Muitos apologistas muçulmanos modernos envolvidos no diálogo interreligioso com cristãos fizeram de São Paulo de Tarso o foco de suas críticas. O falecido apologista muçulmano Ahmed Deedat descreveu Paulo como “o verdadeiro fundador do Cristianismo” e a causa de divisão entre a teologia cristã e muçulmana [1]. Bilal Philips, um proeminente pregador e apologista, disse que Paulo se opôs ao caminho dos profetas e cancelou suas leis [2]. Paulo é creditado com o antinomianismo e cristologia que muitos muçulmanos modernos criticam.

São Paulo, também conhecido como Paulo, O Apóstolo, é o autor de treze dos vinte e sete livros do Novo Testamento. Ele alegou ter sido um fariseu de uma família de fariseus em Filipenses 3:5-6. Robert Eisenman especula que Paulo era de uma família herodiana [3]. Paulo estava ativamente envolvido na perseguição dos primeiros cristãos (Atos 8:1) até que ele experienciou uma visão de Jesus na estrada para Damasco (Atos 9:4-5). Depois disso, ele se juntou à Igreja primitiva e exportou o Cristianismo para os povos helênicos. Estudiosos modernos traçaram paralelos entre o conteúdo místico dos escritos de Paulo, misticismo judaico [4] e a teosofia de Fílon [5]. Com a propagação do Islamismo no Levante, Egito e Ásia Menor, estudiosos muçulmanos interagiram com muitas das doutrinas e figuras reverenciadas do Cristianismo. Enquanto a tendência hoje seja descartar São Paulo de imediato, isso não era necessariamente uma verdade histórica para os muçulmanos. Esse artigo abordará perspectivas muçulmanas pré-modernas sobre Paulo.

Talvez a mais antiga referência muçulmana sobre São Paulo está na Sīra de Ibn Isḥāq (f. 767 EC), que identifica ele como um enviado de Jesus para levar sua mensagem. “Entre aqueles que Jesus, filho de Maria, enviou entre os apóstolos e os discípulos diante dele estão Pedro, o Apóstolo, e Paulo com ele. Paulo estava entre os discípulos e não estava entre os apóstolos. Eles foram enviados para Roma” [6]. Essa seção também documenta os locais que os outros apóstolos foram enviados. Ibn Isḥāq baseou-se em relatórios de fontes Judaico-Cristãs (Isrā’īlīyāt) para sua biografia [7], e ele estudou em Alexandria [8]; isso deve explicar uma perspectiva enraizada no Cristianismo Paulino. Ṭabarī (f. 923 EC) registra essa mesma referência de Ibn Isḥāq em seu Tārīkh [9] (História); assim como Qurṭubī em seu Tafsīr [10] (Exegese do Alcorão). O status e recepção da Sīra (Biografia Profética) pode representar uma tolerância para esta perspectiva conjunta.

Uma referência detalhada a São Paulo pode ser encontrada em Tārīkh al-Yaʿqūbī, uma das fontes islâmicas mais antigas sobre a história do mundo. Foi escrita por Aḥmad al-Yaʿqūbī (f. 898 EC), um historiador e geógrafo da era abássida com simpatias xiitas. Ele escreve:

“Eles começaram a descrever a ordem do Messias e chamar o povo para sua religião. Paulo foi o mais ríspido do povo contra eles e foi o que causou o maior dano. Ele os mataria e procuraria por eles em todos os lugares. Então, ele partiu em busca de um grupo [de Cristãos] em Damasco quando ele ouviu uma voz chamando-o, dizendo, ‘Ó Paulo! Até quando você vai me perseguir?’ Então, ele entrou em pânico até o momento em que ele ficou cego. Daí ele veio para Ananias, que orou pra ele até que seus olhos sararem. Depois, ele ficaria nas igrejas, mencionava o Messias e o glorificava; até que os Judeus queriam matá-lo, então ele fugiu deles e juntou-se aos discípulos para chamar o povo [ao Cristianismo]. Ele falou como eles falaram e tornou-se asceta nos assuntos mundanos, até que todos os apóstolos o escolheram como seu líder. Ele se levantaria e falaria sobre os assuntos dos Filhos de Israel e dos profetas, e ele mencionaria o Estado do Messias (ou Cristologia, āl al-massī). Ele diria, ‘Venha conosco para [pregar] às nações, assim como Deus disse ao Messias: Eu fiz de você uma luz para as nações.’ Então, eles iriam até os confins da Terra com sinceridade, e cada homem expressaria sua opinião. Então, eles disseram, ‘Devemos manter uma lei (nāmūs), e enviar alguém que professe esta religião a todas as nações, e proibi-los de comer carne sacrificada a ídolos, de cometer adultério e de tomar sangue.’ Paulo partiu para Antioquia com dois homens para começar a batizar. Então, Paulo retornou e ficou diante do imperador de Roma e pregou. Ele mencionou o Estado do Messias, fazendo com que a comunidade quisesse matá-lo por profanar sua religião” [11]

