Em 13 de março de 624, em Badr (130km a sudoeste de Medina) ocorria a fatídica batalha que mudaria para sempre a história do Islã, e porque não do mundo? Em 624, o ano da batalha de Badr, o Islã tinha somente algumas centenas de convertidos, que diga-se de passagem haviam migrado de Meca para Medina no evento que ficou lembrado para sempre na história islâmica como Hijrah, que significa “migração”, e a comunidade era majoritariamente composta por homens desvalidos, ex-escravos, mulheres, e umas poucas crianças.

Assim, os convertidos eram liderados pelo Profeta Muhammad, que se sacrificava para espalhar a religião e estabelecer o monoteísmo islâmico na Arábia. Entretanto, após 12 anos de perseguições pacientemente suportadas em Meca, tanto ele quanto seus seguidores se transformaram em refugiados.

Não obstante, as perseguições ao Profeta do Islã já ocorriam antes da Hijrah, conforme citações de Ibn Ishaq e vários outros biógrafos de Muhammad. Dentre as humilhações e perseguições que podemos citar, há o episódio em que o Profeta voltou para casa coberto de esterco1, ou quando atiravam o útero ensanguentado de uma ovelha dentro de sua casa2, assim como outras humilhações do gênero3, até que finalmente tentaram o matar, ocasionando a Hijrah no ano de 622, sendo desde então essa data o começo do calendário islâmico.

Acontece que Meca era o centro comercial da época, fazendo parte também de uma das principais rotas das caravanas mercantes. Uma vez que Muhammad e Meca estavam agora em guerra, o Profeta do Islã decidiu após muita relutancia, realizar saques nas caravanas inimigas, realizando assim baixas no fluxo monetário dos mecanos, assim como forçando-os a mudar de rota, o que geraria vários contratempos.

Algumas pequenas incursões ocorreram contra as caravanas mecanos, entretanto a tensão haveria de aumentar tremendamente quando os habitantes de Meca organizaram uma caravana muito maior que as anteriores, e justamente esta, era a que voltava da Síria com o lucro e produtos advindo do confiscos dos bens dos muçulmanos que haviam migrado para Medina. Saquear essa caravana, alem de um reebolso de algo que foram tomado a força, poderia virar o jogo, dando assim vantagem para Muhammad e para os muçulmanos. Porém, à época parecia apenas mais outro ghazu4, sendo que muitos muçulmanos comprometidos com a religião optaram por permanecer em casa, como Uthman ibn Affan, que decidiu cuidar da esposa que estava doente5.

Abu Sufyan, que nos anos anteriores havia perseguido a comunidade e líder da caravana em questão, interrogando as pessoas pelo caminho que percorria logo ficou sabendo da emboscada de Muhammad e dos muçulmanos. Desta feita, a batalha ocorreu devido ao fato de os muçulmanos montarem uma emboscada contra uma caravana coraixita nos arredores de uma região conhecida como “Poços de Badr”. Porém, tendo sido avisados anteriormente dos planos do Profeta por um homem chamado Damdam, os habitantes de meca enviaram mil homens para proteger a caravana. Tendo a caravana sido salva pelos guerreiros de Meca, os mesmos acabaram confrontando os muçulmanos ao receberem a notícia de que a mesma havia chegado ao seu destino em segurança. Eis que a batalha de Badr inicia.

Por terem chegado primeiro ao campo de batalha, os muçulmanos conseguiram prepara-lo melhor. Os coraixitas sedentos após uma longa viagem pelo deserto foram correndo para os poços, e lá mesmo abatidos a flechadas tombando na água. Os cadáveres no sol apodreciam rápido, tornando as fontes imbebiveis para o resto do exército de Meca que se aproximava, e que agora perdia o impotante suprimento de água.

