Estado Otomano), mais tarde mudando-se para Istambul, onde integrou o serviço interno do Palácio de Topkapi. Lutou invejavelmente em meio à carnificina da Batalha de Mohács (1529) e o Primeiro Cerco de Viena (1529), destacando-se enquanto guerreiro e comandante. Após isso, em 1535, foi ajudar no Tesouro Imperial de Bagdá, retornando mais tarde para Istambul.

Sokollu retratado em oração numa miniatura de 1568.

Um oficial dedicado e prodigioso, além de sua língua materna, o sérvio, falava também o turco, persa, o árabe, o vêneto-italiano (considerado o dialeto do italiano falado na região do Vêneto) e o latim. Em 1543, tornou-se o comandante da Guarda Imperial, responsável pela segurança do Sultão, cargo que exerceu até 1546, quando tornou-se Kapudan Pasha, ou ‘Grande-Almirante’ da Marinha Imperial Otomana. Em 1551, foi apontado como Governador da Rumélia (atual Bulgária); nesta posição, atuou em campanhas na Transilvânia contra os Habsburgos e também contribuiu com tropas contra os Safávidas, a Leste.

Em 1555 foi nomeado ‘Terceiro-Vizir’. Ao mesmo tempo, seu irmão Makarije, um cristão ortodoxo, tornou-se monge, e foi visitar seu irmão no Palácio Imperial. Após conversarem sobre a situação da Igreja Ortodoxa Sérvia, que havia perdido sua autonomia para o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla (por força do Estado Otomano), Sokollu publicou um édito que, além de assegurar a liberdade religiosa no Império, restaurava o Patriarcado Sérvio de Péc e, com isso, a autocefalia da Igreja Ortodoxa Sérvia, com Makarije como Patriarca. Após sufocar uma rebelião originada de uma disputa sucessória sobre o Trono do Império, em 1559, Sokollu assumiu, em 1561 tornou-se o ‘Segundo-Vizir’, casando-se com a neta do Sultão Suleyman, o Magnífico, Ismahan Sultana. Em 1564, seu sobrinho, Sokollu Mustafa Bey, foi sagrado vice-rei da província da Bósnia.

No ano seguinte, Sokollu Mehmed chegaria a seu mais alto cargo: tornaria-se o Grande-Vizir (isto é, uma espécie de Primeiro-Ministro) do Império, em virtude da confiança que o Sultão havia desenvolvido para com Mehmed. Seu governo, no entanto, não começaria tão bem...pelo contrário, pode-se dizer que começou com o pé esquerdo: em 1565 já havia tensões, de novo, entre o Império dos Habsburgos e o dos Otomanos. No ano seguinte, a situação descambou para a guerra, com Sokollu Mehmed e oficiais de sua família tomando a dianteira no assalto contra as tropas habsburgas. Sokollu e seus filhos, Kurt Bey and Hasan Bey, foram comandantes na memorável Batalha de Szigetvár, famosa pela obstinada e desesperada, porém eficiente e brava, defesa de seus defensores croatas e húngaros. A batalha terminou com uma decisiva e inevitável vitória turco-otomana, mas o Sultão, já velho e debilitado, morreu na sua tenda pouco antes da vitória ser alcançada por seus soldados. Sokollu segurou a morte de Suleyman o quanto pôde, para não desestabilizar o Exército em campanha, vindo a coroar o sucessor de Suleyman, Selim II.

Ponte Mehmed Paša Sokolović em Višegrad na Bósnia, a doação mais famosa de Sokollu de 1577. Obra-prima do arquiteto otomano Mimar Sinan.

Com o novo Sultão, motins começaram a irromper entre as tropas, ao que o foram reprimidos tanto com o uso da força, quanto da gentileza: Selim II distribui presentes, generosamente, diga-se de passagem, a seus soldados e comandantes para recuperar sua lealdade. Sucesso; sucesso esse que veio nas apenas nas questões internas, mas nas externas também: em 1568, o Imperador Habsburgo Maximiliano II concordou, mediante a assinatura de um tratado, pagar, todos os anos, um “presente honorário” de 30 mil ducados ao Sultão. Era um forma eufemística de dizer “pagar tributo pela paz depois de ser humilhado”.

Um dos feitos mais destacáveis de Sokollu enquanto Vizir foi a invasão otomana de Sumatra (na Indonésia). Sokollu teve um papel ativo na execução estratégica desse pesadelo logístico, executado detalhadamento e que contou com o próprio Vizir como comandante, com a frota partindo para o Aceh em dezembro de 1567. A expedição terminou com o Sultão de Sumatra jurando lealdade ao Sultão de Constantinopla. Imediatamente após a expedição a Sumatra, seguiu-se uma ao Iêmen, para sufocar uma rebelião de xiitas zaidis (uma escola de pensamento e jurisprudência xiita cuja presença há apenas entre os xiitas do Iêmen).

Após fracassadas investidas contra a Rússia, os otomanos se envolveram numa guerra contra os venezianos que culminou na tomada do Chipro em 1571, pelos otomanos, e sua derrota em Lepanto em Outubro do mesmo ano (vitória essa que os cristãos ocidentais atribuíram a uma suposta aparição da Virgem Maria nos céus da batalha). Sokollu Mehmed Pasha, então, teria dito aos venezianos:

“Ao tomar o Chipre, nós cortamos um de seus braços. Em Lepanto, vocês apenas cortaram nossa barba.

Um braço cortado não pode ser reposto, mas uma barba raspada cresce ainda mais forte para a navalha.”

Túmulo de Sokollu Mehmed Pasha em Eyup Sultan

Em 1573, Sokollu havia se tornado o homem mais rico e poderoso do Império, com uma fortuna avaliada em 18 milhões de ducados, e sem sombra de dúvida um dos mais ricos do mundo. Após Selim II morrer, ele manteve sua morte em segredo, novamente, até que Murad III assumiu, mantendo Sokollu como Vizir. Durante o governo de Murad, no entanto, seu poder declinou, especialemnte através da influência da esposa do Sultão, Safiye Sultana, de origem albanesa e avessa à Sokollu. Em 11 de Outubro de 1579, Sokollu foi assassinado, dizem, alguns, à mando de Safiye; outros dizem que foram os temíveis Hashshashin (embora a ordem tenha sido destruída a algum tempo pelos monsgóis no século XIII, ou, ao menos, supõe-se que fora). Sokollu Mehmed Pasha deixou um legado incrível não apenas na sua história pessoal, mas por todo o Império: suas obras araquidônicas, que pegam parte do auge da Era de Ouro Otomana, podem ser vistas de Belgrado até Meca, especialmente no que diz respeito à obras de infraestrutura, como pontes e estradas, além de muitas mesquitas.

Referências Bibliográficas:

  • “The Sokollu Family Clan and the Politics of Vizierial Households in the Second Half of Sixteenth Century” by Uros Dakic, Central European University, Budapest (2012).