Como Al-Ušbūna virou Lisboa: A história da capital portuguesa entre mouros e cristãos
Autor: Luís Felipe Pontes, professor de História e de Língua e Cultura Portuguesa, investigador em História Antiga e Medieval 18/08/2022Lisboa: o castelo de São Jorge. [Foto: Município de Lisboa]
“Porém, já era a décima hora, com a maré baixa, os nossos reúnem-se na praia para levar a máquina a quatro pés das paredes e assim lançar uma ponte com mais facilidade. Para defender esta seção da muralha, vêm os mouros, de todas as partes. Quando vêm, porém, a ponte já havia levantado alguns côvados e os nossos, a ponto de entrar, como se a vida nem fosse deixada para os vencidos, falam alto e, à nossa vista, depõem as armas, baixam as armas e pedem trégua, pelo menos até ao dia seguinte.”
‘A Conquista de Lisboa aos Mouros’. Relato de um Cruzado. Tradução e edição bilíngue latim-português por Aires do Nascimento, Lisboa, Veja, 2001.
Esta passagem da carta que um cruzado inglês escreveu ao bispo de sua diocese sobre as ‘aventuras’ do cerco e conquista de Lisboa pelos portugueses e seus aliados na ocasião, em 1147, relata o momento exato da rendição dos defensores da cidade, em 21 de outubro daquele ano, que era uma terça-feira. A entrada dos vencedores na cidade e a sua entrega a Afonso Henriques, Rei de Portugal (Alfonso I de Portugal), ocorreu no sábado seguinte, no dia 25.
O cerco de Lisboa começou no dia 1 de julho e durou quase 4 meses; pontilhada de batalhas, episódios quase-lendários ou considerados milagrosos, feitos de armas e cavalaria, e também, como sempre acontece na guerra, episódios de crueldade e miséria humana. A ideia de “milagre” difundiu-se imediatamente após a conquista da cidade, nomeadamente, por exemplo, com os milagres atribuídos ao cruzado germânico Henrique de Bona, que morreu na conquista e foi sepultado na igreja de São Vicente e que realizou curas milagrosas em prol de alguns antigos companheiros-de-armas, desde pouco depois da queda da cidade do Tejo.
Neste pequeno artigo veremos o contexto em que se deu a campanha militar que conquistou Lisboa, tanto do lado cristão como do lado muçulmano. O objetivo deste texto é fornecer uma visão geral do panorama global em ‘Garb al-Andalus’, a Hispânia muçulmana ocidental, em meados do século XII.
“A Conquista de Lisboa”. Ilustração de Roque Gameiro (1864-1935) em “Quadros da História de Portugal”, obra de Chagas Franco e João Soares, ed. Papelaria Guedes, Lisboa, 1917.
Al-Ušbūna, uma cidade do “Garb”: o contexto andaluzo
- O pano de fundo histórico:
Em 1147, Lisboa era uma cidade do al-Andalus, a Hispânia muçulmana, há mais de quatrocentos anos. Hoje é uma dasmais antigas capitais europeias, desde que a cidade foi fundada, tudo indica, pelo menos por volta do ano 1200 aC, quando os fenícios a visitaram, segundo os achados arqueológicos na zona do castelo de São Jorge e da catedral. Desde aqueles tempos longínquos, a região foi uma escala natural para as rotas marítimas entre o Mediterrâneo e o Mar do Norte, e sabe-se agora que é muito provável que existisse uma colónia comercial fenícia chamada “Alis Ubbo”, que significa "porto seguro" na língua fenícia. Também é verdade que os gregos tiveram um estabelecimento comercial durante algum tempo no estuário do Tejo, mas foi abandonado após o crescimento do poder de Cartago, também uma antiga fundação fenícia, com a qual Alis Ubbo teria relações mais diretamente, passando de simples ponto de troca ou feitoria a um importante mercado regional. A estes visitantes "estrangeiros" devemos, obviamente, acrescentar também os elementos nativos, os ibéricos, e os novos visitantes que vieram mais tarde, os celtas, que deram origem às tribos de língua céltica que viviam no atual sul de Portugal, como os Conios e os Cempos.
Os romanos chamavam a cidade de “Olisipo” e, como sabemos, entraram na Península Ibérica no contexto da Segunda Guerra Púnica, tentando saquear os cartagineses das suas ricas possessões hispânicas, que tinham sido a base monetária e militar da poderosa família dos Bárcidas, os principais instigadores da guerra contra Roma. Sabemos também que Olisipos tinha então uma sociedade cosmopolita que manteve durante muitos séculos, integrando elementos gregos, fenícios/cartagineses, celtas e ibéricos.
Durante as campanhas romanas na Península, a cidade parece ter feito uma aliança com a República de Roma, na qual se integrou a partir de 138 a.C., chegando mesmo a enviar homens para combater as tribos celtas do noroeste da península ao lado das legiões do cônsul romano Décimo Junius Brutus “Callaicus”. Rebatizada mais tarde por Augusto com o nome de Felicitas Julia Olisipo, pertencia à província romana da Lusitânia, cuja capital era, como sabemos, Emerita Augusta, a atual Mérida.
