Autor: Adam Ali

A revolta Zanj foi um grande levante de escravos contra o Califado Abássida que ocorreu nos pântanos do sul do Iraque (al-Bata’ih) e do sul do Irã (al-Ahwaz) durante o século IX. Entre os anos 869-883, escravos rebeldes derrotaram vários exércitos enviados contra eles pelas autoridades, criaram uma política independente e com uma capital própria, al-Mukhtara. Nas profundezas dos pântanos chegaram a cunhar suas próprias moedas, e no auge de seu poder expandiram seu território para abranger todo o sul e partes do centro do Iraque, saqueando grandes cidades como Basra e Wasit. Foi necessária uma campanha que durou vários anos e o comprometimento significativo de recursos militares e de soldados, para finalmente derrotá-los e acabar com a rebelião. Desde as guerras servis da era romana, não havia um levante de escravos contra uma potência imperial da magnitude que englobou o Iraque durante a rebelião Zanj.

A escravidão na maior parte do mundo islâmico diferia significativamente em relação à sua contraparte no Ocidente. A maioria dos escravos que entraram no califado se encontravam nos centros urbanos servindo nas famílias de mercadores, dignitários, nobres e governantes. Esses escravos cumpriam uma série de afazeres, incluindo tarefas domésticas (como cozinhar, limpar, buscar água etc.), forneciam mão de obra especializada (carpinteiros, ferreiros, joalheiros, etc.), trabalhavam como administradores e representantes nos negócios de seus senhores, dirigiam a administração do governo, serviam como soldados e guarda-costas, e também como concubinas nos haréns.

Às vezes, esses escravos ganhavam liberdade e se integravam às novas sociedades. Alguns foram emancipados, enquanto outros puderam comprar sua liberdade com o dinheiro que ganhavam com seu trabalho. Por exemplo, um escravo que trabalhava como ferreiro era obrigado a pagar ao seu senhor uma quantia fixa de dinheiro todas as semanas e qualquer excedente que ele ganhasse era o salário que ele usava para se manter e eventualmente comprar sua liberdade.

Uma cena de um manuscrito do século XII mostrando escravos no mundo árabe. BNF MS Arabe 5847 fol.105r.

A escravidão às vezes também era uma das poucas formas de mobilidade social ascendente no mundo islâmico medieval. Os escravos que serviam como soldados na comitiva de sultões e califas podiam subir na hierarquia para se tornarem generais, vizires e, em alguns casos, estabeleceram seus próprios reinos e impérios (por exemplo, o Império Gaznévida e o Sultanato Mameluco).

As concubinas também se destacavam se fossem do harém real. Khaizuran, concubina de al-Mahdi (o terceiro califa abássida), perdia apenas para o marido quando se tratava de riqueza e poder em todo o califado. Na verdade, seus filhos, al-Hadi e Harun al-Rashid, eram para ser sucessores do pai, apesar de ele ter uma esposa árabe nobre e que nasceu livre, lhe dando seus dois filhos mais velhos. No entanto, esses casos eram relativamente raros, considerando o grande número de escravos presentes no mundo muçulmano e essa mobilidade social só era possível para os poucos que eram escravos de um governante ou de um importante dignitário.

Havia uma relação interpessoal próxima entre o escravo e o senhor nessa forma de escravidão doméstica e, frequentemente, laços estreitos eram formados entre eles. Embora existam numerosos relatos de maus-tratos de escravos por seus senhores, geralmente era do interesse do mestre tratar bem seus escravos, ou pelo menos relativamente bem, e que os escravos servissem a seu mestre e fossem leais. Dessa forma, ambas as partes se beneficiaram. Na verdade, o Qabus Nameh (uma obra persa do século XI no gênero de literatura de conselho ou espelho para príncipes) aconselha o proprietário de escravos a vender seu escravo se ele não se dar bem com ele, ao invés de puni-lo severamente. Esse foi especialmente o caso dos escravos militares, que foram as elites sócio-militares do mundo islâmico por um milênio entre os séculos IX e XIX. Não é preciso pensar muito sobre o resultado de maltratar ou abusar desses escravos que formavam as elites dos militares do mundo muçulmano. Se se sentissem ameaçados ou ofendidos por seu senhor, os escravos militares o matavam e procuravam um novo senhor ou formavam seu próprio regime político. Mardavij ibn Ziyar (o condotiero iraniano do norte e fundador da Dinastia Ziyárida), Ahmad Ibn Ismail (o governante do vasto Império Samânida), Turanshah (o último sultão aiúbida do Egito) e al-Mutawakkil (o décimo califa abássida) foram todos assassinados por seus soldados escravos a quem eles maltrataram, insultaram ou ameaçaram. Apesar da escravidão doméstica ser a forma mais proeminente de escravidão no mundo islâmico, a escravidão na chamada plantação [plantation], semelhante à prática nas Américas durante os séculos XVI e XIX, também era praticada durante o século IX no sul do Iraque. Como veremos a seguir, os escravos nessas plantações foram tratados de maneira muito diferente de alguns dos casos descritos acima.

