De todos os mitos que vagueiam a compreensão popular sobre Al-Andaluz, nenhum é tão forte quanto o mito cultural. Isto é, de que os invasores muçulmanos mantiveram uma cultura estritamente islâmica e estrangeira enquanto os invadidos cristãos mantiveram uma cultura estritamente cristã e nativa. Proposições simplistas, mas poderosas e populares. Não é exatamente difícil convencer indivíduos equilibrados que os reinos cristãos da Península Ibérica sofreram uma considerável influência andaluza e muçulmana; mais do que a maioria dos negacionistas e anti-islâmicos gostaria de conceder.

Por outro lado, pouco se explora no caminho inverso. Isto é: da mesma forma que os muçulmanos influenciaram as culturas locais, eles foram influenciados pela cultura local. Os muçulmanos de Al-Andaluz, inicialmente imigrantes árabes e berberes, mas logo majoritariamente ibéricos, desenvolveram de fato uma cultura tipicamente ibérica, com diversos elementos culturais e sociais cristãos, por vezes beirando ao próprio sincretismo; algo que pode não parecer intuitivo à primeira vista, considerando a língua e os nomes dos clãs e indivíduos islamizados, mas que de fato é verídico.

Quando se pensa em cultura espanhola, ou ibérica num sentido mais amplo, um dos primeiros elementos distintivos que surge como um verdadeiro estereótipo são as touradas. E de fato, existe prova maior da hispanidade do que as touradas? Provavelmente não. Ainda assim, as touradas, assim como outros esportes, foram fenômenos típicos do cotidiano andaluso.

As origens das Touradas são um tanto incertas, com diversas teorias sobre a sua gênese. Uma teoria popular entre escritores eclesiásticos atribuiu as touradas ao período romano, provavelmente como um esporte derivado das lutas de gladiadores com feras. Considerando o terreno de pasto e sierras da península, ideais para rebanhos de pasto, faria sentido que a tauromaquia se destacasse como uma categoria predominante que eventualmente se consolidaria como um distintivo tipicamente ibérico.

Por outro lado, na mesma época que clérigos sugeriram a associação com as lutas com feras, algo que ainda ecoava sombriamente para aqueles indivíduos dotados de maior sensibilidade cristã, uma outra teoria foi de que as touradas tinham origem islâmicas: cosas de moros, na linguagem do padre Rodrigo Caro (1573 – 1647).

E fazia sentido deduzir essa associação, uma vez que os andalusos eram tão entusiasmados com esportes agitados quanto os cristãos dos reinos do norte:

“O reino nasrida de Granada (1238-1492) se sobrassai na classe de jogos [...] A cidade palatina de Alhambra será um dos cenários desportivos mais importantes, segundo as fontes literárias e pictórias. Vale destacar a propensão festiva dos andalusos, que celebravam tanto festas islâmicas como algumas cristãs, imitando os moçárabes, tais como o Natal e o Ano Novo. Sobressalentes eram as festas sazonais de início da primavera (Nayruz) com desfiles de cavalos e regatas no rio Guadalquivir, e de início de verão (Mahrayan) com suas fogueiras e bailes em pátios, nas quais também participavam os moçárabes. Os acontecimentos da família real eram frequentemente ocasião de festa geral da população e de celebração de jogos desportivos, tal como acontecia em reinos cristãos.” (LÓPEZ, 2006, p. 1)

“O alcaide Aliatar, para amolecer o coração de sua amada Zayda, organiza um jogo de touradas, no qual intervém El Cid, que após vencer a feira, acaba tomando Madri dos mouros. O arabista Leopoldo Eguilaz, no final do século XIX, também conta como na Granada Nasrida, entre os séculos XIII e XV, as touradas realizadas na Plaza de Bibarrambla eram frequentes, e em particular cita as touradas por ocasião da circuncisão do filho do rei Mohamed V (Eguilaz, 1894).

[...]

Essa identificação entre jogos de touros e a população islâmica foi o que, segundo Natalio Rivas, motivou os Reis Católicos a proibir esses entretenimentos. Fala-se também do horror que a rainha Isabel sentiu depois de assistir a um espetáculo de touradas em Medina del Campo. Porém, para Rivas, esta é essencialmente uma desculpa com motivações maurofóbicas.