No período de declínio do Império Romano do Ocidente, a região de Lisboa foi controlada pelos alanos e vândalos entre 409 e 429, sendo posteriormente disputada pelos suevos e visigodos até a queda do Reino Suevo em 585. Após a invasão muçulmana do Reino Visigótico a partir do ano 711 sob o comando do berbere Tariq ibn Ziyad, Lisboa foi integrada no mundo islâmico de 712-713.
– Lisboa en al-Andalus:
No oeste da Península, o Garb al-Andalus (Garb = Oeste), os principais centros da rede urbana permaneceram, podemos dizer, praticamente os mesmos que eram durante a época romana e início da Alta Idade Média. O mesmo pode-se dizer da rede de estradas, entre as quais a antiga estrada romana que ligava Lisboa a Braga, cidade a norte do Rio D’Ouro que desde finais do século III era a capital da província romana da Gallaecia. É verdade, todavia, que algumas cidades perderam alguma ou muita importância após a chegada das forças do Islã, como foi o caso da Egitânia (“Idanha-a-Velha”, centro do bispado e que hoje tem um belo museu epigráfico ) ou Conimbriga (outro sítio arqueológico muito importante, atualmente no município de Condeixa-a-Nova), mas o mesmo não aconteceu com a grande maioria. Assim, Aeminium, tornou-se Qulumriyya, que se tornou Coimbra (que herdou muitas das funções e relevância da vizinha Conimbriga desde o século V), seguindo o exemplo, Viseum > Viseu, Scalabis > Aš-Šantarīn > Santarém, Felicitas Julia Olisipo > Al-Ušbūna > Lisboa, Salacia > Qaşr Abī Dānis > Alcácer do Sal, Ebora > Yābura > Évora, Pax Julia > Bāya > Beja, continuaram a existir como centros urbanos de alguma importância, evidentemente considerando o contexto da Alta Idade Média (ou seja, eram sobretudo povoados episcopais para o em grande parte) dependendo, é claro, de suas funções e sua localização dentro do al-Andalus ao longo da história da Hispânia muçulmana.
Olisipo, agora denominada Al-Ushbūna, desenvolve-se juntamente com as suas funções comerciais e agrícolas; as zonas em redor da cidade produzem várias culturas cada vez mais produtivas, desde cereais e vários vegetais a uma variedade de frutas, existindo também uma antiga tradição de pesca desde as águas do longo estuário do Tejo (o “mar de palha”) até as mais frias águas do Atlântico. Após a conquista cristã definitiva em 1147, esta vertente agrícola continuou, deixando o cultivo da terra e o abastecimento da cidade em grande parte nas mãos dos muçulmanos que agora viviam sob domínio cristão, os [assim chamados] mudéjares, pelo menos durante os primeiros tempos da Lisboa portuguesa. A cidade integra perfeitamente o mundo islâmico também no planejamento urbano, com o aglomerado de casas ao redor da mesquita e sob a alcazaba, o palácio do governador, nas ruas estreitas e sinuosas da medina.
O bairro que hoje conhecemos com o nome de Alfama teve a sua origem nessa altura, aumentando o antigo núcleo urbano; a mesquita substituiu uma primitiva basílica cristã que havia sido sede do bispado no início da Alta Idade Média e que, por sua vez, foi construída sobre um edifício religioso da época imperial romana. É atualmente onde se encontra a Sé de Lisboa, um edifício românico imponente, robusto e fortificado. A alcazaba, com funções administrativas e militares, dominava a paisagem da cidade, e isso pode ser visto na ilustração acima que representa a conquista de Lisboa pelos portugueses e cruzados: é o atual castelo de São Jorge, na colina mais alta da cidade.
Deve ser dito que a área de construções na paisagem urbana dos governos durante o período muçulmano tem continuidade com a antiga fisionomia de Lisboa. Nestas áreas estiveram (e estão escavadas) as estruturas mais importantes da Lisboa romana, como o fórum ou o teatro. A relação da cidade com o Tejotambém continuou, com ruas e pórticos que conduzem ao porto fluvial. A nível defensivo, as antigas fortificações da época romana (do final do período imperial) foram preservadas e reforçadas (é a “Cerca Velha”, também por vezes chamada “Cerca Moura”), e só seriam substituídas/aumentadas em no século XIV sob o reinado de Fernando I (1367-1383). Foram então as antigas muralhas e as suas doze portas que testemunharam e sustentaram o cerco final de 1147 durante quase quatro meses.
Sabemos que Lisboa foi saqueada uma vez em 796 por Afonso II das Astúrias e por Ordoño II em meados do século IX. A fronteira entre as potências cristã e muçulmana ainda continuava no Vale do D’Ouro naquela época. Também sabemos que os vikings atacaram e conquistaram a cidade em 844, permanecendo ali por cerca de treze dias, e outro ataque viking ocorreu em 966, mas sem sucesso naquela ocasião.