Os Pântanos

A geografia do sul do Iraque é dominada pelos rios Tigre e Eufrates e vastos pântanos que surgem após as frequentes enchentes desses rios. Esta paisagem era dominada por um terreno pantanoso e lamacento coberto com ramos de juncos (muitas vezes com vários metros de altura) e canais largos, mas rasos. Esses canais só podiam ser navegados com barcos de fundo plano, tornando esta região muito inacessível.

Os habitantes dos pântanos viviam principalmente como agricultores. Eles cultivavam pequenos lotes de terra para arroz, cevada, lentilha, painço, sorgo, melão, melancia e cebola. Eles também criavam búfalos, ovelhas e vacas e suplementavam suas dietas com os abundantes peixes das águas da região e também com os vários tipos de aves aquáticas, como gaivotas, patos selvagens e gansos. Havia também animais maiores e mais perigosos, como javalis, leopardos, chacais, lobos, leões, linces e gatos selvagens que habitavam este ecossistema pantanoso. Mas talvez o maior flagelo para os habitantes, e mais ainda para os forasteiros, eram os enxames de mosquitos, pernilongos, moscas e outros insetos que transmitiam doenças como a malária.

Árabes do pântano em um tradicional mashoof nos pântanos do sul do Iraque. Foto de Hassan Janali, Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA.

Devido ao terreno inóspito, às duras condições de vida, aos insetos e às doenças, a população da região entrou em declínio, especialmente após as conquistas islâmicas do século VII e o estabelecimento de grandes centros urbanos no Iraque como Basra, Kufa , Wasit e Bagdá. Muitos dos habitantes dos pântanos migraram para essas cidades, que haviam se tornado centros econômicos e intelectuais em expansão no século IX, na esperança de encontrar trabalho e uma vida melhor.

Os pântanos se tornaram terras mortas e abandonadas devido ao êxodo em massa de seus habitantes para as cidades. Os abássidas tiveram interesse em recuperar esta área e torná-la adequada para a agricultura. A lei de propriedade rural estabelecia que tudo o que se tinha que fazer para reivindicar a propriedade de uma parte desses pântanos era, mais uma vez, tornar a terra agrícola viável. Essas áreas tornaram-se terras “mortas” porque camadas de natrão foram depositadas sobre a camada superficial do solo devido às frequentes inundações dos rios da região. Essas camadas de natrão tiveram que ser removidas para recuperar essas terras e torná-las viáveis ​​do ponto de vista agrícola. Magnatas e mercadores ricos, especialmente na cidade de Basra, ao sul, tinham o capital e o apoio político dos califas para reivindicar essas terras, limpá-las e cultivá-las usando mão de obra servil.

Um grande número de africanos, principalmente de língua Bantu da costa leste da África e de Zanzibar, foram comprados ou capturados e transportados para o sul do Iraque como a principal fonte de mão de obra que foi usada para recuperar e cultivar as regiões pantanosas. Esses escravos eram aqueles a quem as fontes se referem como os Zanj. Os Zanj viviam e trabalhavam em condições deploráveis. Eles não tinham contato direto com seus mestres, que viviam nos grandes centros urbanos do Iraque. O contato com a autoridade era feito por meio de seus capatazes, que geralmente eram muito rudes e cruéis com os escravos. O trabalho deles era árduo, raspando a camada de natrão da superfície do solo e transportando-a nas costas ou usando mulas e empilhando-a em montes gigantes para preparar a terra para o cultivo. Junto com os escravos negros, camponeses locais que permaneceram nos pântanos também foram recrutados para essa tarefa. Esses trabalhadores servis foram agrupados em acampamentos lotados de 500 a 5.000 indivíduos. Além do trabalho árduo e do tratamento cruel dos capatazes, os Zanj eram desprovidos das necessidades mais básicas de vida. Eles recebiam pouca ou nenhuma roupa, seus abrigos eram apertados e pouco faziam para protegê-los dos elementos ou dos insetos que os picavam, e eles mal recebiam comida suficiente para sobreviver. Essa forma de escravidão difere muito da escravidão doméstica descrita anteriormente. Alexandre Popovic, autor de um dos poucos estudos acadêmicos sobre essa revolta, resume: “A situação é um tanto mais gritante, já que a escravidão nos países islâmicos da Idade Média (ao contrário da escravidão em Roma e na época de Espártaco) era essencialmente servidão doméstica e não era muito empregade em grandes projetos rurais. As condições em que viviam os escravos Zanj eram inquestionavelmente incomuns para a sociedade muçulmana medieval”.

