A aliança Luso-Marroquina na Batalha de Alcácer Quibir
03/10/2020A Batalha de Alcácer Quibir, também conhecida como Batalha dos Três Reis, foi um conflito travado no Norte do Marrocos próximo da cidade de Ksar el-Kebir1 e de Larache no dia 4 de agosto de 1578.
Tudo começou quando Abu Abdallah Mohammed II pediu ajuda para o Rei de Portugal, Sebastião I, para recuperar seu trono que havia sido usurpado por Abd al-Malik I com a ajuda do Império Otomano dois anos antes da Batalha dos Três Reis.
Filho do sultão Mohammed Asheikh da dinastia saadiana2, Abd al-Malik tomaria o trono de seu sobrinho, Abdallah Mohammed II, que viria a fugir para fora do Marrocos e procurar refúgio com os portugueses. Em Portugal, Mohammed II irado e com sentimento de vingança procurou ajuda com o Rei Sebastião I, um monarca muito jovem, que na data da batalha de Alcácer Quibir tinha apenas 24 anos de idade.
Sebastião I era filho do príncipe de Portugal, Dom João Manuel (1539-1554). Também conhecido pelo apelido de “o Desejado”, o rei Sebastião assumiu o governo português em 1568 quando tinha somente 14 anos de idade. Entretanto, mesmo apesar de assumir o governo com 14 anos, Sebastião I já havia ascendido ao trono aos 3 anos de idade após a morte de seu avô, João III.3
Vale lembrar aqui o contexto da presença portuguesa no Marrocos, principalmente a do Rei Sebastião I, que será tratado agora para melhor contextualizar as relações de Portugal com o Marrocos.
No que diz respeito aos eventos mais importantes antes do conflito de Alcácer Quibir entre portugueses e marroquinos, é necessário recapitular a Reconquista Portuguesa da cidade de Faro em 1250 pelo rei Afonso III.
Durante o medievo, o Reino de Portugal estaria em constantes batalhas contra os reis Castelhanos enquanto explorava a África Ocidental e Norte da África. Nesse sentido, em 1415 os portugueses conquistaram Ceuta no Marrocos4. Mais tarde se estabeleceram no Açores e tentaram colonizar as Ilhas Canárias em 1424, onde encontrariam os povos Guanches, nativos das Ilhas e que viviam praticamente como se ainda estivessem na Idade da Pedra. Mais tarde o território das Ilhas Canárias cairia na mão dos espanhóis.
Pouco mais de uma década depois, Portugal atacaria o Sultanato do Marrocos em 1437 na tentativa de anexar a cidade de Tânger. Sob o governo de Afonso V, conhecido como “o Africano”5, Portugal viria a anexar várias terras marroquinas, como Tânger e Casablanca* entre os anos 1458-1476. Já no começo do século XVI várias construções foram erigidas na costa da Índia e África, como fortes, centros de comércio e até mesmo castelos, juntamente com a conquista de Goa por Afonso de Albuquerque (1453-1515) em 1510, estabelecendo assim o Império Português no Oceano Índico.
“Depois de 1442, o desenvolvimento do comércio de escravos ajudou, também, a financiar os custos das viagens portuguesas ao longo da costa ocidental africana. Os escravos provinham, originariamente, dos ataques aos acampamentos tuaregues do litoral sariano, e, posteriormente, às aldeias negras da região senegalesa. Estes ataques, dirigidos muitas vezes contra grupos de famílias desarmadas ou contra aldeias indefesas, eram descritos pelos cronistas da corte, como Gomes Eanes de Zuarara, como feitos de heroicidade cavaleirescas, comparáveis aos realizados nos campos de batalha europeus – e, de facto, eram assim considerados pela grande maioria dos contemporâneos. Numa determinada altura, os portugueses fizeram algumas investidas, para obter escravos, contra os Guanches Berberes das Canarias e foram acusados pelo papado de escravizar os que já se tinham convertido ao Cristianismo. Mas, depois de alguns anos de contacto com as populações negras da Sangâmbia e da Alta Guiné, os portugueses compreenderam que podiam obter escravos muito mais facilmente através da troca pacífica com os chefes e mercadores locais. Nunca faltaram, naquele tempo e mais tarde, africanos dispostos a vender os seus semelhantes.”