Após a desintegração do Califado de Córdoba nas primeiras décadas do século XI, algumas cidades do Garb foram também capitais de pequenos e efêmeros reinos de Taifa, como aconteceu precisamente, ou assim parece, em Lisboa em 1022. Mas no Garb, a taifa do reino mais conhecida foi a de Shilb (Silves) no actual Algarve português, que teve um período de brilhante esplendor cultural, antes da sua integração na taifa de Sevilha. Porque os poderes mais relevantes no oeste de al-Andalus após a queda do poder central de Córdoba foram os reinos de Badajoz com [a dinastia] dos Aftasídas e Sevilha com sua dinastia Abadís. Outro reino-taifa no atual Algarve foi o de Faro entre 1026 e 1052 sob os Banu Harun.
Como aconteceu em outras partes da Península Ibérica, especialmente a partir do século IX, o Ocidente experimentou muitas conversões ao Islã entre a população indígena (os "muladíes", “muwalladis”, de onde vem “mulatos”), ao mesmo tempo em que uma proporção significativa de cristãos permaneceu sob o domínio muçulmano e administração (os "moçárabes"). Estes últimos foram relevantes, tanto quanto sabemos, em toda a atual região Centro de Portugal, entre o D‘Ouro e o Mondego, como foi o caso da zona de Coimbra, junto ao rio Mondego onde, após a conquista da cidade por Fernando I, o Grande, em 1064 um moçárabe, o "conde" Sisnando, foi nomeado governador. No atual Algarve, os moçárabes foram também uma comunidade de grande importância, pelo menos até ao século XII; como indica o nome da cidade de Faro. Anteriormente Ossonoba e mais tarde Santa Maria nos tempos romanos e visigóticos, manteve esse nome nos tempos islâmicos apenas adicionando "al-Haran" (Shanta Mariyyat al-Harun) no século XI. Este acréscimo não se deve à família Banū Hārūn, já mencionada acima, que governou a cidade algarvia de forma independente entre 1026 e 1052, mas sim à existência de um farol, do qual a eminente família tirou o nome (sendo “Faro” o nome atual da cidade).
Também na região de Lisboa a comunidade moçárabe manteve-se significativa, e é isso que nos interessa aqui. Reconhecemos a sua importância no momento da conquista cristã da cidade do Tejo, quando o bispo moçárabe foi assassinado após a entrada dos cruzados do norte da Europa em Lisboa; ainda podemos percebê-la na continuação da existência de várias igrejas na cidade, como a de São Vicente, dedicada ao padroeiro de Lisboa desde tempos remotos e onde em outubro de 1147 foram sepultados muitos dos guerreiros cristãos mortos no assalto final.
Esses mesmos cruzados deixaram em seus escritos sua ignorância, relativamente surpreendida pela sociedade e geografia humana, como diríamos hoje, do Garb andaluz: cristãos de língua árabe, os moçárabes lhes parecem a seus olhos "misturados" com os muçulmanos, são praticamente indistintos. No melhor dos casos, a existência de diferentes grupos vivendo juntos, essa mistura de religiões e culturas, aparece como um escândalo aos olhos dos guerreiros do norte da Europa. Uma “bolha de vícios” era aquela Lisboa que aparece diante dos cruzados no final de junho de 1147. Eles também a veem como “uma cidade demasiadamente grande”, eles que vieram, em sua maioria, das áreas rurais da Inglaterra, Normandia, Flandres e Renânia. Isso explica o seu sentimento de admiração pela cidade do Tejo, e a sua surpresa com a novidades que os seus olhos testemunham. Em todo o caso, Lisboa era de facto uma cidade importante no contexto do Garb, embora obviamente não pudesse ser comparada com as grandes cidades de al-Andalus da época, como Córdoba ou Sevilha. Como já foi referido, Lisboa desempenha desde a antiguidade um papel muito relevante no comércio e nas ligações entre o mundo mediterrânico e o Norte da Europa, tendo também grande importância no nível da construção naval, a par da cidade de Qasr Abi Danis, mais a sul. Na verdade, Al-Ushbuna e Qasr Abi Danis destacam-se no final do período do Califado, sem dúvida porque foram os principais pontos de apoio à logística naval na grande campanha do todo-poderoso hajib do Califado de Córdoba, Al-Mansur , em 997, contra o noroeste da Península, e que, como sabemos, culminou no saque de Santiago de Compostela.
No final do tempo dos reinos de Taifa, em 1093/94, o Emir de Badajoz cedeu todos os seus territórios a norte do Tejo ao "imperador" Afonso VI, rei de Leão e Castela, quando se sentiu finalmente ameaçado pelo poder dos Almorávidas. Estes tinham sido chamados a al-Andalus pelos emires das taifas independentes, confrontados com o avanço dos cristãos, sobretudo após a conquista de Toledo por Afonso VI, e o ‘sistema dos párias’, o pagamento de tributos dos emirados andaluzes aos reinos cristãos, foi quebrado. Os territórios cedidos por Omar al-Mutawakkil, emir de Badajoz, incluíam as cidades de Santarém e Lisboa. Assim, Al-Mutawakkil cedeu os seus bens entre os vales do Tejo e do Mondego, conquistados definitivamente pelos cristãos em 1064, por Fernando I "el Magno".
