É 20 de novembro de 1979, e a Mesquita Sagrada em Meca, o lugar mais santo do Islã no qual localiza-se a Caaba, foi tomado por terroristas salafistas em um dos mais espetaculares, controversos e fortemente censurados eventos da história islâmica moderna. Os dissidentes eram liderados pelo pregador wahabi Juhayman al-Otaybi, que afirmavam que a figura islâmica pre-apocalíptica do Mahdi havia chegado na forma de seu cunhado, Mohammed Abdullah al-Qahtani, e conclamava os muçulmanos a obedecê-lo.

A apreensão chocou o mundo islâmico quando centenas de peregrinos foram feitos reféns, e centenas de militantes, forças de segurança e reféns foram mortos nas batalhas que se seguiram pelo controle do local. O cerco durou duas semanas de embates sangrentos. Mas primeiramente, precisamos entender quem foi Juhayman al-Otaybi.

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Juhayman al-Otaybi , 1979.

Juhayman nasceu em al-Sajir, província de Al-Qassim, um assentamento estabelecido pelo primeiro rei saudita, Abdulaziz (1875 –1953), para abrigar as tribos beduínas dos Ikhwan que haviam lutado por ele. Os Ikhwan ou “Irmãos”, eram militantes da ideologia wahabi empregados pelos chefes da família real saudita no combate tanto das forças otomanas como de Sharif Hussein de Meca, e ajudaram os primeiros reis sauditas a impor o wahabismo na população da nova Arábia que pretendiam criar.

O assentamento (conhecido como hijra) de al-Sajir era povoado por membros da tribo de Juhayman, a tribo Utaybah, uma das tribos mais proeminentes da região de Najd. Muitos dos parentes de Juhayman participaram da Batalha de Sabilla durante a revolta dos Ikhwan contra o rei Abdulaziz, incluindo seu pai e seu avô, Sultan Ibn Bajad Al-Otaibi. Juhayman cresceu ciente da batalha e de como, a seus olhos, os monarcas sauditas haviam traído os princípios religiosos originais do Estado saudita, e corrompido o wahhabismo original para se ocidentalizar cada vez mais. Já podemos ver claramente com este exemplo concreto, a capacidade de subversão infinita que representa o wahabismo: um grupo neo-wahabita se estabelece como poder politico, então é declarado como ‘’heterodoxo’’ por outro grupo mais ‘’puro’’ (leia-se, mais extremista).

Voltando a Juhayman, ele terminou a escola sem habilidade de escrever fluentemente, mas adorava ler textos religiosos. Ele serviu na Guarda Nacional da Arábia Saudita de 1955 à 1973. Então ele se mudou para Medina. Foi quando ele se encontrou com Muhammad ibn Abdullah Al Qahtani.

Ele, ao se mudar para Medina, juntou-se à seção local de um grupo wahabi chamado ”Al-Jamaa Al-Salafiya Al-Muhtasiba” (”Grupo do Salafismo Ascético”). Apoiado pelo então notório mufti saudita Abd al-Aziz ibn Baz. Ibn Baz usou sua estatura religiosa para arrecadar fundos para o grupo, enquanto Juhayman ganhava dinheiro comprando, consertando e revendendo carros de leilões da cidade.

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Abd al-Aziz ibn Baz

Juhayman passou a morar em um “complexo improvisado” a cerca de meia hora de caminhada até a Mesquita do Profeta em Medina, e seus seguidores ficavam em um albergue nas proximidades de terra batida chamado Bayt al-Ikhwan (“Casa dos Irmãos”). Juhayman e seus seguidores tinham um estilo de vida austero e simples, buscando na leitura wahabi do Alcorão e Hadith por evidências escriturísticas do que era permissível não apenas por suas crenças, mas em suas vidas cotidianas. Otaybi ficou perturbado com a invasão de modos ocidentais e bid’ah (”inovações” na religião) na sociedade saudita, em detrimento do (que ele acreditava ser) o verdadeiro Islã, nesse caso, o wahabismo original. Ele se opunha à integração das mulheres na força de trabalho, à televisão, e aos calções indecentes usados pelos jogadores de futebol durante os jogos e à moeda saudita com a imagem do rei sobre ela.