-BOXER, Charles. O Império Marítimo Português: 1415 – 1825. Edições 70, 2002.
Poucas décadas antes da batalha dos Três Reis, por volta das décadas de 1530 e 1540, os portugueses ajudaram os reis cristãos da Etiópia em suas batalhas contra o Império Otomano na África Oriental. Ainda nessa época podemos observar as campanhas portuguesas em direção ao Japão, tanto no que diz respeito aos navios mercantes enviados para negócios quanto expedições jesuítas em 1542 durante o período Sengoku.
Durante o período do rei Sebastião I, uma milícia armada e devidamente treinada foi estabelecida em Goa para lidar com a ameaça de revoltas no território ou até mesmo incursões muçulmanas vindo de fora entre 1566-1570. Vale lembrar que esses povos não aceitaram pacificamente a dominação portuguesa, principalmente no Marrocos, havendo resistência desde o início do domínio português na região.
Tendo o sonho de conquistar o Marrocos e o Norte da África, o jovem rei Sebastião era verdadeiramente obcecado em conseguir o feito que seus ancestrais no começo do século XVI não haviam logrado êxito.
A chance de Sebastião I apareceu em 1576 quando o sultão Abdallah Mohammed II foi destronado por seu tio Abd al-Malik, vindo em sua direção para pedir ajuda contra o parente usurpador. Mohammed II queria a ajuda dos reis de Espanha e Portugal, oferecendo inclusive território para Sebastião caso o ajudasse a retomar o poder do sultanato.
Vendo a oportunidade literalmente bater em sua porta, Sebastião passou a realizar os preparativos para suas expedições na África, tentando angariar apoio de seu tio, o Rei Filipe II de Espanha, entretanto sem sucesso. O rei Espanhol enviou somente 500 voluntários castelhanos desarmados; Espanha tinha suas próprias batalhas para travar.
A força militar enviada pelos portugueses era cerca de 15-20 mil homens saindo de Lisboa na primavera de 1578. Dentre os milhares de soldados enviados, cerca de 7-8 mil eram mercenários estrangeiros vindos dos locais mais distintos, como germânicos, castelhanos e italianos.
O exército de Sebastião I atracaria em Arzila no começo do mês de julho em 1578, onde permaneceria por praticamente um mês junto com seus aliados mouros. Enquanto isso, o sultão Abd al-Malik I reunia cada vez mais tropas, uma vez que o seu chamado para combater os portugueses e seus aliados havia se espalhado pela região.
As forças lideradas por Sebastião marchariam para o sul do Marrocos em direção à Ksar el-Kebir. Compondo o exército do rei português haviam cerca de 2.000 homens da elite portuguesa muito bem equipados militarmente, ou seja, pessoas que possuíam condições para se preparar melhor para guerra, procurando com isso mais prestígio em sua terra natal, honrarias, títulos e também buscando a glória para o Rei e seu Reino. Alguns quilômetros em diante o exército liderado pelo sultão Abd al-Malik I esperava as tropas inimigas junto com seu irmão, Ahmed al-Mansur.
Finalmente chega o fatídico momento em que os dois lados se encontrariam em campo de batalha. O sultão pretendia circundar o exército do rei Sebastião, contando inclusive com cerca de 10 mil cavaleiros e vários soldados mouros expulsos da Espanha, que nutriam certo rancor contra os cristãos ibéricos6
Durante a batalha, vários disparos de mosquetes e demais artilharias foram lançados de um lado para o outro. O mercenário e comandante Sir Thomas Skuteley, enviado pelo Papa devido ao caráter Cruzado da expedição portuguesa, foi morto ao ser atingido por uma bola de canhão logo no começo da batalha. Desta feita, os marroquinos do sultão al-Malik começaram a cercar as tropas portuguesas, resultando em um combate corpo-a-corpo.