Todavia, essas medidas desesperadas do Emir de Badajoz não surtiram efeito e os reinos de Taifa foram absorvidos pelo poderoso Emirado Almorávida sob Yusuf Ibn Tashfin nos anos seguintes, tendo Afonso VI tendo que retirar-se novamente para a linha do Mondego. Chegara o momento do apogeu dos almorávidas, que, mais tarde comandados por Ali Ibn Yusuf, obtiveram sua grande vitória em Uclés em 1108, onde derrotaram as forças de Leão e Castela, morrendo na disputa o pequeno Infante Sancho. Nos anos seguintes voltaram a ameaçar a região do Mondego e saquearam a própria cidade de Coimbra em 1117. Mas, não obstante, as décadas seguintes assistiram ao declínio do poder almorávida, confrontado com questões administrativas e de organização interna do seu gigantesco emirado, que se estendia de Saragoça no Norte até o Senegal no Sul, com várias rebeliões locais em al-Andalus (incluindo Garb), e sobretudo com o surgimento de um novo movimento político-religioso no atual Marrocos: os Almóadas.
Com a fragmentação do poder almorávida, em al-Andalus assistimos então a um período que se costuma chamar "os segundos reinos das Taifas", em relação ao primeiro período das Taifas após a queda e desmantelamento do Califado de Córdoba. De fato, podemos ver pelas fontes que havia alguns sinais de agitação andaluza contra os almorávidas a partir da década de 1120, começando, ao que parece, em Córdoba, mas também em muitas outras cidades andaluzas. No entanto, este segundo período de pequenos emirados independentes durou muito menos do que o primeiro período dos reinos de Taifa no século XI, e todos acabaram caindo, em grande parte, nas mãos dos almóadas que entretanto haviam passado o Estreito de Gibraltar e avançou na Península para eliminar os últimos enclaves leais aos almorávidas e estender seu domínio às terras de al-Andalus. Em Garb, os reinos de Beja e Évora (1144-1150), Mértola (1144-45, anexada por Badajoz), Santarém (1144-1147, conquistada por Portugal), Silves (1144-1155) e Tavira tiveram uma existência efêmera, cujas datas exatas não são bem-conhecidas.
Dinar de ouro almorávida (1122) de ‘Ali ibn Yusuf. Lisboa, Museu do Dinheiro.
É neste contexto que se deu o avanço decisivo do então jovem Reino de Portugal nos territórios entre os vales do Mondego e do Tejo, e as conquistas de Santarém e Lisboa no ano de 1147. Lisboa foi incluída nos domínios da segunda independência emirado de Badajoz que, com um poder fraco, não conseguia combater eficazmente os almóadas e os cristãos ao mesmo tempo. Com a notícia da chegada de um esquadrão de cruzados à costa portuguesa, e com a queda de Santarém em março, o emir conseguiu reforçar as defesas de Lisboa com cerca de 2.000 homens, porém não mais que isso. Contava, ou assim parece, com o envio de mais guerreiros, mas a frota dos cruzados estacionou no estuário do Tejo em finais de Junho, ao mesmo tempo que a hoste de Afonso Henriques, rei de Portugal, chegava por terra. O cerco começou no primeiro dia de julho: 11.000 cruzados e 9.000 homens de armas de Portugal contra cerca de 15.000 defensores de Al-Ushbuna, segundo as estimativas mais recentes. Mas agora vamos deixar os muros de Al-Ushbuna e entrar no acampamento cristão, para perguntar quem eram esses homens e aprender sobre suas vidas, sobre o que os trouxe até lá.
A formação do reino de Portugal e a Reconquista: o contexto cristão
– O quadro geral:
As origens da independência e criação do reino de Portugal encontram-se no lento e complexo sistema de processos históricos (poderia-se dizer "conglomerado" de processos históricos) que conhecemos de forma muito mais simplificada sob o nome de Reconquista Cristã da Península Ibérica. Com efeito, não podemos vislumbrar as origens de Portugal como entidade política independente e estruturada na antiguidade, nem nos Lusitanos (muitas vezes identificados com os "ancestrais" dos portugueses), que eram um povo entre vários outros que viviam no território de o que viria a ser Portugal (e não só no atual território português, mas também em regiões que pertencem a Espanha), ou nos Suevos, cujo reino foi proposto por vezes como "ancestral", prefiguração do futuro reino de Portugal, na medida em que as suas fronteiras se estendiam desde a costa norte da Galiza até Coimbra no rio Mondego, e mesmo por vezes até Lisboa e o Tejo. É evidente que o passado mais antigo é importante em muitos aspectos e para muitas questões, mas neste caso a sua importância mais clara situa-se ao nível de uma estruturação material do território, da sua rede urbana, da sua rede viária, e lenta e gradualmente mais variável forma, da sua geografia humana, antes da formação dos reinos que conhecemos mais tarde, num contexto completamente diferente.
Afonso VI “El Bravo”, rei de Leão e Castela e “imperador de toda a Hispânia” (1047-1109). Túmulo “A” da catedral de Santiago de Compostela.
Henrique de Borgonha (1066-1112), Conde de Portucale desde 1096. Túmulo “A” da catedral de Santiago de Compostela.
Henrique de Borgonha (1066-1112), Conde de Portucale desde 1096. Túmulo “A” da catedral de Santiago de Compostela.