As terríveis condições de vida e a crueldade dos feitores definitivamente causaram muito descontentamento e rebeldia entre os Zanj. No entanto, foi a religião de seus mestres que os levou ao limite. Por meio de seus contatos com muçulmanos no Iraque, muitos dos escravos começaram a aprender sobre o Islã e se converteram à religião. Alguns dos primeiros adeptos do Islã e do profeta Muhammad foram os escravos e oprimidos da sociedade de Meca devido à promessa de justiça, igualdade e fraternidade para todos os que abraçarem a religião. Na verdade, uma das primeiras seitas do Islã, o kharijismo, ensinava que até o mais humilde dos escravos poderia se tornar o líder de sua comunidade com base em sua piedade e mérito. Além disso, o primo do Profeta, Ali ibn Abi Talib, também defendeu a causa dos oprimidos e durante a Primeira Guerra Civil (656-661) havia 8.000 escravos e libertos em seu exército de 60.000. Apesar da conversão de milhares de Zanj ao Islã, suas condições não melhoraram. Sua raiva e descontentamento com a injustiça feita a eles e a hipocrisia dos governantes e elites do califado aumentaram.

Mapa do Iraque e al-Ahwaz na época da revolta Zanj – imagem por Ro4444 / Wikimedia Commons

A grande revolta Zanj que eclodiu em 869 foi precedida por dois levantes menores na região. Houve uma insurreição em 689-690. Esta não foi uma rebelião organizada, envolvendo grupos de escravos furiosos que pilharam e saquearam tudo o que puderam colocar as mãos. Eles foram facilmente derrotados por um exército enviado de Basra. Os Zanj que não morreram na luta foram decapitados posteriormente e seus corpos expostos para servir de exemplo para os demais. A segunda revolta ocorreu em 694 e parece ter sido um pouco mais organizada. Tinha um líder, Shir Zanj (o leão dos Zanj), e foram necessárias duas expedições para derrotá-lo.

Esta segunda revolta foi mais perigosa porque os Zanj parecem ter sido incitados pela propaganda e foram organizados até certo ponto, o que lhes permitiu derrotar a primeira expedição enviada contra eles. O aparato opressor dos governantes e senhores de escravos parece ter se intensificado a partir desse ponto, porque por dois séculos as fontes não falam nada sobre as atividades políticas ou militares dos Zanj. Não até a chegada de Ali ibn Muhammad, uma figura misteriosa que conseguiu unir os Zanj e os outros elementos oprimidos da sociedade do Sul do Iraque, e dos pântanos os Zanj se levantaram novamente, desta vez conseguindo estabelecer uma política independente constituída principalmente por ex-escravos e trabalhadores contratados, constituindo uma ameaça significativa à estabilidade e economia do califado.

O líder

Ali ibn Muhammad é uma figura obscura que apareceu repentinamente no cenário mundial. O historiador al-Tabari afirma que Ali disse que seu ancestral foi Muhammad ibn Hakim de Kufa. Este ancestral havia participado da revolta xiita de Zayd ibn Ali contra os omíadas em 740. Quando a revolta foi derrotada, ele fugiu para Rayy (perto da atual Teerã, no Irã) e fixou residência lá. O avô paterno de Ali voltou para o Iraque e comprou uma concubina de Sind (parte do Paquistão moderno), que lhe deu um filho, Muhammad, que era o pai de Ali. Ele se associou a alguns dos cortesãos do califa abássida al-Muntasir, e ganhava a vida por meio deles, elogiando-os em versos poéticos.

