Como traduções árabes de antigos textos gregos iniciaram uma nova revolução científica
Autor: Josephine Quinn 06/11/2024No século VIII d.C., os abássidas passaram a reunir o conhecimento do mundo em sua nova capital, Bagdá. Este projeto começou com o segundo califa abássida, al-Mansur (“O Conquistador”, r. 754-774), que comissionou traduções árabes de importantes textos científicos em persa, sânscrito, grego e siríaco (uma forma tardia do aramaico), e se tornou independente sob al-Ma’mun (“O Confiável”, r. 813-833).
A operação foi generosamente financiada pelo próprio califa, bem como pelos membros de sua família, cortesãos, comerciantes, banqueiros e líderes militares. Ela reflete a prosperidade da época, quando os abássidas criaram um poderoso governo centralizado baseado num imposto territorial que, à medida que a conversão se tornou mais comum, eles pragmaticamente estenderam aos muçulmanos e não-muçulmanos.
A coisa mais importante a se entender sobre o que é agora comumente chamado de “Movimento de Tradução” é que ele não era principalmente sobre tradução. Ele foi parte de um compromisso mais amplo de estudiosos islâmicos e líderes políticos com a investigação científica que também viu califas encomendarem novas obras científicas, geografia, poesia, história e medicina.
É bem sabido que obras clássicas da ciência e filosofia grega foram traduzidas ao árabe antes de serem traduzidas para outras línguas europeias – incluindo o latim. O que é menos conhecido é que o ponto de traduzir obras estrangeiras não era preservá-las, mas desenvolvê-las. Conforme as ligações ao longo do Mediterrâneo continuaram a crescer, essa erudição árabe começou a chegar na Europa Ocidental e mudar a forma como as pessoas de lá pensavam.
De volta a Bagdá, como costumava ocorrer, o intercâmbio cultural começava de fora – e, neste caso, com a coleção e comparação do conhecimento estrangeiro. O modelo fundamental e o primeiro material para o projeto de tradução abássida vieram do Irã, onde os xás sassânidas do século VI comissionaram traduções persas de importantes obras indianas e gregas.
Os iranianos também eram uma inspiração. As tradições intelectuais sassânidas resistiram à conquista árabe e o persa continuou sendo uma das principais línguas iranianas, mas os estudiosos persas já haviam começado a traduzir obras clássicas de sua própria literatura para o árabe.
Isso garantiu sua preservação e divulgou a história e a alta cultura das terras iranianas. Os intelectuais sassânidas também mantinham ligações úteis com tradições científicas orientais, principalmente com matemáticos indianos, a mais avançada do mundo antigo, e eles já tinham traduzido importantes obras do sânscrito para sua própria língua.
O Califado Abássida, c. 850 d.C.
Os benefícios para os califas abássidas ao se relacionar com as tradições iranianas não eram apenas intelectuais. Isso os ajudou a estabelecer raízes para si no antigo território sassânida da Mesopotâmia que agora ocupavam; de forma semelhante, construíram a própria Bagdá em 762 de maneira circular, característica das cidades sassânidas.
Incorporar as obras de pensadores gregos ao cânone árabe era, em contraste, uma declaração da hegemonia cultural sobre o restante do Império Romano em Constantinopla, onde o conhecimento mais antigo havia sido deixado de lado em favor de gêneros cristãos, desde sermões até vidas de santos, e onde a ciência e a filosofia antiga agora se deterioravam em arquivos e mosteiros.
Mais imediatamente, o projeto se inspirou na cultura intelectual contemporânea da Ásia Ocidental, revitalizada pela unificação, pelo Islã, de regiões uma vez sujeitas à Pérsia ou Roma. Centros intelectuais, da Edessa e Mosul cristã à Merve zoroastrista, à resolutamente pagã Carras, estavam agora não apenas em contato umas com as outras, mas livres da ortodoxia religiosa imposta por seus antigos mestres: disputas teológicas entre estrangeiros eram de pouco interesse dos califas.
