A algumas semanas, entra Julho e Agosto deste 2022, tensões escalaram-se, novamente, entre a soberana República do Kosovo e a Sérvia, que, junto de seus aliados como Rússia e Belarus, considera o Kosovo parte integral de seu território, apesar dele de dato não o ser. O Kosovo, uma província histórica da nação da Albânia cuja população é composta por quase 90% de albaneses étnicos sempre ficou alienado do processo histórico de formação da nação vizinha da Albânia, embora compartilhe uma história conjunta com ela, “aprisionada” pelos sucessivos estados sérvios e iugoslavos.

No final da década de 90, entre 1998 e 1999, os sérvios liderados por Slobodan Milosevich, não saciados da sua sede de sangue pelo genocídio que perpetraram contra os muçulmanos bósnios na Guerra da Bósnia entre 1992 e 1995, lançaran-se numa campanha de terror contra os albaneses do Kosovo, visando limpar étnicamente a região para ser tomada por sérvios. A enorme crise humanitária causada pelos refugiados kosovares que fugiam para a Albânia das campanhas de estupros, assassinatos e torturas das tropas servo-iugoslavas chegaram aos ouvidos a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que, diante do massacre e decididos a evitar uma nova Srebrenica em escalas ainda maiores, bombardeou pontos estratégicos da Sérvia (incluindo sua capital, Belgrado, sendo que a Sérvia, à época, ainda denominava-se “Iugoslávia”, mudando depois seu nome para “Sérvia e Montenegro”) para forçar as autoridades servo-iugoslavas até a carnificina findasse, abrindo caminho para que os combatentes guerrilheiros do UÇK (Exército de Libertação do Kosovo) contra atacassem.

Casas e mesquita destruídas, Guerra do Kosovo, 1999

Com avanços do UÇK e com a retirada das tropas servo-iugoslavas e a ocupação da província pelas Nações Unidas (KFOR – a “Missão de Paz ao Kosovo”), a situação pôde ser controlada; apesar dos refugiados poderem retornar às suas casas, saldo de mortes era grande, assim como também a campanha sistemática de destruição de locais históricos e religiosos dos kosovares: mesquitas, madraças e tekkes (congregações sufis) foram destruídas por toda a região. A 9 de Agosto de 1999, com o Acordo de Kumanovo, foi estabelecida a independente República do Kosovo, reconhecida por 97 dos 193 países das Nações Unidas – mas não pela Sérvia, nem por seus aliados.

Refugiados muçulmanos albaneses étnicos, Guerra do Kosovo, 1999

 Assim como na vizinha Albânia, a grande maioria (95%) dos albaneses kosovares são muçulmanos sunitas, com uma pequeníssima e quase irrelevante comunidade de muçulmanos bektashis, com o restante sendo albaneses de fé católica. Os outros 10 ou 12% restantes da população kosovar consistem de sérvios, seguidores da religião cristã ortodoxa e eslavos de fé muçulmana – goranis e bosníacos –, além de uma minoria falante do turco. Hoje, na totalidade, 95% da população kosovar é seguidora do Islã.

As Origens e a História do Islã kosovar

As terras dos Bálcãs foram amplamente cristianizadas, tanto pelo cristianismo ocidental católico quanto pelo oriental ortodoxo, geralmente com os nativos albaneses aderindo ao primeiro, enquanto os eslavos, chegados aos bálcãs numa onda de imigrações no entre o fim do Império Romano e a alta Idade Média, aderiam à segunda, sem sua maioria. Em 1389 o Sultão Murad Hüdavendigâr, do então ascensório Império Otomano, enfrentou as forças do príncipe sérvio-morávio Lazar I. Essa batalha não rendeu aos otomanos a imediata conquista da região, mas marcou seu início.

Do final dp século XIV até 1912, a região esteve em poder do Império Otomano que, apesar de não ser essencialmente proselitista entre suas minorias, cultivando pois uma tradição de multiculturalismo e respeito para com suas minorias étnico-religiosas, a Sublime Porta (o governo otomano) e a própria sociedade turca ofereciam muitas vantagens àqueles indivíduos que se convertiam ao Islã e, consequentemente, “turquificavam-se” (ou não).

Recriação artística da  Batalha do Kosovo em 1389, entre forças cristãs sérvias e turcas muçulmanas.

Até o século XVI, com quase a totalidade da população continuando a aderir ao Cristianismo, não houve muita movimentação religiosa na província do Kosovo nem nas províncias das redendodezas, com excecção da velha contenda de séculos entre ortodoxos e católicos pelos corações e almas dos albaneses, contenda essa que tirariam proveito os Sultões da Sublime Porta.

Na virado do mesmo século, porém, a situação nos bálcãs começou a mudar: entre 1443 e 1468 houve a rebelião de Gjergj Kastrioti “Skanderberg” na Albânia; Skanderberg (cujo nome vem de seu apelido entre os turcos, Iskander Bey) apostatou do Islã (que adotara enquanto fora criado na corte otomana) para o catolicismo e liderou uma rebelião de albaneses católicos contra os turcos, com o apoio de potências ocidentais como Veneza. Essa rebelião, que acabou sendo derrotada a muito custo, acabou por convencer as autpridades otomanas que os albaneses católicos eram uma ameaça constante ao domínio da região; iniciaram, então, no século seguinte, campanhas de aumento da jízia e promoções ainda mais generosas para aqueles que se convertessem. O resultado foi que, do século XVI para o XVII, mas especialmente durante o século XVII, a Albânia (incluindo o Kosovo) e outras regiões como a Bósnia e alguns locais ao norte da Grécia experimentaram grandes ondas de conversões ao Islã.