Em 863 mudou-se para o Bahrein, que no século IX abrangia uma grande região do que é a Arábia Oriental. Lá, Ali ibn Muhammad reivindicou uma genealogia que regressava até Ali ibn Abi Talib, o primo do Profeta Muhammad e um dos reverenciados imames do Islã xiita. Ele imediatamente atraiu um grande número de seguidores entre as tribos da região, que o consideravam um profeta. Os impostos eram cobrados em seu nome e ele os governava como profeta, juiz e rei. Ele alegou que um dos sinais de sua liderança divina era que versículos do Alcorão que ele nunca tinha lido antes foram revelados a ele e que ele podia recitá-los de memória, apesar de nunca ter visto ou ouvido antes. Ele e seus seguidores lutaram contra as forças do governo Abássida e tribos rivais do deserto. Ele perdeu uma dessas batalhas em que muitos de seus seguidores foram mortos. Com a derrota, ele perdeu seu carisma e credibilidade aos olhos das tribos árabes, muitas das quais o abandonaram.

Ali ibn Muhammad, tendo fracassado no Bahrein e cansado do deserto, partiu para Basra com alguns de seus associados mais leais. Na época, houve alguns distúrbios civis em Basra devido a um conflito entre duas grandes facções tribais. O objetivo de Ali era explorar o caos e ganhar o apoio de um desses grupos. No entanto, ninguém respondeu ao seu apelo e os seus representantes foram dispersos pelos soldados do governante local. Depois que alguns de seus companheiros foram presos, Ali fugiu de Basra apenas para ser capturado e preso em Wasit. No entanto, ele conseguiu sair da prisão, uma prova de seu carisma e habilidade oratória, e foi para Bagdá. Em Bagdá, ele reuniu mais apoiadores antes de seguir para o sul, para Basra novamente. Ele não entrou na cidade com medo de ser preso e foi nas regiões agrícolas periféricas de Basra, onde viu os Zanj e suas péssimas condições de vida.

Ali e seu grupo de apoiadores montaram acampamento nos pântanos e começaram a libertar os escravos. Inicialmente, eles emboscaram pequenos grupos de 20-50 escravos que eram pouco vigiados enquanto iam para o trabalho, mataram ou capturaram os capatazes e libertaram os escravos. Em pouco tempo, Ali já tinha um número considerável de seguidores Zanj que havia libertado. Ele os havia convencido de que era a pessoa certa para liderá-los. Ele jurou a eles que seria justo e leal com eles, que os trataria com dignidade e que nunca os trairia. Ele também prometeu que lhes concederia riquezas e propriedades, incluindo escravos. É importante notar aqui que as revoltas de escravos, como a Rebelião Zanj ou o levante liderado por Espártaco contra os romanos, não pretendiam abolir a instituição da escravidão, mas antes tirar os rebeldes de sua condição de escravos. Além disso, em uma irônica inversão de papéis, os Zanj receberam chicotes para espancar os capatazes e senhores de escravos capturados durante os ataques de Ali.

Uma cena do século XVI de persas lutando contra africanos – Mogol, Índia, c. 1580-1585. British Library. Darabname Ou. 4615, f. 29b.

À medida que as fileiras de seu exército aumentavam, Ali ibn Muhammad lançou ataques contra as cidades e vilarejos nas proximidades dos pântanos. Ele habilmente selecionou verde e vermelho para serem as cores de sua bandeira. Verde sempre foi a cor dos xiitas, reforçando sua afirmação de que era descendente do primo do profeta. O vermelho, por outro lado, era a cor da seita kharijita e reforçava o caráter igualitário de seu movimento, que prometia igualdade e dignidade a seus apoiadores. Inicialmente, os rebeldes estavam muito mal equipados para a guerra. Al-Tabari afirma que havia apenas três espadas em todo o exército no início da revolta. A maioria dos escravos Zanj libertos usava varas, implementos agrícolas e qualquer outra coisa em que pudessem usar para lutar. Existem exemplos nas fontes de Zanjes usando bandejas e trombetas para golpear os soldados enviados contra eles.

A batalha das barcaças

Inicialmente, o califa e seu círculo mais próximo não levaram a sério a revolta Zanj. Na verdade, o assunto foi relegado ao governador local e aos magnatas de Basra. Nesse ponto, o califado estava lidando com ameaças em várias frentes. No Egito, o governador Ahmad ibn Tulun se separou e proclamou sua independência, um ato que arrancaria o Egito e partes da Síria do controle abássida por várias décadas. Ao mesmo tempo, os Safáridas no Sistão e no Khurasan estavam desafiando diretamente a autoridade abássida e se expandindo em direção ao oeste do Irã e do Iraque em um ritmo alarmante. Devido a esses desafios, que foram considerados mais importantes do que um grupo de escravos arrivistas, os abássidas inicialmente não prestaram muita atenção nos Zanj.