Com a chegada do resto do exército, a batalha ocorreu da maneira tradicional, ou seja, um guerreiro de cada lado se enfrentando. De um lado, os campeões do Islã Ali, Ubaydah e Hamza, e do outro al-Walid, Utbah e Shaybah, representando os pagãos de Meca. Após as tradicionais demonstrações de bravura, com os campeões muçulmanos matando o três adversários, as linhas de combate avançaram. Os mecanos atacaram os muçulmanos com rajadas de flechas, respondido da mesma maneira pelos seguidores de Muhammad, que por sua vez revidaram e conseguiram quebrar as linhas dos mecanos matando vários líderes importantes dos coraixitas. Outros duelos vieram a ocorrer, sendo a maior parte deles com os muçulmanos saindo vitoriosos, apesar de mal armados e em número inferior.

Cenas do filme “The Message” (1976) retratando a Batalha de Badr.

Ocorre que apesar de Muhammad comandar somente trezentos soldados contra mil guerreiros mecanos, uma desvantagem de três para um, os muçulmanos ainda conseguiram vencer a batalha, tendo somente quatorze baixas enquanto Meca perdeu quarenta e cinco combatentes (70, de acordo com outras fontes). Dentre as perdas dos mecanos encontrava o líder dos mil homens, Abu Jahl, que foi um dos coraixitas que mais antagonizou o Profeta durante sua vida, sendo também chamado de “o Faraó dos Muçulmanos” devido às perseguições e torturas encarniçadas realizadas contra os fiéis do Islã.

Tal vitória foi extremamente importante para os muçulmanos, uma vez que não só aumentou sua confiança, mas também fortaleceu a posição de Muhammad em Medina.

Conforme o professor Gregory S. Aldrete (2014, p.6), dois são os fatores que tornam uma batalha decisiva:

  • Primeiramente, quando uma força militar derrota a outra e resulta em uma transferência imediata de poder. Uma variante nesse sentido é quando a batalha resulta em total (ou quase) destruição das forças inimigas;
  • Segundo, talvez a maneira mais comum, é quando a batalha não parece ser tão decisiva no momento em que foi travada, mas sim sendo reconhecida posteriormente como um ponto de virada para um dos lados.

A batalha de Badr se encaixa melhor na segunda opção. Uma batalha decisiva é quando ocorrem mudanças políticas e sociais, afetando o presente e o futuro da população. Dessa forma, a batalha pode ter decisão política, estratégica ou operacional, contribuindo para uma campanha ou para alguma guerra6. No caso de Badr, a vitória foi decisiva no que diz respeito às questões sociais, políticas e religiosas do contexto da Península Arábica.

Até a vitória em Badr, a causa dos muçulmanos parecia sem esperança, sendo o próprio Profeta alvo de todas as formas de perseguição e até mesmo agressões físicas durante anos. Porém, após uma vitória tão significativa, Muhammad e seus companheiros seriam levados mais a sério. Aos olhos da Arábia, já não eram aquele grupo de monoteístas oprimidos que sofriam por anos todo tipo de desgraça sem sequer responder.

A Batalha de Badr no Alcorão

Nesse dia, centenas de homens lutaram na batalha de Badr, presumindo ser referida no próprio Alcorão Sagrado na surah de número 8, Os Espólios (Al Anfal), versículo 1.

Muito embora a já mencionada Surah faça alusão às contendas que surgiram na ummah (comunidade islâmica) por conta da partilha dos bens adquiridos na batalha, o mesmo versículo ainda diz que os muçulmanos devem temer a Deus e resolver de modo pacífico as suas querelas.

Após vencer a batalha, temos o relato de que setenta homens foram feitos prisioneiros. Porém quando os muçulmanos começaram a agrupar os mesmos para uma exeucção, conforme o antigo costume árabe, o Profeta interviu, e comandou que fossem tratados de maneira cordial. A esse respeito, vemos que a Surah 76:8 instrui os muçulmanos sobre como tratar os prisioneiros de guerra, insistindo para que os mesmos sejam alimentados e bem cuidados. Outra instancia ocorrida em Badr, foi que cada prisioneiro pagão alfabetizado que pudesse ensinar a um muçulmano analfabeto ler e escrever, teria sua liberdade.