Também não encontramos causas ou razões para uma separação do que seria o território português do resto da Península na geografia física: não há rio, serra ou outro acidente geográfico que marque a fronteira entre Portugal e Espanha de forma clara e hoje, excepto em algumas partes dos rios Minho, D’Ouro e Guadiana, mas é uma pequena parte em relação a todos os quilômetros da fronteira.
É claro que há uma diferenciação linguística e cultural na península ocidental e essa diferença existia desde a Alta Idade Média (naquela época não em toda a península ocidental, mas no noroeste). No entanto, essa cultura não corresponde a uma fronteira atual: a Galiza nunca integrou o reino português (com exceção de algumas áreas em situações político-militares muito específicas), mas integrou plenamente a cultura e a língua medieval galego-portuguesa. Da mesma forma que a língua e cultura catalãs, ou a língua e cultura basca, tiveram durante séculos uma correspondência "estatal", identificando-se com um reino (Aragão, Navarra) ou outras entidades (condados catalães, condados dos Pirinéus) que existiam na Idade Média tempos e que hoje fazem parte do Estado espanhol, as causas e razões da independência de Portugal e da sua constituição como reino têm obviamente de ser encontradas na história, no contexto feudal medieval dos jogos de poder nos reinos cristãos da "Reconquista".
A partir do século VIII, os reis das Astúrias realizaram várias operações de invasão em territórios sob domínio muçulmano. Essas expedições foram muito ao sul, em alguns casos: já vimos que Afonso II saqueou Lisboa em 796, por exemplo. De qualquer forma, naquela época não havia conquista asturiana permanente daquelas regiões mais distantes do coração do reino, com a intenção de saquear, e vemos grupos de cristãos reunidos no norte da Península, acompanhando os exércitos asturianos ou como refugiados de al-Andalus, quando ocorreram momentos de tensão sócio-religiosa nas terras sob o domínio islâmico. Ao mesmo tempo, pode-se ficar com a sensação de um certo “abandono” das áreas mais setentrionais de al-Andalus pelo poder muçulmano. Alguns historiadores (entre eles Claudio Sánchez-Albornoz foi o mais eminente) defenderam assim no século passado a conhecida teoria da criação de uma "terra de ninguém", entre a serra Astur-Cantábrica e o vale do Douro, durante o reinados dos primeiros monarcas das Astúrias, do século VIII a meados do século IX: uma espécie de "terra de ninguém" que se situava entre as terras sob domínio muçulmano e as terras cristãs e que teria permitido ao reino das Astúrias organizar-se e expandir-se gradualmente para sul, ao mesmo tempo que se processava a lenta elaboração do conceito de “Reconquista”. Sabemos hoje que esta teoria da "terra de ninguém" não é sustentável, porque nunca houve um abandono completo e total das vastas terras entre as serras do norte e o D’Ouro. O que aconteceu foi que após a invasão muçulmana e conquista da Península, as regiões do norte foram guarnecidas sobretudo por elementos berberes dos exércitos muçulmanos, que participaram na grande revolta berbere de 740-741 e abandonaram as suas posições. A partir das Astúrias realizaram-se expedições de resistência e depredação que levariam a conquistas e ocupação definitiva a partir de meados do século IX, altura em que se estabeleceria a fronteira no vale do D’Ouro e estas terras experimentaram uma política activa de aumento da população e exploração dos terra arável. Naquela época, os monarcas asturianos estabeleceram grupos de cristãos moçárabes fugidos do sul, de cultura clássica e gótica, nas regiões de expansão, e desempenhariam um papel decisivo na criação e consolidação da ideologia da Reconquista e na identidade ao reino cristão contra o sul islamizado.
Combate entre cristãos e muçulmanos durante a Reconquista. Iluminação nas "Cantigas de Santa María" de Afonso X de Leão e Castela, cerca de 1280.
No atual norte de Portugal, cidades como Braga e Porto foram conquistadas por volta de 868, iniciando-se a restauração das dioceses locais e criando-se o concelho Portucalense, cujo nome tem origem nas aglomerações urbanas da foz do Douro, Porto (Portus) e Gaia (Cale), que sempre estiveram articulados entre si: cada uma dessas cidades não pode ser compreendida sem a outra. Nas décadas seguintes, os cristãos atravessaram o Douro e conseguiram ocupar praticamente todo o território até ao vale do Mondego, num período problemático para o poder andaluz. Após a fundação do Califado de Córdoba em 929, nas décadas seguintes os muçulmanos recuperaram grande parte das áreas conquistadas pelos cristãos ao sul do D’Ouro. Estabeleceu-se uma "marca" na região, zona fronteiriça do califado contra as potências cristãs do norte, mas isso também significava que se tratava de uma área caracterizada pela existência de caudilhos locais e sentimentos autonomistas comunitários, que permaneceram por algum tempo após a conquista cristã definitiva.
A difícil conquista e ocupação cristã do território entre Duero e Mondego, entre o Porto e Coimbra, só foi realizada no século XI na época dos reinos da Taifa em al-Andalus, sob os reis de Leão e Castela, Fernando I “o Grande” e Afonso VI “o Bravo”. A cidade e fortaleza de Lamego tombou em 1057, Viseu no ano seguinte e Coimbra em 1064, altura em que o município de Coimbra foi restaurado (tendo existido pela primeira vez no século X) e entregue ao moçárabe Sisnando Davides, que será também o primeiro governador da Toledo cristã em 1085.