‘Os Reis Católicos, embora não proibissem abertamente as touradas, vieram a anulá-las, dando preferência às justas e aos torneios. Ser ‘coisa de árabe’ era razão suficiente, já que neste aspecto eles queriam extirpar todo o vestígio muçulmano” (ALCANTUD, 1999, p. 74-75)

Há quem diga que a célebre expressão " Olé " da corrida de touros vem da formação expressiva do árabe والله, w-allāh (« por Deus''), que espectadores muçulmanos costumavam gritar quando assistiam a touradas. Nesta época, as touradas dividiam espaço com um desporto quase tão popular quanto as touradas, e definitivamente com mais aplicação prática: os juegos de cañas. Distintivamente muçulmano, os juegos de cañas consistem em uma espécie de simulação de um enfrentamento militar, entre dois corpos de cavalaria. Neste desporto, duas equipes se enfrentavam:

“Normalmente essas exibições consistiam em ginetes (nobres) que, colocados em fileiras, atiravam juncos como se fossem azagaias normais, e que eles também tinham que bloquear com seus escudos.

Foram seguidas estratégias de combate militar, com cargas que podiam ser evitadas fazendo círculos ou semicírculos. Havia também exibições de nobres que, montados em seus cavalos, carregavam varas mais longas e realizavam diferentes façanhas, deixando os presentes boquiabertos. O espetáculo era variado e baseado em diversas ações relacionadas à batalha, o que não era surpreendente, considerando os diversos conflitos da época.” (REY, 2020)

Como um esporte de aplicação diretamente militar, os juegos de cañas apuravam a precisão dos arremessos de dardos, os reflexos defensivos e acostumavam os ginetes com os perigos e as táticas sob combate em cavalaria leve. Seus resultados em guerra eram particularmente letais, como experimentado pelos invasores ingleses no século XIV:

“Por minha fé, diz o Duque de Lancaster, ‘de todas as armas que os castelhanos e seus conterrâneos usam [ie. portugueses], eu admiro mais o dardo e amo vê-lo em ação; eles são especialistas no seu uso; e eu te digo, quem quer que seja atingido por eles, deve estar muito bem armado, do contrário ele será transpassado’. ‘Dizes verdadeiramente’, respondeu o escudeiro, ‘porque eu vi mais corpos transfixados nestes assaltos do que em qualquer outra ocasião na minha vida. Nós perdemos alguém que estimávamos muito, Senhor João Lourenço da Cunha, que foi atingido por um dardo que atravessou suas placas, sua cota de malha, cambais recheados de seda e todo seu corpo, fazendo-o tombar no chão.’ (CALVERT, 2018, p. 25)

Em síntese, a população muçulmana da Espanha era muito mais espanhola do que supõe a propaganda, não apenas influenciando, mas sendo também influenciada.

“O paralelismo entre reis e culturas se estende a torneios e justas. Muhammad V, desde adolescente, participava nesses jogos de armas e o povo granadino se destacava nos torneios de campo fechado. Pode ter havido uma permeabilidade mútua de formas, embora, talvez a título de exceção, uma modalidade caracterizada por evoluções ágeis em um espaço circular fechado, característico dos muçulmanos do Egito, Síria e Iraque, não eram praticadas pelos magrebinos e nem pelos muçulmanos espanhóis. As fontes nos permitem reconstituir bem o cenário das justas e torneios de Granada e de outras jogos armados praticados em Granada; foram celebrados em praças públicas e três locais se destacaram: a praça Bab al-Ramla junto ao rio Darro (“Bibrrambla”); a de Bab al-Tawwabin (“Bibataubin”, “Porta dos fabricantes de tijolos”, hoje Carrera de la Virgen) e a esplanada da própria Mesa da Alhambra, junto à Torre dos Sete Andares.

[...]

Alguns dados sugerem que o jogo de cañas foi bastante emblemático entre os nasridas, embora não exclusivo: diante do soberano castelhano Juan II (1405-1454) uma embaixada de Granada teve grande sucesso numa demonstração do jogo de cañas. Entre os presentes que Maomé VIII deu a Afonso V de Aragão - conhecidos por uma carta de 1418 – estava um valioso equipamento de juego de cañas.”(LÓPEZ, ibid, p. 3)

Bibliografia:

REY, Teresa. Sabes que España creó sus propios torneos medievales? Eran los juegos de cañas. 65YMÁS. Disponível em: https://www.65ymas.com/sociedad/cultura/sabes-que-espana-creo-sus-propios-torneos-medievales-eran-juegos-de-canas_3081_102.html. Acesso em 24 de abril de 2021.

CALVERT, Albert. Spanish Arms and Armor, 2018.

LÓPEZ, Juan R. Juegos de Guerra y acoso de fieras em Al-Andaluz y reinos cristianos peninsulares ibéricos.

ALCANTUD, Jose A. G. Toros y Moros. El Discurso de los Origenes como Metafora Cultural. Universidad de Granada.