Os portugueses começaram a ser flanqueados pelos marroquinos, eventualmente cedendo devido às investidas da cavalaria do sultão. Diante de tal situação desesperadora e também com a morte do comandante Skuteley, o exército de Sebastião foi logo vencido.
Na batalha que durou cerca de 4 horas de lutas violentas e intensas, no fim das contas resultou em uma acachapante derrota das forças portuguesas, sendo quase toda a nobreza de Portugal exterminada, uma vez que muitos nobres participaram da incursão ao Marrocos. Não somente, mas cerca de 8 mil homens do soldado de Abdallah Mohammed foram mortos, inclusive ele mesmo. Outros 15 mil foram capturados e vendidos como escravos, enquanto cerca de outros 100 conseguiram fugir em direção à costa marroquina.
Não foi somente Abdallah a morrer, mas o próprio sultão do Marrocos foi morto, sendo sucedido pelo seu irmão Ahmed al-Mansur que conseguiu sobreviver à batalha, e inalguraria posteriormente uma era de ouro da dinastia saadi. Não obstante, o rei Sebastião I com apenas 24 anos também foi morto no combate, porém seu corpo nunca foi encontrado, surgindo assim um movimento em Portugal conhecido por “Sebastianismo”, que acreditava que o Rei voltaria a qualquer momento para liderar a nação portuguesa para mais uma era de conquistas e glórias, uma vez que o mesmo não deixou herdeiros7. Diante do desaparecimento de Sebastião I, Portugal entraria em uma grave crise que que custou sua independência e de suas colonias, a incluir o Brasil, sendo o país dominado pelos espanhóis durante o período de 1580-1640, devido a falta de herdeiros diretos do falecido jovem rei.
Como pôde ser visto, o nome a Batalha dos Três Reis não é à toa, uma vez que os três monarcas vieram a falecer em combate: Abu Abdallah Mohammed II, que teve o sultanato usurpado; Abd al-Malik I, o “tio usurpador” e o Rei de Portugal, Sebastião I.
Notas:
[1] De onde deriva o nome Alcácer Quibir em sua versão portuguesa;
[2] Dinastia de origem árabe que governou o Marrocos nos anos 1549 até 1659;
[3] Foi durante seu reinado que a Inquisição Portuguesa teve seu efetivo começo em 1536 após a autorização do papa Paulo III;
[4] Hoje a cidade de Ceuta faz parte da Espanha, se situando próxima ao Estreito de Gibraltar;
[5] Seu apelido se deve às várias conquistas que realizou em território africano, sendo rei de Portugal e Algarves de 1438 até sua morte em 1481;
[6] Ver PETERS (2011);
[7] Fato curioso, existem teorias a respeito da vontade do Rei em não ter filhos. Dentre uma delas, se encontra a de que o mesmo teria sido abusado por um Jesuíta quando ainda muito novo, vindo a contrair alguma doença sexualmente transmissível, sendo talvez o motivo para o mesmo não querer se casar nem ter filhos. Para mais informações a respeito dessa teoria ver JOHNSON (2004). O mesmo autor também teria apresentado a hipótese de que o Rei na verdade era homossexual;
Bibliografia:
-PETERS, Ralph. Endless War: Middle-Eastern Islam Vs. Western Civilization. 2011;
-BOVILL, Edward William. The Battle of Alcazar. The Batchwork Press. 1921;
-JOHNSON, Harold B. A Pedophile in the Palace: or The Sexual Abuse of King Sebastian of Portugal (1554-1578) and its Consequences. University of Virginia. 2004;
-SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: Governo dos Reis Espanhóis (1580-1640). Editorial Verbo. 1977;
-Brasin Explor. Battle of Ksar El Kebir: The Battle of Three Kings, Morocco 1578;
-TUCKER, Spencer C. A Global Chronology of Conflict: From the Ancient World to the Modern Middle. 2009.