Esse relato positivo de Paulo parece usar o Livro de Atos como referência, pois narra a conversão de Paulo, dá a ele uma posição única acima dos apóstolos e mantém um conjunto de leis. Essas leis parecem corresponder a Atos 15:20, em que Pedro e Tiago aconselham Paulo e os apóstolos para ensinar aos gentios a se absterem de carne sacrificada aos ídolos, da imoralidade sexual, da carne de animais estrangulados e de sangue. Yaʿqūbī não menciona o antinomianismo de Paulo, mas sugere seu ascetismo místico e cristologia.

Wahb b. Munabbih (f. 725 EC) é uma antiga autoridade nos adīth (ditos ligados ao Profeta Muhammad) e  e é conhecido por sua transmissão de Isrā’īlīyāt. No Tafsīr de al-Baghawī (f. 1122 EC), na exegese da Surat Yāsīn, uma tradição vinda de Wahb b. Munabbih afirma que Paulo foi um dos mensageiros enviados a uma comunidade de descrentes: “‘Enviamos dois para eles’ (36:14). Wahb disse: João e Paulo… ‘Então nós os fortaleceremos com um terceiro’ (36:14) o terceiro mensageiro foi Simão [Pedro]” [12]. Al-Baghawī identifica esses “apóstolos” como mensageiros enviados por Jesus à cidade de Antioquia [13]. Depois que os primeiros foram enviados, convocando a cidade e seu rei a abandonarem seus ídolos, eles foram presos e açoitados. Então Jesus enviou Pedro para ajudá-los, momento no qual curou uma criança de sua cegueira na companhia do rei.

Uma das primeiras exegeses é a de Muqātil b. Sulaymān (f. 767 EC), um contador de histórias sunita ou zaydi, que relatou que os dois mensageiros eram Tomé e Paulo [14]. O mesmo relato é feito por Ibn al-Jawzī (f. 1201 EC) em seu Tafsīr [15]. Ibn Kathīr (f. 1373 d.C) sugere uma chave de leitura diferente, em que os dois primeiros mensageiros foram Pedro e João e o terceiro mensageiro foi Paulo [16]. Shawkānī repete isso em seu Tafsīr [17]. É claro que, historicamente, Paulo nunca conheceu fisicamente Jesus durante o ministério deste último. E embora essa história seja comum nas exegeses muçulmanas, não é encontrada na literatura cristã.

Na crônica Tārīkh Dimishq de Ibn ʿAsākir (f. 1175 d.C), outro relatório de Wahb detalha a história de Paulo:

“Paulo era um dos líderes dos Judeus. Ele foi o mais duro entre eles e o mais rancoroso entre eles ao rejeitar o que o Messias trazia … reuniu soldados e foi até o Messias para matá-lo e impedi-lo de entrar em Damasco. Então, ele (Jesus) enviou-lhe um meteoro, e um anjo o atingiu com sua asa e o cegou. Assim, ele viu uma prova do que havia trazido … resultando em sua crença e confirmação disso. Então, ele encontrou o Messias, e pediu-lhe para curar seu olho. O Messias disse, ‘Até quando você vai me prejudicar e prejudicar aqueles que estão comigo?’” [18]

O texto continua dizendo que Jesus o encaminhou a Ananias. Esta tradição implica que Paulo estava trabalhando contra Jesus durante o seu ministério e até mesmo esteve envolvido na reunião de tropas para lutar contra ele. Parece confundir o período pós-ressurreição ao sugerir que Jesus estava indo para Damasco ao mesmo tempo que Paulo.

No entanto, Ibn Taymīyya (f. 1328 d.C), que estava fortemente envolvido em polêmicas interreligiosas e intrarreligiosas, chamou Paulo de “um Judeu que causou corrupção na religião dos Cristãos” e comparou-o a “‘Abdullah b. Saba’, um ‘herege (zindīq)’ que alegadamente fundou o xiismo e causou corrupção no Islã enquanto escondia o seu Judaísmo” (ver Majmūʿ al-Fatāwa, vol. 28, pp. 483).