Em 1977, o professor de Juhayman, Ibn Baz, partiu para Riad e ele tornou-se líder de uma facção de jovens recrutas que desenvolveram suas próprias doutrinas religiosas – consideradas não-ortodoxas no contexto do wahabismo reinante por consistirem basicamente de pontos a serem levantados para a rebelião contra a família real saudita, o que romperia o pacto eterno feito entre o fundado do wahabismo, Muhammad Ibn Abdul Wahab e o patriarca saudita que o apadrinhou no século XVIII, Ibn Saud. Quando os membros mais velhos do grupo viajaram para Medina para confrontar al-Otaybi sobre essas doutrinas um tanto questionáveis, as duas facções se separaram. Otaybi atacou os pregadores mais velhos como ”vendidos” ao governo e chamou seu novo grupo de ”al-Ikhwan” (na maior subversão infinita, estes eram “os irmãos” dos “irmãos”).

No final dos anos 70, mudou-se para Riad, capital saudita, onde chamou a atenção das forças de segurança. Ele e aproximadamente 100 de seus seguidores foram presos no verão de 1978 por se manifestarem contra a monarquia publicamente, mas foram libertados depois que o mufti Ibn Baz, seu antigo patrocinador, os “interrogou” e os declarou inofensivos.

Juhayman e seu cunhado Mohammed Abdullah al-Qahtani que haviam estado presos juntos, chegaram a conclusão no cácere através de um sonho de Juhayman de que al-Qahtani seria a figura escatológica islâmica do Mahdi, e que iria liderar o grupo contra a corrupção saudita. Seu objetivo declarado era instituir um novo regime wahabi, em preparação para o fim iminente do mundo. Qualquer semelhança como o discurso do ISIS não é mera coincidência. Muitos de seus seguidores eram estudantes de teologia da Universidade Islâmica de Medina. Outros seguidores eram do Egito, Iêmen, Kuwait e Iraque, e também incluíram alguns sudaneses. Porém todos wahabis.

Eles pregaram sua mensagem em diferentes mesquitas na Arábia Saudita sem serem presos porque o governo estava relutante em confrontá-los, já que o próprio mufti Ibn Baz os dera indulgencia. De fato, membros do clero saudita chegaram a questionar as ambições de Juhayman, porém, eles não perceberam nenhuma anomalia teologica aparente a suas ideias, e sim, os viam como tradicionalistas legítimos e fiéis ao wahabismo. Através de doações de seguidores ricos, o grupo estava bem armado e treinado. Algumas tropas da Guarda Nacional que simpatizavam com os insurgentes contrabandeavam armas, munições, máscaras de gás e provisões para a mesquita ao longo de um período de semanas antes do ataque. Todos confabulavam para a ascensão do ”Mahdi”’, que de acordo com as fontes islâmicas gerais surgiria em Meca, se chamaria Muhammad, coincidentemente como al-Qahtani, e seria proclamado em frente a Caaba.

No início da manhã de 20 de novembro de 1979, o imã da Mesquita Sagrada, o sheykh Mohammed al-Subayil, preparava-se para liderar as orações dos cinquenta mil fiéis reunidos. Por volta das cinco horas da manhã, ele foi interrompido por insurgentes que conseguiram entrar com armas debaixo de suas vestes, acorrentaram os portões e mataram dois policiais que estavam armados apenas com tacos de madeira para disciplinar os peregrinos indisciplinados. Armas também foram contrabandeadas para a mesquita em caixões vazios para evitar a detecção.

O número de rebeldes foi dado como “pelo menos 500” e , o que inclui várias mulheres e crianças que se juntaram ao movimento de Juhayman. Na época, a Grande Mesquita estava sendo reformada. Um funcionário do local conseguiu relatar a apreensão para fora antes que os insurgentes cortassem as linhas telefônicas.

Os insurgentes libertaram a maioria dos reféns e trancaram o restante no santuário. Eles tomaram posições defensivas nos níveis superiores da mesquita e posições de franco-atiradores nos minaretes, dos quais eles comandavam os terrenos. Ninguém do lado de fora da mesquita sabia quantos reféns restavam, quantos militantes estavam na mesquita e que tipo de preparativos eles haviam feito.