Entretanto, em 1071, o Conde de Portucale, Nuno Mendes, perdeu a vida, rebelde contra o rei García da Galícia (irmão de Afonso VI, uma vez que Fernando I tinha distribuído os seus domínios entre os seus três filhos, Afonso VI conseguiu depois retirar os seus irmãos o reinos que haviam recebido), que o derrotou na Batalha de Pedroso, perto do Porto. Assim terminou a longa dinastia original dos condes de Portucale, inaugurada em 868, e o concelho de Portucale só seria restaurado no final do século, como veremos em breve.
– A dinastia da Borgonha e a criação de Portugal
Já sabemos que o Emir de Badajoz cedeu os seus territórios a norte do Tejo ao rei Afonso VI em 1093-94. O grande monarca cristão reúne então os condados de Portucale e Coimbra e concede-os ao seu genro, o cavaleiro borgonhês Raimundo, casado com a sua filha Urraca, juntamente com o governo das novas possessões, como Santarém e Lisboa. Mas como também já sabemos, os Almorávidas retomaram aqueles territórios para o Islã e, talvez um pouco desiludido com a atuação militar de Raimundo, Afonso VI concedeu então o concelho de Portugal, agora incluindo definitivamente Coimbra, a outro genro borgonhês, o cavaleiro Henrique de Borgonha casou-se com sua filha Teresa. Também é muito possível que essa medida tenha sido uma estratégia para de alguma forma dominar o próprio Henrique, que parece estar conspirando contra o sogro.
A realidade é que essa estratégia não funcionou, e Henrique da Borgonha encontrou terreno fértil para suas ambições de autonomia entre a categoria social das infanções, nobres de famílias antigas que dominavam os cargos mais altos e administrativos-militares do condado de Portucale. A queda do ex-Conde Nuno Mendes tinha sido justamente tentar reagir contra o poder crescente daquele grupo, que de alguma forma, podemos dizer, usava-se do rei García da Galiza na época. Agora estavam ao lado do conde borgonhês de Portucale, sobretudo depois da morte de Afonso VI em 1109 e da fragilidade da sucessão (o infante Sancho tinha morrido em Uclés e a regência foi entregue à sua irmã mais velha, Urraca, mãe do futuro Afonso VII que era um menino de quatro anos) levou Henrique a buscar ainda mais poder, entrando nos complexos jogos de poder da época.
Sua morte, ocorrida em Astorga em 1112, deixou sua esposa Teresa, irmã de Urraca, como herdeira de seus projetos; vemos na documentação como ela sempre se apresenta como Regina, uma rainha. Ela era filha de um rei, é claro, e esse título foi reconhecido até por sua irmã Urraca, seu sobrinho Afonso VII e o Papa Pascoal II. No entanto, talvez essa forma de se apresentar dissesse mais do que simplesmente que ela era filha de um grande rei, era uma afirmação de suas ambições. Ela teve uma longa disputa com Urraca, um conflito que terminou no início da década de 1120, quando ela teve que renunciar às suas reivindicações sobre Leão e Castela enquanto sua irmã Urraca a reconhecia como vassala do condado de Portugal. Mas parece que Teresa nunca abandonou completamente os seus projetos e cercou-se de uma comitiva de nobres galegos que com ela conspiraram e alcançaram posições de destaque no concelho, o que não era algo que agradasse aos nobres portugueses. Depois voltaram-se contra o filho de Teresa com D. Henrique de Borgonha, o jovem Afonso Henriques, para recuperar as suas posições de primazia aliando-se a alguém que queria tornar-se totalmente independente de Leão e Castela. Na Batalha de São Mamede (1128), Afonso Henriques derrota a mãe e os seus apoiantes e tomou o poder em Portucale.
O seu desejo de ser ele próprio rei, independente do seu primo, o “imperador” Afonso VII (“imperador da Hispânia” como Afonso VI, seu avô), levou Afonso Henriques ao inevitável conflito com Leão e Castela, mas também a mostrar-se um guerreiro ativo do cristianismo. Para atingir este objectivo e também para evitar a influência e manobras da antiga nobreza portuguesa que o apoiava e que sempre exigia favores e posses, estabeleceu a sua corte no Mondego, na cidade de Coimbra, que foi assim a primeira "capital" (a capital na Idade Média era a sede do reino de Portugal, exatamente na fronteira então, na década de 1130, com o Islã). A sul de Coimbra, os castelos de Pombal e Leiria foram permanentemente disputados entre cristãos e muçulmanos, e foi apenas por volta de 1142 que os luso-portugueses conseguiram estabelecer-se definitivamente em Leiria, junto ao Vale do Tejo. Pouco tempo depois, Afonso Henriques e seu primo Afonso VII assinaram o Tratado de Zamora (1143), pelo qual Afonso VII o reconheceu como rei. Na verdade, Afonso Henriques já se autodenominava rei anos antes, título que foi ainda mais endossado e proclamado após sua vitória contra uma força muçulmana muito maior em 1139, quando liderou uma expedição de pilhagem (uma operação de “fossado”, como se sabe, dizia ele em galego-português medieval) no actual Alentejo, ou seja, muito longe, muito a sul, dos seus domínios nessa altura.