Essas ondas de conversões foram impulsionadas pelas atividades missionárias de ordens e dervixes sufis na região, em especial a das ordens do Bektashis e do Halvetis. Os Bektashis obteriveram sucesso por toda a área que se estendia do norte da Grécia até o Kosovo e mesmo a Bósnia, fundando tekkes em Gjakovë, Prishtina e Prizren, principais cidades do Kosovo até hoje, seguindo-se a eles os Halvetis (para saber mais sobre os bektashis, acesse aqui).

Além disso, também foram impulsionada, como sabemos, em prol de evasão fiscal e obtenção de vantagens, tais quais como impostos menores, melhores oportunidades no comércio e cargos públicos, além de outras facilidades, muito atrativas para a população local, ainda mais considerando o contexto da época: o Império Otomano estavam em seu apogeu expansionistas, mas as terras balcânicas estavam inquietas pela agitação militar às suas portas, na Hungria e na Croácia e nas guerras com os Habsburgos.

Muçulmanos sufis (provavelmente halvetis) reunidos no teqe “Sheh Emin” em Gjakovë, Kosovo. As ordens sufis foram importantes na conversão dos kosovares ao Islã.

Tekke Bektashi em Gjakovë.

Apesar dessas conversões, não podemos dizer, todavia, que o Islã foi adotado de maneira zelosa minuciosa pelos locais, não (o próprio sucesso dos bektashis, uma tariqa um tanto heterodoxa, evidencia isso) mas, ainda, foi “acolhido” pela sociedade kosovar albanesa: era comum que um albanês fosse, ao mesmo tempo, na oração de Sexta-Feira na mesquita, para depois ir para a missa de Domingo na igreja, não vendo problema algum nisso. Casamentos entre cristãos e muçulmanos aconteciam muito frequentemente e, além disso, houve um fenômeno de conversões nominais ao Islã, apenas, que resultaram na formação de uma notável comunidade de albaneses cripto-católicos conhecidos como laramanos. A situação dos laramanos tornou-se tão notável que, em 1703, a Santa Sé publicou um édito que proibia essa “bigamia” religiosa, negando os sacramentos a qualquer cripto-católico/laramano que insisitisse na prática sincrética/mentirosa de Islã e catolicismo.

No século XIX, já, a maior parte da região havia sido islamizada (ao menos nas aparências), com a maior parte das famílias e clãs albaneses tendo se convertido do catolicismo ao Islã. Essa conversão não apenas era bem-vinda para os turcos, que visavam além de, é claro, aumentar as fileiras da ‘ummah, neutralizar os arredios albaneses e sua religião católica: uma Igreja subordinada a um poderio estrangeiro, recebendo ordens de fora; para as autoridades otomanas, era muito maiis interessante manter o ‘monopólio’ do cristianismo nas mãos da Igreja Ortodoxa, especialmente do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, mais fáceis de coibir, coagir e controlar. Os ortodoxos pensavam de forma parecida: converter os albaneses ao Islã era livrar de suas costas a presença incômoda dos “hereges latinos” e, efetivamente, monopolizar a Eucaristia na região.

As comunidades laramanas subsistiriam nessa situação até a o fim da primeira metade do século XIX: em 1837, eles tentaram ‘sair do armário’, ao que foram reprimidos pelo governador otomano, que os botou na cadeia. Já em 1845, seguindo os preceitos do Édito de Tolerância da Sublime Porta do ano anterior, que acabava com a pena de morte para a apostasia do Islã, alguns grupos de cripto-católicos foram reconhecidos pelo Vizir.

Hoje, os católicos são uma ínfima parte da população, apesar de serem todos albaneses, enquanto a Igreja Ortodoxa mantém-se étnicamente restrista à minoria sérvia.

Kosovares rezando numa mesquita em Obilich

Hoje em dia, o Islã continua sendo não apenas a religião da esmagadora maioria da população, mas também é responsável por uma considerável influência na sociedade e na política da jovem República do Kosovo, como uma proposta de implementar o ensino religioso islâmico em escolas kosovares, proposta essa que foi rejeitada pela Assembleia Nacional. Tem havido uma tentativa de infiltração salafi-wahabbita dentro do Islã kosovar, mas felizmente os muçulmanos do país não têm dado a mínima atenção para o proselitismo desta seita. As tariqas sufis por sua vez, apesar da opressão do tempo da Iugoslávia comunista e da perseguição pelos sérvios, continua firme e próspera: Halvetis, Bektashis e Rifa’is estão entre as principais e mais popualres ordens sufis do Kosovo até hoje. Apesar, também, das tensões com a Sérvia e as tensões étnicas dentro do próprio Kosovo entre os albaneses e os sérvios que ainda residem no Kosovo, têm havido diálogos entre os membros das três religiões principais do Kosovo: Islã sunita, catolicismo romano e cristianismo ortodoxo, com os muftis desempenhando um papel crucial na reconciliação dessa ferida ainda fresca na região mais sensível da Europa.

Bibliografia:

Kosovo: A Short History. Noel Malcom,

Crimes of War, Crimes of Peace: Destruction of Libraries during and after the Balkan Wars of the 1990s - András Riedlmayer (2007).

Violence taking place: The architecture of the Kosovo conflict - Andrew Herscher (2010).