No que diz respeito aos prisioneiros, é interessante notar o que William Muir, autor do século XIX, escreveu sobre o ocorrido:

Em obediência aos comandos de Muhammad, os cidadãos de Medina, e alguns dos Emigrantes que possuíam casas, receberam os prisioneiros e os trataram com muita consideração. “Bênçãos estejam sobre os homens de Medina!”, disse um desses prisioneiros dias mais tarde; “eles nos fizeram cavalgar, enquanto eles mesmos caminhavam; eles nos deram pão de soda7 para comer mesmo quando havia pouco, contentando-se com tamareiras. Não é mais surpreendente que quando, algum tempo depois, seus amigos vieram em seu resgate, vários dos prisioneiros declararam aderir ao Islã…O seu tratamento gentio foi, portanto, prolongado, deixando uma impressão favorável até nas mentes daqueles que não se converteram ao Islã.8

Um Exército Celeste

Na tradição teologica islâmica, tal batalha não foi travada somente por mortais, uma vez que os muçulmanos receberam auxílio direto de outros servos de Deus: os anjos. Muitos muçulmanos narraram ter visto naquele dia uma legião de anjos usando turbantes lutando ao seu lado. O Profeta Muhammad sabia a respeito dos anjos que vieram para auxiliar os verdadeiros fiéis, pois Allah assim disse no Alcorão Sagrado, Surah 8, versículo 9: “Reforçar-vos-ei com mil anjos, que vos chegarão paulatinamente.”

A presença dos anjos pôde ser sentida por todos naquele momento, sendo uma causa para o fortalecimento dos fiéis e o terror dos infiéis. Porém, tal presença foi visível (ou audível) somente para alguns, chegando a variar nos graus de intensidade. Exemplo é no momento da batalha, quando um dos fiéis perseguia um inimigo, e antes mesmo que pudesse alcança-lo, a cabeça do soldado mecano foi atingida por uma mão que não pôde ser vista, voando para fora de seu corpo.

Nesse dia, os muçulmanos souberam que estavam do lado certo, que Allah estava com eles e que se fossem tementes, até um exército de anjos viria ao seu socorro.

Notas

[1] Ver Muhammad ibn Ishaq, Sirat Rasul Allah 278, em A. Guillaume (org. e trad.), The Life of Muhammad (Londres, 1955), p. 191;

[2] Ibid;

[3] Isso sem mencionar as agressões físicas que Muhammad, seus familiares e seguidores sofreram por parte dos coraixitas;

[4] O mesmo que “raide”;

[5] Ver ARMSTRONG (2002, p. 193);

[6] Ver MARTIN (2011);

[7] Uma variedade de pães rápidos, as vezes conhecido também como “pão Irlandês”, a depender da receita;

[8] Ver MUIR (1861, vol. 3, p. 122)

Bibliografia:

LINGS, Martin. Muhammad. His Life Based on the Earliest Sources;

ARMSTRONG, Karen.Maomé. Uma Biografia do Profeta. Companhia das Letras. 2002;

COLE, Juan.Muhammad. Prophet of Peace Amid the Clash of Empires. 2018;

HODGSON, Marshall Goodwin Simms.The Venture of Islam. The University of Chicago Press. Volume 1;

W. Montgomery Watt. Muhammad at Mecca. Oxford: Clarendon, 1953;

MUIR, William. The Life of Mahomet (Volume 3 ed.). London: Smith, Elder and Co. p. 122. 1861;

ALDRETE, Gregory S. The Decisive Battles of History. The Great Courses. 2014;

MARTIN, John K. Islam’s First Arrow: The Battle of Badr as a Decisive Battle in Islamic History and its Significance Today. Air University. 2011.