Coimbra: a “Sé Velha”, século XII. [Foto do autor]
Os cristãos já ocuparam Lisboa algumas vezes no passado, como já sabemos. E parece que Afonso Henriques o experimentou pela primeira vez em 1142, segundo a documentação proveniente de alguns cruzados que participaram na conquista de 1147. Com efeito, haveria algum desconforto entre esses cruzados e o rei português por isso, pois Afonso Henriques não teria dado na ocasião o apoio que os guerreiros do norte da Europa esperavam. Seja como for, uma vez que os portugueses se estabeleceram definitivamente em Leiria, entre Coimbra e Lisboa, as tréguas com Afonso VII e a proclamada vassalagem de Afonso Henriques à Santa Sé para obter o apoio papal (estratégia muitas vezes seguida na Idade Média, por exemplo, quando Aragão assinou a sua independência no século XI) implicava uma possível expansão do jovem reino de Portugal para sul,em direção a terras islâmicas.
Afonso Henriques também já sabia que para tomar Lisboa era preciso proteger a sua retaguarda, pelo que era essencial conquistar primeiro a poderosa cidade de Santarém e a sua formidável posição no Tejo, o que foi conseguido num ataque surpresa em março 1147. Ao mesmo tempo, navios que transportavam cruzados a caminho da Terra Santa chegaram à costa ocidental da Península: participaram da segunda cruzada, convocada pelo Papa Eugênio III após a queda de Edessa, um dos estados latinos do Oriente formado após a primeira cruzada (1096-1099), sob os golpes do poderoso 'Imad ad-Din Zengi, senhor de Mossul e Aleppo. O Rei de Portugal não se encontrou pessoalmente com os cruzados para negociar o apoio destes guerreiros na sua intenção de conquistar a cidade de Lisboa e para esta missão comissionou o Bispo do Porto, Pedro ‘Pitões’ II.
Uma vez assinado o acordo entre portugueses e cruzados, partiu a frota do então reino anglo-normando, da Flandres e das terras alemãs da Renânia, encontrando-se com as tropas luso-portuguesas no final de Junho próximo as muralhas de Lisboa. Os cristãos tinham cerca de 20.000 guerreiros, 9.000 portugueses e 11.000 cruzados, dos quais o maior contingente era o dos anglo-normandos. Em Lisboa havia 15.000 homens na defesa, alguns deles enviados pouco antes pelo Emir de Badajoz ao receber notícias das operações portuguesas e da queda de Santarém. Mas não viria mais ajuda de Badajoz e o cerco começou em 1º de julho, durando quase quatro meses, até 21 de outubro.
Naquele dia, uma terça-feira, um violento assalto dos cruzados, com máquinas de cerco incluindo uma poderosa torre móvel, resultou finalmente na rendição dos defensores muçulmanos: uma trégua de três dias foi então acordada e a entrada do rei português na cidade ocorreu no dia 25. As condições do acordo não foram respeitadas: houve saques, violência, crueldade e assassinatos cometidos pelos cruzados, que tinham naquela época uma mentalidade muito mais radical, muito diferente da dos cristãos peninsulares em suas operações contra al-Andalus. Os reis cristãos da Península tentavam aos poucos manter a prosperidade das regiões que ocupavam, valorizavam a economia e o conhecimento produzido pelas diferentes comunidades que habitavam suas terras. Não existiu, ou pelo menos não existiu em boa parte do tempo, a mentalidade mais destrutiva e radical contribuída pelos elementos do restante do cristianismo latino, que encarava a morte dos "infiéis" como caminho para o Paraíso. Os estados latinos do Oriente, Antioquia, Trípoli e Jerusalém (e Edessa até 1144) tiveram frequentemente de enfrentar esse mesmo problema, esse mesmo choque com essa mentalidade radical: no Levante, construiu-se uma sociedade baseada na possível coexistência entre os diferentes comunidades em um equilíbrio frágil, um equilíbrio sempre ameaçado pelos recém-chegados da Europa, ansiosos para enfrentar os muçulmanos pela salvação de suas almas.
Entre o massacre ocorrido em Lisboa, também morreram moçárabes e o seu Bispo. Eram os cristãos de rito visigótico, preciosa memória de um tempo já passado nos reinos cristãos peninsulares, onde desde meados do século XI penetrou e foi imposto pelos monarcas que procuravam o apoio do Papado e dos reinos além dos Pirineus o rito latino e o que normalmente é chamado de "reforma gregoriana", o lento processo pelo qual a Santa Sé padronizou preceitos e práticas em vários aspectos da vida dos crentes, garantindo assim maior preponderância e poder. De fato, personalidades como Afonso VI, Raimundo e Henrique de Borgoña, abades e bispos em todas as latitudes dos reinos cristãos peninsulares, de Braga ou Compostela a Barcelona ou Tarragona, foram ativos promotores da reforma proposta por um Papado e um Cristianismo que muitos vezes ele via os cristãos ibéricos como uma espécie de "hereges", desconfiados do antigo rito visigótico, onde, para eles, se misturavam heresias como o priscilianismo antigo, movimento especificamente peninsular do século IV, e o próprio Islã.