Talvez as referências clássicas mais críticas a São Paulo sejam aquelas da literatura adīth xiita duodecimana. No Tafsīr de ʿAlī b. Ibrāhīm al-Qummī (f. 919 EC), uma narração atribuída a Jaʿfar al-Ṣādiq diz:

“Deus não enviou um profeta exceto que sua nação tinha dois demônios que o prejudicaram e desorientaram o povo depois dele … quanto aos dois de Jesus, eles são Paulo and Marītūn” [19]

Não está claro quem Marītūn se refere – talvez Marcion, ou talvez Mateus ou Marcos, os autores de dois dos quatro evangelhos. A narração, porém, está correta ao dizer que o ministério de Paulo veio depois de Jesus, ao contrário de alguns relatos anteriores.

Em Thawāb al-Aʿmāl, um livro de relatos compilado por Shaykh al-Ṣadūq (f. 991 EC), a seguinte citação de Muḥammad al-Bāqir pode ser encontrada:

“[No abismo do inferno] há sete baús, cinco contendo pessoas das nações anteriores, e dois contendo pessoas dessa nação. Quanto aos cinco, são (1) Caim, que matou Abel, (2) Nimrode, que desafiou Abraão a respeito de seu Senhor, dizendo ‘Eu dou a vida e dou a morte,’ (3) Faraó, que disse ‘Eu sou seu Altíssimo Senhor,’ (4) um Judeu que Judaizou os Judeus, (5) Paulo, que Cristianizou os Cristãos, (6-7) e desta nação, dois Beduínos” [20]

Existem outras fontes para quem “Cristianizou os Cristãos”, expressão que se refere a quem levou o povo dos ensinamentos de Cristo para uma prática desviada.

Um adīth semelhante sobre o abismo do inferno pode ser encontrado em Kāmil al-Ziyārāt por Ibn Qulawayh (f. 977 EC), onde Jaʿfar al-Ṣādiq diz:

Aí estão todos aqueles que ensinaram a descrença (kufr) aos servos … Paulo, que ensinou aos Judeus que a mão de Deus está amarrada, Nestor que ensinou aos Cristãos que o Messias é o filho de Deus, e disse-lhes ‘eles são uma trindade’” [21]

Essa narração parece confundir suas personalidades históricas: Paulo não é conhecido por ser influente entre os Judeus (independentemente de sua alegação de ter sido um Fariseu) e Nestor (f. 450 EC) era conhecido por se opor ao uso do título “Mãe de Deus” (theotokos) para Maria. É claro que é plausível que esta seja uma referência a um Paulo diferente, embora a Arabização do nome latino sugira que se refere a São Paulo. Além disso, embora Nestor não tenha produzido o conceito da Trindade, ele foi de fato um promotor dele.

Uma antiga referência sunita enigmática que pode referir-se indiretamente a Paulo pode ser encontrada no Musnad de Aḥmad b. Ḥanbal (f. 855 EC). Também sobre o tema do inferno, o Profeta Muhammad teria dito: “Os arrogantes serão ressuscitados no Dia da Ressurreição e feito em partículas a imagem das pessoas. Eles serão pisoteados por pessoas menosprezadas até que entrem em uma prisão no inferno chamada ‘Būlus’” [22]. Se o uso da mesma palavra árabe para “Paulo” é apenas uma coincidência não pode ser determinado, mas, a luz de outras narrações que associava Paulo ao inferno, é possível que o uso deste nome tenha sido deliberado.

Por último, Rajab al-Bursī (f. 1411 EC), um místico xiita, citou um ditado, atribuindo-o a Deus no Injīl (Evangelho): “Conheça a si mesmo, ó povo, e conhecerá o seu Senhor. Seu eu exterior será aniquilado, e seu eu interior permanecerá” [23]. Este ditado é usado hoje em círculos místicos xiitas, muitas vezes com uma redação ligeiramente diferente; “… e o seu eu interior sou Eu (wa thāhiruka ana).” Uma passagem semelhante pode ser encontrada em 2 Coríntios 4:16, na qual São Paulo diz, “Embora exteriormente estejamos definhando, interiormente estamos sendo renovados dia-após-dia”. Al-Bursī provavelmente considerou as epístolas uma extensão do Injīl, e, portanto, considerou suas palavras sagradas e divinamente inspiradas.

Existem várias lições que podem ser extraídas desta revisão de literatura relevante. Parece que muitas das referências pró-paulinas representam uma consolidação da história cristã no paradigma islâmico. O Alcorão enfatiza a crença em livros precursores e mensageiros, não fazendo “nenhuma distinção entre qualquer um de Seus mensageiros.” (2:285). Este princípio talvez tenha criado uma atitude de aceitação de figuras cristãs. O uso da tradição judaico-cristã nas primeiras exegeses demonstra um universalismo permissivo.