Este mundo produziu intelectuais bem viajados especializados em tópicos que iam da estratégia militar à astrologia, e que se sentiam confortáveis com as línguas gregas, siríaca, persa médio (pahlavi) e, agora, também o árabe.
O último componente principal veio do extremo oriente. O papel foi inventado na China no século II a.C. e por volta do século II d.C., foi encontrado nos oásis comerciais da Bacia do Tarim. Inicialmente, era usado como papel de embrulho, mas as pessoas logo perceberam que, assim como o couro e a madeira, era uma superfície útil para textos com tinta.
A arte da fabricação de papel chegou ao mundo abássida no século VIII, e a primeira fábrica de papel foi construída em Bagdá na década de 790. Visto que o papel era muito mais barato de produzir que o papiro, finalmente tornou a escrita em grande quantidade uma perspectiva prática.
No início do século IX, a erudição científica em Bagdá se uniu em torno de uma biblioteca chamada Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikma), e os esforços de tradução foram colocados em uma base mais organizada. Os tradutores recebiam um salário mensal e as traduções costumavam passar por vários estágios.
Estudiosos persas traduziram ao árabe obras que eles já tinham traduzidos de outras línguas para a sua, e visto que havia, comparativamente, pouco bilinguismo greco-árabe direto, as traduções árabes do grego costumavam ser feitas a partir de versões siríacas. A tradução do grego estava, portanto, amplamente nas mãos dos cristãos levantinos, que já estavam acostumados a trabalhar com diferentes línguas, incluindo grego e siríaco, mas também o árabe.
Temos um útil guia para as obras estrangeiras consideradas dignas de investigação em formato de enciclopédia chamado As Chaves das Ciências, escrito por Muhammad ibn Musa al-Khwarizm (c.780-850), um matemático e astrônomo falante de persa do oásis centro-asiático de Khwarazm, ao sul do Mar de Aral, que trabalhou na Casa da Sabedoria.
Ele dividiu a obra em dois livros: um descreve “a lei religiosa islâmica e ciências árabes”, sobre direito, teologia, gramática, secretaria, poesia e história; o outro era devotada às “ciências dos estrangeiros como os gregos e outras nações”: filosofia, lógica, direito, medicina, aritmética, geometria, astronomia e astrologia, música, mecânica e alquimia.
Os filósofos gregos traduzidos ao árabe iam de Platão a Euclides escrito no quarto século IV a.C., ao filósofo do século II d.C. nascido no Egito, Plotino. Os estudiosos árabes se interessaram, particularmente, com a obra de Aristóteles, bem como com os comentários gregos sobre.
Textos gregos mais práticos também encontraram seu espaço na coleção, sobre tópicos como engenharia à tática militar à falcoaria. A literatura popular incluía livros de fábulas, “ditados de sabedoria” e cartas supostamente trocadas entre famosas figuras históricas. A poesia clássica, o drama e a história eram de menor interesse: mesmo Homero aparece apenas em algumas citações encontradas em autores científicos.
Isto se deu, em parte, porque os estudiosos envolvidos sabiam quão difícil era traduzir bem a poesia. Até mesmo a tradução do vocabulário científico depende de uma maneira compartilhada de ver o mundo que foi difícil para os intelectuais que trabalharam séculos depois compreenderem.
Eles fizeram isso com variados graus de sucesso, especialmente quando se trata de textos mais abstratos, filosóficos. Algumas traduções incorporam muita interpretação: os “deuses” se tornaram “o Deus”, e uma interpretação da obra de Plotino equipara sua ideia de um “primeiro princípio” a Allah. Mas novos manuscritos eram adquiridos sempre que possível para comparação com os textos existentes e novas traduções eram publicadas onde claras melhorias puderam ser feitas.