Alguns destes prelados, vários deles de origem francesa, eram partidários da causa de Afonso Henriques e da independência portuguesa. Mas seja como for, e como já foi dito, o tratamento dispensado aos muçulmanos (e judeus) conquistados em al-Andalus foi muito diferente do que pretendiam fazer os cruzados mais radicais, cheios de ideias sobre como a violência seria um meios ideais para a salvação eterna. Mas o que nos interessa aqui, e já chegamos praticamente ao fim de nossa breve reflexão, é que Lisboa, a Al-Ušbūna islâmica, integrou o reino de Portugal e o cristianismo latino naquele 25 de outubro de 1147, e não seria muçulmana. Os castelos circundantes renderam-se então sem luta, alguns deles poderosas fortalezas: Sintra, Palmela, Almada, entre outros.
Selo de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, na carta de doação do castelo de Ceras, no Vale do Tejo, aos Templários (1159). Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.
– Epílogo: a consolidação do jovem reino de Portugal:
Nos anos seguintes, aproveitando também a confusão criada em al-Andalus pela queda do poder almorávida e a chegada dos almóadas e suas batalhas contra os pequenos emirados do segundo período dos reinos taifas, Afonso Henriques de Portugal (Ibn Ariq em fontes árabes, às vezes com o epíteto al-Yillīqī, "o galego") passa o Tejo e consegue conquistar, pessoalmente ou através de seus tenentes, homens "sem medo" como Geraldo Giraldes que oscilava entre os dois mundos, o cristão e o a muçulmana, muito do que hoje é o Alentejo português, incluindo cidades como Évora e Beja. Suas conquistas param em 1169 quando tenta e não consegue tomar Badajoz, ajudado de surpresa por Fernando II de Leão quando estava prestes a cair. El rey leonés (León estaba entonces una vez más separado de Castilla), yerno de Afonso Henriques, estaba en conflicto con su suegro y Badajoz correspondía al reino de León, según el “derecho de conquista” de las tierras musulmanas por los reinos cristianos de a península. A parte final do governo do primeiro rei português é ensombrada pela perda de todas as posses que conquistou a sul do Tejo, com exceção da cidade de Évora, durante grandes ofensivas almóadas (o califado almóada estava no auge chegaram a ameaçar Lisboa e a sitiar Santarém e a grande fortaleza templária de Tomar, onde foram derrotados (o califa almóada Abū Yaqūb Yūsuf ibn 'Abd al-Mū'min morreu em consequência das feridas recebidas no cerco de Santarém em 1184).
A conquista de Lisboa permitiu ao primeiro rei de Portugal organizar uma forte linha de fortalezas no Vale do Tejo, muitas delas construídas em sítios que Afonso Henriques havia cedido aos Templários, guerreiros experientes em muitas campanhas na Terra Santa, como sido, exemplarmente, o caso do primeiro mestre da ordem em Portugal, Gualdim Pais, que esteve presente na conquista de Ashkelon pelo reino de Jerusalém (1153). Nas décadas seguintes à morte de Afonso Henriques, em dezembro de 1185, essa “linha do Tejo” permitiu a sobrevivência do jovem reino. A conquista da importante muçulmana Shilb, a cidade de Silves no actual Algarve, longe do Tejo, foi muito breve, aproveitando a passagem de uma nova frota de cruzados em direcção à Terra Santa (terceira cruzada) , por Sancho I de Portugal, filho de Afonso Henriques e grande guerreiro como seu pai, em 1189, mas a cidade foi retomada pelos almóadas em 1191. Só em 1217 os portugueses voltariam à ofensiva, conquistando Qaşr Abī Dānis (Alcácer do Sal) com a ajuda, mais uma vez, de cruzados do norte da Europa.
Os elementos muçulmanos, agora sob domínio cristão (e nessa circunstância denominados mudéjares) continuariam a ser importantes na vida econômica, comercial e cultural do jovem reino de Portugal, sendo um dos elementos constitutivos, de forma quase impercetível, da formação de uma identidade ‘portuguesa’. É evidente para os historiadores que essa comunidade mudéjar não tinha o mesmo peso econômico ou "científico", como diríamos hoje, que a comunidade judaica tinha; a comunidade mudéjar era, por assim dizer, mais humilde. Na região de Lisboa, a maioria dos diaristas e agricultores que abasteciam a cidade eram mudéjares. Gradualmente, eles se converteram ao cristianismo. No caso português, no final da Idade Média, não iam ter uma identidade tão marcada como era o caso dos elementos judaicos da época, quando a tolerância tradicional dos reinos peninsulares foi substituída por uma mais restritiva e intolerante. políticas, mas num contexto histórico já diferente do dos séculos XI-XIII.
Fontes usadas:
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- Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de Martinho de Soure, trad. y ed. crítica Aires do NASCIMENTO, Edições Colibri, Lisboa, 1998.
Bibliografia:
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