Ali ibn Muhammad e seu exército Zanj, ao qual também se juntaram os camponeses locais, obtiveram uma série de vitórias contra as forças do governador e os mercenários contratados para suprimi-los. Eles usaram com sucesso a geografia dos pântanos a seu favor, atraindo seus inimigos para armadilhas e emboscadas. A cada vitória, os Zanj adquiriam armas, barcos, suprimentos de grande necessidade para o exército e objetos de valor. Os rebeldes foram implacáveis ​​com os soldados enviados para suprimi-los e lançá-los novamente nas algemas da escravidão e decapitar os prisioneiros que caíssem em suas mãos.

Um bom exemplo das táticas Zanj pode ser visto na primeira grande batalha que eles travaram contra os enviados de Basra. Na Batalha das Barcaças, dois meses depois do início da rebelião em 869, os rebeldes, que fizeram um ataque prematuro a Basra e foram forçados a recuar, armaram uma emboscada para o exército perseguidor de Basra, composto de voluntários. Os enviados avançaram ao longo de um canal e foram recebidos por um destacamento do exército Zanj, que havia sido dividido em três partes. As outras duas seções das forças Zanj estavam escondidas nos juncos ao longo das margens do canal e permitiram que as tropas inimigas passassem, os atacando apenas quando eles tivessem enfrentado as forças Zanj em sua frente. O resultado foi uma vitória esmagadora dos Zanj e a aniquilação quase completa do exército de Basra.

A vitória Zanj na Batalha das Barcaças chamou a atenção dos Abbásidas. Eles enviaram um destacamento de tropas turcas para lidar com os Zanj. No entanto, essas tropas não fizeram muito progresso porque, apesar de serem excelentes soldados e cavaleiros, os turcos tinham dificuldade em transpor o terreno pantanoso. Após uma ousada invasão noturna em seu acampamento, essas tropas de elite do governo também foram expulsas dos pântanos e forçadas a fazer uma retirada tática para Basra.

Nos dois anos seguintes, os Zanj derrotaram outro exército enviado contra eles e, em 870, bloquearam Basra com sucesso. Após um ano de bloqueio, a cidade caiu nas mãos dos Zanj, que praticaram uma terrível vingança contra seus habitantes, a quem culparam pelas injustiças e crueldades que sofreram. Homens ricos foram torturados para revelar a localização de suas riquezas ocultas e para o horror do povo do califado, mulheres e crianças foram levadas para se tornarem escravas dos Zanj em sua nova capital nos pântanos, al-Mukhtara. De acordo com al-Mas’udi, que viveu algumas décadas após o fim da revolta, 300.000 habitantes de Basra foram massacrados após a queda da cidade. No entanto, esse número parece bastante alto e a maioria dos estudiosos concorda que cerca de 10.000-20.000 dos habitantes de Basra foram mortos durante o saque de Basra. A queda e a pilhagem de Basra foram um golpe tão sério para os abássidas que o próprio irmão do califa, al-Muwaffaq, liderou pessoalmente um exército para lutar contra os Zanj. Após alguns sucessos iniciais, suas forças foram derrotadas em batalha e ele foi forçado a se retirar devido à doença, falta de suprimentos e ataques constantes lançados pelos rebeldes.

Em um manuscrito Furūsiyya, a imagem de um guerreiro montado.

Nos anos seguintes, os rebeldes tomaram a ofensiva. Eles derrotaram todos os exércitos enviados contra eles e sofreram poucos reveses. Em 879, o território controlado pelos rebeldes atingiu sua extensão máxima. Consistia na maior parte do sul do Iraque e Ahwaz, incluindo as principais cidades da região, como Rumhurmuz, Ubulla e Wasit. Seu sucesso foi tão grande que neste ano eles conseguiram avançar para menos de 80 quilômetros de Bagdá.