Os estudiosos também pensaram muito sobre a metodologia e os desafios da tradução: um médico cristão nestoriano de Baçorá que trabalhava com grego, siríaco, persa e árabe chamado Hunayn ibn Ishaq defendeu intensamente o princípio de que as traduções deveriam ser fluentes e relativamente livres, ao invés de rigorosas, porém ilegíveis, palavra por palavra.
Alguns dos textos gregos foram adquiridos através de solicitação pessoal, às vezes do próprio califa. Outros manuscritos foram encontrados em missões investigativas, ou, na verdade, resgatadas: um compêndio de literatura do século X escrito em Bagdá relata que antigas obras, capazes de serem transportadas por inúmeros camelos, foram descobertos num templo pagão grego que foi trancado com a chegada do cristianismo, ficando desgastadas e roídas por pragas.
Algumas obras ainda se mostraram elusivas: Hunayn ibn Ishaq relata um pedido por um trabalho do médico romano Galeno (129-216 d.C.) que mapeou os quatro “humores” (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra) em tipos de personalidade. Após buscar, em vão, ao longo do norte da Mesopotâmia, Síria, Palestina e Egito, ele eventualmente “encontrou metade dele, desorganizado e incompleto, em Damasco.
O legado do Movimento de Tradução não são as traduções em si. A noção de que os árabes “preservaram” o antigo conhecimento grego que, sem eles, estaria perdido, é, em geral, um mito.
A maior parte da ciência foi, de fato, perdida na Europa Ocidental por quase um milênio: tais obras, normalmente escritas em grego, mesmo pelos romanos, e desapareceram com o conhecimento dessa língua. Apenas algumas traduções latinas de obras gregas foram feitas: o Timeu de Platão e várias obras de Aristóteles, bem como obras práticas como o Procheiroi Kanones de Ptolomeu de Alexandria, contendo informações básicas necessárias para calcular as posições do sol, da lua e dos planetas, bem como as horas em que nascem e se põem, e para prever eclipses.
Em geral, no entanto, os textos originais também sobreviveram, foram guardados e copiados em bibliotecas, arquivos e monastérios do Império Romano do Oriente. Versões modernas destes antigos textos gregos são, naturalmente, baseados neles.
As traduções árabes ainda são úteis, já que eles costumavam ser feitos a partir de manuscritos gregos mais antigos e precisos. E há algumas obras gregas que só sobreviveram em sua tradução árabe, mas são apenas curiosidades, ao invés de textos canônicos: os exemplos incluem um guia de gestão patrimonial escrito no século I d.C. por um autor romano conhecido por Bryson, e um tratado do século II d.C. sobre fisiognomonia do sofista Polemon.
O verdadeiro legado das traduções árabes é o ímpeto que eles deram ao aprofundamento das obras. Como o patriarca siríaco Bar Hebreu descreveu no século XIII d.C.:
“Surgiu dentre [os árabes] filósofos, matemáticos e médicos que superaram todos os antigos na sutileza da compreensão. Embora não tenham construído sobre nenhuma fundação além daquela dos gregos, eles construíram edifícios científicos maiores através de um estilo mais elegantes e pesquisas mais bem estudadas, com o resultado de que, embora tenham recebido a sabedoria de nós, por meio dos tradutores, agora achamos necessário buscar a sabedoria deles.”
Sua história é muito legal: os textos gregos estavam longe de ser a única inspiração para a ciência árabe. Mas, enquanto monges e freiras da Europa Ocidental copiavam laboriosamente os manuscritos latinos em monastérios à luz de velas, a manipulação, o criticismo e, às vezes, a obstinada rejeição de obras estrangeiras produzidas por intelectuais que atuavam no Mundo Islâmico catalisaram uma revolução científica.
Retirado de “How the World Made the West” por Josephine Quinn.
Fonte: How Arabic Translations of Ancient Greek Texts Started a New Scientific Revolution | Literary Hub