Da mesma forma, o esforço para reprimir Isrā’īlīyāt demonstra a necessidade de o Islã ser distinto e purificado das tradições anteriores. A cópia de histórias de um século para outro pode representar uma atitude acrítica que muitos estudiosos proeminentes tinham em relação à tradição pré-islâmica. As discrepâncias históricas entre os relatos islâmicos de Paulo e os relatos cristãos podem ser o resultado de boatos ou fontes perdidas. A aparição de Paulo nas exegeses da Surat Yāsīn pode ser atribuída ao destaque do relacionamento de Paulo com Antioquia, que é o local de sepultamento de Ḥabīb al-Najjār, o santo islâmico mencionado na mesma Surata. O anti-Paulinismo de algumas fontes xiitas pode ser uma resposta mais informada às ideias de São Paulo; ou pode ser herdado de cristãos judeus jamesianos. Mais pesquisas precisam ser feitas sobre se as epístolas de Paulo foram consideradas parte do Injīl no século VII, pois isso pode trazer novas questões. A investigação sobre o desenvolvimento da posição muçulmana de que a Bíblia foi distorcida seria bem-vinda.

Bilal Muhammad é bolsista e assistente de pesquisa no Instituto Berkeley para Estudos Islâmicos. Ele também é candidato ao mestrado em Assuntos Públicos e Internacionais da Universidade de Ottawa e bacharel em Educação na Universidade de Toronto. Atua como educador e pesquisador em Toronto, Canadá.

[1] Ahmed Deedat, Crucifixion or Cruci-fiction?, 1-2.

[2] Bilal Philips,The True Message of Jesus, 73-74.

[3] Robert Eisenman, “Paul as Herodian”,https://depts.drew.edu/jhc/eisenman.html (acesso em 24 de Janeiro de 2020).

[4] Timo Eskola, Messiah and the Throne: Jewish Markabah Mysticism and Early Exaltation Discourse.

[5] Samuel Zinner, The Gospel of Thomas in the Light of Early Jewish, Christian, and Islamic Esoteric Trajectories.

[6] Ibn Hisham, al-Sira al-Nabawiyya, https://bit.ly/2GisfWn (acesso em 24 de janeiro de 2020)

[7] Aaron Hughes, Muslim and Jew: Origin, Growth, Resentment, 15-40

[8] “Ibn Ishaq”, Encyclopedia Britannica, https://www.britannica.com/biography/Ibn-Ishaq (acesso em 24 de janeiro de 2020).

[9] Moshe Perlmann, The History of al-Tabari, Vol. 4, 123

[10] Qurtubi, Tafsir al-Qurtubi, http://quran.ksu.edu.sa/tafseer/qortobi/sura61-aya14.html (acesso em 24 de janeiro de 2020).

[11] Ahmad al-Ya`qubi, Tarikh al-Ya`qubi, 89.

[12] Al-Baghawi, Ma`alim al-Tanzil, Vol. 7, 12.

[13] Ibid, 12-14.

[14] Ibn al-Jawzi, Zad al-Masir fi `Ilm al-Tafsir, 1169.

[15] Ibid, 1169.

[16] Ibn Kathir, Tafsir Ibn Kathir, https://quran.ksu.edu.sa/tafseer/katheer/sura36-aya14.html#katheer (acesso em 24 de janeiro de 2020).

[17] Shawkani, Tafsir Fath al-Qadir, Vol. 2, 480.

[18] Ibn Asakir, Tarikh Medinat Dimishq, Vol. 15, 333.

[19] Ali b. Ibrahim al-Qummi, Tafsir al-Qummi, https://bit.ly/2RMHR9S (acesso em 24 de janeiro de 2020)

[20] Saduq, Thawab al-A`mal, https://bit.ly/2TUsVJz (acesso em 24 de janeiro de 2020).

[21] Ibn Qulawayh, Kamil al-Ziyarat, https://bit.ly/2O0OW5C (acesso em 24 de janeiro de 2020).

[22] Ahmad b. Hanbal, Musnad Ahmad b. Hanbal, Vol. 6, 232.

[23] Hurr al-Amili, al-Jawahir al-Sanniyya, https://bit.ly/3aMbzVh (acesso em 24 de janeiro de 2020).

Fonte: Muslim Perspectives on St. Paul | Berkeley Institute for Islamic Studies