Na época do evento, o príncipe herdeiro Fahd estava na Tunísia para uma reunião da Cúpula Árabe e, em seguida, o comandante da Guarda Nacional, o príncipe Abdullah, estava no Marrocos para uma visita oficial. Portanto, o rei Khalid atribuiu a responsabilidade ao príncipe Sultan, então ministro da Defesa e príncipe Nayef, então ministro do Interior, para lidar com o incidente.

Logo após a apreensão, cerca de cem agentes de segurança do Ministério do Interior tentaram retomar a mesquita, e foram decisivamente rechaçados com pesadas baixas. Os sobreviventes foram rapidamente acompanhados por unidades do Exército da Arábia Saudita e da Guarda Nacional da Arábia Saudita. À noite, toda a cidade de Meca foi evacuada. O príncipe Sultan nomeou Turki bin Faisal Al Saud, então chefe do Al Mukhabaraat Al Aammah (Inteligência saudita), para assumir o cargo de comando a centenas de metros da mesquita, onde o príncipe Turki permaneceria pelas próximas semanas.

Fumaça subindo da Grande Mesquita durante o assalto à galeria Marwa-Safa, 1979.

No entanto, a primeira ordem de ação foi buscar a aprovação dos clérigos sauditas, liderados por, adivinhem, Abdul Aziz Ibn Baz. O Islã proíbe qualquer ato de violência dentro da Mesquita Sagrada, a medida em que nem mesmo plantas podem ser extirpadas sem uma sanção religiosa explícita mediante grande necessidade.

Ibn Baz encontrou-se em uma situação delicada, especialmente pois ele havia sido o professor de Juhayman al-Otaybi em Medina, bem como apoiador de seu grupo. Independentemente disso, os clérigos sauditas emitiram uma fatwa permitindo que força mortal fosse usada na retomada da mesquita.

Inicialmente, as autoridades sauditas queriam atacar o complexo sem considerar a perda de reféns, mas foi o príncipe Turki que sugeriu cautela e, sob sua responsabilidade, convocou o oficial francês, conde Claude Alexandre de Marenches, e o nomeou assessor geral da operação.

O conde Claude Alexandre de Marenches sugeriu que as câmaras subterrâneas e os túneis, onde o autoproclamado Mahdi tomara uma posição e mantivera os reféns como escudos humanos, fossem atacados com gás e depois assaltados.

Uma equipe de três comandos franceses do Groupe d’Intervention de la Gendarmerie Nationale (GIGN) chegou a Meca e, por causa da proibição de não-muçulmanos entrarem na cidade sagrada, eles se converteram ao Islã em uma breve cerimônia formal, após um veredito religioso de Ibn Baz os permitir. Os comandos bombearam gás para as câmaras subterrâneas, mas talvez porque as câmaras fossem tão interconectados, o gás falhou e a resistência continuou.

Com a aprovação religiosa concedida, as forças sauditas lançaram ataques frontais em três dos principais portões. A força de assalto foi repelida e nunca chegou perto de romper as defesas dos insurgentes. Snipers continuaram a abater soldados que se mostravam. O sistema de avisos público da mesquita foi usado para transmitir a mensagem dos insurgentes pelas ruas de Meca.

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Soldados sauditas lutando para entrar nas câmaras subterrâneas, embaixo da Grande Mesquita de Meca, 1979

Uma unidade paquistanesa de elite chamada “Rahbar” foi levada às pressas para Meca, sob o comando do general Pervez Musharraf (então major) do Paquistão, por solicitação do governo saudita. No meio do dia, tropas sauditas usavam helicópteros para tentar detectar os terroristas dentro da mesquita. Os soldados sauditas foram apanhados por insurgentes com posições superiores. Após o fracasso deste exercício, os comandos paquistaneses despejaram água em todo o piso da Mesquita Sagrada, mesmo em minaretes.

Essa situação foi muito surpreendente para os insurgentes que não sabiam o que aconteceria em seguida. Ao ter água em todos os andares, os Comandos do Exército paquistanês liberaram corrente elétrica na água e os insurgentes suspenderam suas atividades e começaram a mudar de posição para se salvar dos choques elétricos.

Durante esse tempo, os comandos do exército paquistanês foram lançados por helicópteros em diferentes locais e eles facilmente capturaram muitos dos insurgentes vivos.