A queda dos Zanj

O governo abássida tomou a iniciativa mais uma vez no final de 879. Al-Muwaffaq e seu filho, o futuro califa al-Mu’tadid, lideraram um grande e bem equipado exército contra os Zanj. Em todas as frentes, eles empurraram os rebeldes de volta aos pântanos, de modo que em 881 eles os contiveram dentro e ao redor de sua capital, al-Mukhtara. Al-Mukhtara cairia depois de dois anos. Os Zanj opuseram uma forte resistência fazendo as forças abássidas pagarem caro por cada passo que avançaram em sua capital enquanto lutavam contra o inimigo no ambiente inóspito dos pântanos. Embora a vitória parecesse inevitável neste ponto, al-Muwaffaq percebeu que a força por si só não levaria a revolta a um fim rápido o suficiente. Para terminar a luta mais rapidamente e acabar com os custos da campanha, tanto em vidas quanto em recursos, ele ofereceu anistia e um lugar em seu exército a qualquer um dos rebeldes dispostos a desertar para o seu lado. Ao dar aos rebeldes essa escolha, al-Muwaffaq também ganhou um novo contingente valioso de soldados que eram muito hábeis na luta nos pântanos e cuja assistência foi fundamental para desferir um golpe mortal em Ali ibn Muhammad e aqueles entre os rebeldes que permaneceram leais a ele.

Em agosto de 883, al-Mukhtara caiu nas mãos dos abássidas. Ali ibn Muhammad morreu em batalha enquanto ele e seus leais apoiadores eram cercados e abatidos. Sua cabeça foi erguida em uma lança e exibida para que todos pudessem ver, especialmente aqueles Zanj que continuaram resistindo aos abássidas. Após este ponto, milhares de Zanj fluíram para o acampamento Abássida. Al-Muwaffaq concedeu a todos eles anistia devido ao seu grande número, suas proezas, e também porque ele percebeu que se ele os punisse, outros elementos do exército Zanj ainda soltos nos pântanos continuariam a lutar e seriam uma ameaça para o califado.

Embora a rebelião tenha sido finalmente esmagada após quase 15 anos de luta, suas consequências iriam assombrar os abássidas até a queda de seu califado em 1258. A luta e a pilhagem que ocorreram durante este conflito devastaram enormemente as terras agrícolas do sul do Iraque, o que resultou em uma grande diminuição nas receitas que iam para o tesouro real. A revolta também interrompeu as atividades econômicas na região e, combinada com a diminuição da agricultura, algumas regiões foram atingidas por graves escassezes de alimentos e consigo a fome. Esse declínio nas receitas enfraqueceu enormemente os califas e sua esfera de poder continuou a encolher até que eles passaram a exercer autoridade política direta somente sobre Bagdá e suas vizinhanças próximas. Na verdade, os recursos e mão de obra que tiveram que ser alocados contra os Zanj resultaram na perda do controle abássida sobre partes significativas do califado.

A perda de vidas também foi grande, com fontes relatando o número de mortos em qualquer quantia entre 500.000-2.500.000. Como na maioria desses casos, as fontes tendem a ser tendenciosas e imprecisas quando se trata de números. No entanto, considerando a duração da revolta e o estado quase constante de combates e ataques que ocorreram durante os anos 869-883, não seria exagero estimar o número de mortos em dezenas ou mesmo centenas de milhares.

Outra consequência importante da revolta Zanj foi que nunca mais veríamos a implementação da escravidão em massa nas plantações agrícolas em grande escala no mundo muçulmano após o fracasso dessa experiência no sul do Iraque. Embora a revolta de Zanj tenha sido um episódio muito destrutivo e violento na história do califado abássida, ela destaca a luta de um grupo de pessoas dos escalões mais baixos, pobres e injustamente tratados de uma sociedade contra um dos impérios mais poderosos daquele era. Apesar das probabilidades estarem contra eles, esses escravos rebeldes e seu líder carismático foram capazes de estabelecer e manter uma política nos pântanos enquanto sob constante ataque por uma década e meia, o que não era pouca coisa.

REFERÊNCIAS

Popovic, Alexandre. The Revolt of the African Slaves in Iraq in the 3rd/9th Century (Markus Wiener, 1999)

Al-Ṭabarī. The History of al-Ṭabarī = Tārīkh al-Rusul wa al-Mulūk. 40 vols. (State University of New York Press, 1985-?. Vol 36.)

Talhami, Ghada Hashem. “The Zanj Rebellion Reconsidered.” The International Journal of African Historical Studies, Vol. 10, No. 3 (1977), pp.443-461.

 

Fonte: Medievalists.net