Oficialmente, o governo saudita tomou a posição de não tomar a mesquita de forma agressiva, mas sim de matar de fome os militantes. No entanto, vários ataques sem sucesso foram realizados, pelo menos um deles através dos túneis subterrâneos e em torno da mesquita.

Insurgentes sobreviventes sob custódia das autoridades sauditas, 1979.

Em 27 de novembro, a maior parte da mesquita havia sido retomada pela Guarda Nacional Saudita e pelo Exército, embora tenha sofrido pesadas baixas no ataque. Nas catacumbas sob a mesquita, no entanto, vários militantes continuaram a resistir e o gás lacrimogêneo foi usado para forçá-los a sair. Vários dos principais militantes escaparam do cerco e dias depois surgiram combates esporádicos em outras partes da cidade, enquanto as autoridades tentavam capturá-los. A batalha durou mais de duas semanas e deixou oficialmente “255 peregrinos, tropas e terroristas” mortos e “outros 560 feridos… embora os diplomatas tenham sugerido que o número era mais alto”. As baixas militares foram de 127 mortos e 451 feridos.

O líder dos insurgentes, Juhayman, foi capturado, e ele e 67 de seus companheiros rebeldes – “todos os homens sobreviventes” – foram julgados secretamente, condenados e decapitados publicamente nas praças de quatro cidades sauditas. As execuções foram decretadas pelo rei Khalid após os vereditos religiosos emitidos pelos clérigos wahabis do reino. Quanto a Abdul Aziz Ibn Baz, este saiu ileso da história, e continuou a pregar livremente.

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Al-Qahtani, o então proclamado Mahdi, morto após o conflito.

O governo saudita na figura do rei Khalid, no entanto, não reagiu à revolta com repressão ao puritanismo wahabi. O rei enxergou o problema como culpa do próprio regime que havia ofendido a sensibilidade de extremistas, e decidiu ceder a certas agendas dos próprios insurgentes que havia executado. Então, deu mais poder aos clérigos conservadores do reino. Primeiro, fotografias de mulheres em jornais foram proibidas, depois mulheres na televisão. Cinemas e lojas de música foram fechados. O currículo escolar foi modificado para fornecer muito mais horas de estudos religiosos, eliminando aulas sobre assuntos como ”a história não-islâmica”. A segregação de gênero foi estendida “à cafeteria mais humilde”, e a polícia religiosa tornou-se mais assertiva.

A história foi fortemente censurada pelas autoridades sauditas, afinal, além de por em xeque a capacidade do reino de proteger os peregrinos que visitam Meca aos milhares todos os anos, o líder do levante tinha fortes ligações acima de tudo intelectuais com o próprio mufti do país e ”papa” do wahabismo na época, que continua a ser um dos nomes mais influentes no movimento ainda hoje mesmo após sua morte em 1999. No fim das contas, poucos muçulmanos conhecem este episódio, e os que conhecem, receberam uma versão ”estatal” de Juhayman que foi retratado como um simples louco extremista, e alguns chegaram ao extremo de propor que o mesmo tinha “influencias xiitas” por toda sua enfase no “Mahdi” que seria seu cunhado. Porém, quando olhamos o quadro geral de seus discursos e agenda, encontramos “rebelião aos eruditos desviados das escolas, combate as inovações e aos que adoram Muhammad, Ali e Fátima (como são retratados sunitas e xiitas de acordo com o wahabismo), bem como um governo que não se alie aos infiéis”, vemos que na verdade, Juhayman só pôs em prática o que aprendeu durante toda sua vida, e que seus atos nada mais foram de que outro legado negro deixado pelo wahabismo na história do Islã.

 

Bibliografia

-Trofimov, Yaroslav, The Siege of Mecca: The Forgotten Uprising in Islam’s Holiest Shrine and the Birth of Al Qaeda, Doubleday (2007)

– Abir, Mordechai (1988). Saudi Arabia in the Oil Era: Regime and Elites Conflict and Collaboration. Boulder, CO: Westview Press.

-Lacroix, S., & Holoch, G. (2011). Awakening Islam: The Politics of Religious Dissent in Contemporary Saudi Arabia. Cambridge, Mass: Harvard University Press.

-Quandt, William B. (1981). Saudi Arabia in the 1980s: Foreign Policy, Security, and Oil. Washington, D.C.: