The Myth de Morera: Problemas metodológicos, vieses e distorções de al-Andalus
Autor: Maribel Fierro, pesquisadora de estudos do Oriente Médio na seção de humanidades do Conselho Nacional de Pesquisa da Espanha em Madri, Espanha. 07/03/2023A tarefa de revisar este livro para uma revista acadêmica não é fácil, pois o objetivo do livro não é – como geralmente é o caso – responder a uma série de perguntas com base na leitura do material de origem. Este livro é a reação do autor (doravante, Morera) a vários estudos, escritos na sua maioria por estudiosos contemporâneos, onde Morera vê uma abordagem da experiência histórica de al-Andalus que considera não só incorreta, como até culposa, e chega a sugerir que tal crítica se aplica à quase totalidade dos estudos em circulação. Na opinião de Morera, ele – e somente ele – está levantando a voz para condenar as mentiras e o silêncio de outros estudos. Mas quem é o homem ao qual devemos agradecer por esse excelente trabalho de detetive, rastreando criminosos e expondo tais elaborados acobertamentos? Morera é professor do Departamento de Espanhol e Português da Northwestern University (Evanston, Illinois) e especialista em literatura espanhola da Era de Ouro. Ele não tem publicações anteriores sobre temas andaluzes e em nenhum momento indica que tem conhecimento de árabe ou hebraico. Sua incursão no campo dos estudos andaluzes com este livro é motivada por sua animosidade em relação a estudiosos que ele acredita terem injustamente lançado uma sociedade islâmica como al-Andalus em uma luz positiva.
Para tanto, dedica sete capítulos ao registro de suas próprias convicções. Uma delas é que, quando os muçulmanos conquistaram a Península Ibérica, destruíram uma civilização florescente (a dos visigodos) que os conquistadores haviam achado absolutamente espantosa. Como existem poucos exemplos nos textos de origem a respeito de tal admiração pelos visigodos, Morera repete em várias instâncias que os muçulmanos “canibalizaram” a arte visigótica, invocando a estudos de L. Caballero e M. A. Utrero, cujas obras ele claramente não leu: pois argumentam exatamente o contrário. Esses mesmos muçulmanos destruíram magníficas construções como o ídolo de Cádiz (p. 61), mas, ao que sabemos, nenhum dos textos árabes, incluso o citado por Morera, referem-se a ele como um monumento do período visigótico; atribuindo-o na verdade a um dos “antigos reis” da Península, fórmula de denominação utilizada para indicar os períodos romano e pré-romano.
Morera defende ainda que a influência do al-Andalus foi exagerada e não teve na Europa o impacto que normalmente lhe é atribuído. Sua principal fonte para esse argumento é o controverso livro de Sylvain Gouguenheim, Aristote au mont Saint-Michel: Les racines grecques de l'Europe chrétienne (Paris, 2008), que afirma que o Renascimento surgiu sem qualquer mediação árabe-islâmica do legado intelectual da antiguidade clássica. Baseado na resposta de Charles Burnett a esse livro (“Mont Saint-Michel or Toledo: Greek and Arabic sources for medieval european culture?” http://www.mus-limheritage.com/article/mont-saint-michel-or-toledo), Morera rotula Burnett – um historiador renomado das relações intelectuais entre o mundo islâmico e a Europa – como um daqueles “historiadores ocidentais que não apenas são tendenciosos contra o cristianismo, mas também são frequentemente investidos ocupacionalmente no campo dos estudos islâmicos e da influência cultural islâmica” (p. 72 e p. 272, nota 68). Em outras palavras, Burnett diz o que diz não porque tenha argumentos para apoiá-lo, mas sim por causa de seus próprios preconceitos contra o cristianismo e sua dependência “econômica” do dinheiro de fontes “islâmicas”.
Morera vê em al-Andalus uma sociedade em que os não-muçulmanos estavam sujeitos a um estado de dhimmi, algo que todos nós sabemos e que ninguém jamais tentou negar. Esse status, ele argumenta, impôs condições de vida humilhantes e ameaçadoras que inevitavelmente enfraqueceram a comunidade cristã até que ela desapareceu completamente. No entanto, em nenhum momento ele explica por que isso ocorreu na Península Ibérica, mas não na Síria ou no Egito, ou por que a comunidade judaica foi fortalecida em al-Andalus (aqui me refiro especificamente aos períodos anteriores aos almôadas, que supervisionaram um dos os poucos episódios documentados de conversões forçadas ao longo da história islâmica, embora nessa época a comunidade cristã andaluza fosse praticamente inexistente). Mas se os judeus prosperaram nessa sociedade, diz Morera, foi apenas porque eles se beneficiaram por terem ficado do lado dos muçulmanos contra os cristãos. Mais uma vez vemos o velho argumento do ‘judeu colaboracionista’, recentemente estudado por Fernando Bravo (“La traición de los judíos. La pervivencia de un mito antijudíomedieval en la historiografía española”, Miscelánea de Estudios Árabes y Hebraicos (2014), pp. 27-56), que Morera não cita. No entanto, mesmo a colaboração dos judeus não foi suficiente para poupá-los da violência dos muçulmanos e, além disso, os próprios judeus estavam tão ansiosos para atacar e perseguir os hereges quanto os muçulmanos eles mesmos eram. Em apoio a esses argumentos, Morera cita uma seleção de textos que – como geralmente acontece quando ele fala sobre não-muçulmanos – carecem de qualquer tipo de contextualização.
[Segundo Morera] não foram apenas os não-muçulmanos (especialmente os cristãos) que foram expostos a todo tipo de abuso em al-Andalus; as mulheres também viviam em condições terríveis que incluíam circuncisão, apedrejamento, uso obrigatório do véu e escravidão sexual. Morera leu claramente o livro de Manuela Marín sobre as mulheres em al-Andalus (Madri, CSIC, 2000), “canibalizando”, para usar sua frase, os dados e referências sobre essas práticas que lá encontrou, e acrescentando um punhado de outros factoides legais que, novamente, são tomadas completamente fora de contexto. O exame de Marín dessas práticas demonstra que elas não foram de forma alguma silenciadas. No entanto, enquanto Marín se engaja na tarefa do historiador, analisando o que pode ser feito com esses dados descobertos em textos de origem árabe, Morera não hesita em ampliá-los e elevá-los ao patamar de uma verdade autossuficiente, confirmando o que já acreditava: que todas as mulheres do al-Andalus sofreram circuncisão (malik dixit), foram punidas com apedrejamento (sem ter em conta as conclusões de Delfina Serrano sobre a matéria, no seu artigo “La lapidación como castigo de las relaciones sexuales no legales (zinā) en el senode la escuela mālikí: doctrina, práctica legal y actitudes individuales frente aldelito (ss. XI y XII),” Al-Qantara 26/2, 2005), usavam o véu (todas, mesmo entre os camponeses?), e eram, em alguns casos, submetido à escravidão sexual (o que, novamente, não é novidade).
Além do mais, não apenas as mulheres foram afetadas pelos “males” da sociedade islâmica. Os homens, também, sofreram a violência de seus correligionários através da imposição de uma única e estrita interpretação do Islã, aquela da escola Maliki. Como eu trabalhei no que diz respeito aos processos de heresia e dissidência religiosa no al-Andalus, irei referir um destes estudos para o leitor (“Religious dissension in al-An-dalus: Ways of exclusion and inclusion,” Al-Qantara, 2001, pp. 463-87), para comparar com as conclusões de Morera, que são baseadas em sua leitura de fontes secundárias – que ele repetidamente distorce ou interpreta erroneamente – com minhas próprias, baseadas em fontes primárias. Devo também mencionar de passagem que meu artigo sobre a prática de raf' al-yaday não tem nada a ver com lavar as mãos (p. 286, nota 76), o que me leva a acreditar, mais uma vez, que Morera não leu ou não entendeu as obras que está citando.
Não é tanto que Morera não pense que al-Andalus era um paraíso, mas que ele está convencido de que era puro inferno. Ele está disposto a fazer uma concessão: que teoria e prática nem sempre andam de mãos dadas, afirmação que inicialmente interpretou como discurso de sua consciência acadêmica. No entanto, só faz esta concessão porque dela necessita para se dirigir às sociedades cristãs da Península, aplicando-a apenas nominalmente quando se trata de muçulmanos ou judeus. Os textos que cita nesses casos, geralmente descontextualizados, não servem para ilustrar como sua mensagem foi articulada em sociedades específicas e na vida de indivíduos reais. Por exemplo, Morera leu o tratado legal de Malik ibn Anas (falecido em 179/795) através de uma tradução para o inglês, e está convencido de que, apenas porque a escola legal imposta em al-Andalus era a escola mālikī, este texto por si só explica o que os muçulmanos acreditavam e faziam ao longo dos oito séculos de existência do Andalus. Onde quer que ele descubra que um arabista não citou uma obra de Malik, ele aponta o dedo acusador, como se o estudioso em questão estivesse silenciando a verdade, sem entender que a jurisprudência islâmica se desenvolveu ao longo do tempo, e que estudiosos que trabalham em al-Andalus estão interessados em ver como Malik foi lido em cada contexto particular, se é que foi lido diretamente, e não por meio de uma tradição cumulativa de comentaristas e intérpretes. Em resposta a um livro que defendia a compatibilidade entre Islã e democracia, do autor sudanês contemporâneo, Abdullah Naim, seguidor do pensador reformista Mahmud Muhammad Taha, condenado à morte em 1985 pelo governo islâmico, Morera contesta furiosamente que Naim não deve ter realmente lido Malik. (p. 246, nota 20), sic. Ele também se gaba de ser o único a ter lido fontes legais como o Muwaṭṭa', al-Tafrī', ou Mudawwana (o que ele leu é na verdade o índice analítico publicado por Bousquet) e o Bidāya de Ibn Rushd - todos eles em tradução, claro –, assim como as Leyes de Moros (p. 245, nota 15). As continuidades entre obras anteriores e posteriores servem apenas para reforçar sua concepção essencialista do Islã. O que ele não consultou – porque, com algumas exceções que Morera parece ter negligenciado, não estão disponíveis na tradução – são as compilações de fatwas, onde ele teria descoberto o grande esforço dos juristas para contextualizar a doutrina em circunstâncias.
Existem oportunidades abundantes para confirmar que Morera carece de conhecimento em primeira mão do assunto e interpretou mal suas leituras. Assim, ele aponta que Almanzor ordenou que todos os livros de filosofia e lógica fossem queimados, e acrescenta que a proibição de tais livros continuou sob os reinos das Taifas (p. 33). No entanto, a fonte que ele cita é Sa'id de Toledo (séc. XI), cuja obra é um exemplo do avanço filosófico e científico durante o período Taifa devido à circulação do tipo de livro que Morera afirma ter sido banido. Morera sustenta (p. 55) que, após as rebeliões mudéjares, as autoridades espanholas tinham razão em temer que súditos muçulmanos pudessem forjar uma aliança com os otomanos. No entanto, ao falar sobre as deportações de cristãos durante o período almorávida, e apesar do artigo de D. Serrano sobre o assunto, não faz menção ao receio dos almorávidas de que os cristãos pudessem servir de quinta coluna após a expedição do rei de Aragão ao território andaluz. (p. 186 e nota 48, cf. p. 225). A anedota da embaixada bizantina durante o reinado de 'Abd al-Rahman III, e como o imperador teve que enviar um monge grego para ajudar na tradução do livro de Dioscórides que ele havia dado ao Califa, é um dos pilares das discussões sobre o desenvolvimento intelectual de al-Andalus, e é amplamente citado, por exemplo, nos livros de Vernet e Samsó referenciados na bibliografia de Morera. No entanto, Morera afirma descaradamente que, “Não se aprende sobre tais histórias nos muitos livros didáticos e outros escritos sobre a Espanha muçulmana” (p. 66). Vez após vez, Morera afirma que todos, exceto ele, tendem a obscurecer as influências greco-romana e cristã em al-Andalus, apesar do fato de que ele próprio aprendeu sobre tais influências de outros estudiosos, não por meio de qualquer pesquisa original de sua autoria. Por exemplo, quando observa que mesmo no campo da linguística os muçulmanos eram endividados com os gregos, ele apenas cita o conhecido estudo de K. Versteegh de 1977. Em sua opinião, tudo de positivo sobre os muçulmanos se resume a uma influência externa, enquanto as práticas negativas entre outros grupos podem frequentemente ser atribuídas ao mau exemplo do Islã. Por exemplo, ele afirma que os cristãos podem ter aprendido a prática da decapitação com os muçulmanos, apenas para depois usá-la contra eles (p. 296, nota 44). Da mesma forma, quando o estudioso e estadista judeu Ibn Naghrela defende o espancamento de mulheres, Morera afirma que isso pode ter sido a influência de uma suposta doutrina islâmica (p. 319, nota 77).
Eu poderia continuar, mas prefiro voltar ao que disse no início desta resenha, que Morera escreve seu livro como uma reação aos estudos escritos por outros autores, principalmente contemporâneos, em cuja obra Morera vê um tratamento da experiência histórica andaluza que é factual e moralmente errada, uma crítica que, a seu ver, se estende a quase todos os estudos sobre al-Andalus disponíveis hoje. Este tratamento, a que o seu título faz referência, pode resumir-se na ideia de que o al-Andalus era um ‘paraíso’ de tolerância, convivência religiosa e florescimento cultural que teve um impacto decisivo na Europa. No entanto, como ele mesmo sugere no início do livro, existem muitos estudos que adotaram uma abordagem diferente e, de fato, Morera está em dívida com eles, por mais relutante que seja em admitir isso.
Morera mora nos Estados Unidos, onde, após o 11 de Setembro, autores de várias origens e com níveis variados de ‘qualificação’ acadêmica escreveram livros, por um lado, demonizando o Islã e, por outro, tentando combater essa demonização, invocando um suposto modelo andaluz de tolerância religiosa e polinização cultural. A este último grupo pertencem livros de autores tão diversos como Chris Lowney, David Levering Lewis ou María Rosa Menocal. Impulsionado por seu amor pela controvérsia, Morera distorceu a proeminência desses autores nas esferas acadêmicas diretamente relacionadas aos estudos andaluzes, fechou os olhos para as reações críticas que eles atraíram na época e deu a impressão errônea de que poucos ou mesmo nenhum estudioso escreve de maneira diferente. Morera leu e utilizou muitos estudos que falam da violência, das limitações a que as mulheres foram submetidas e da discriminação implícita nono status de dhimmi; na verdade, esses estudos são o próprio fio com o qual ele teceu seu bordado. E, no entanto, ele está sempre insatisfeito com esses autores por não tirarem as conclusões que para ele são óbvias: que o Islã é uma religião essencialmente violenta e intolerante, e que é impossível para as sociedades islâmicas se libertarem dessa essência. Morera não está nem um pouco preocupado com o al-Andalus medieval como tal; seu único interesse é deixar claro que o Islã permaneceu exatamente o mesmo ao longo de toda a sua história e que, como religião e civilização, é inaceitável. O fato de o livro ser mais sobre o presente do que sobre o passado também fica claro nas inúmeras ocasiões em que Morera oferece ao leitor suas opiniões pessoais sobre questões atuais como o aborto (p. 265-6, nota 7), a Talibã e Estado Islâmico (p. 277, nota 97), punições na Arábia Saudita (p. 288, nota 118) ou imigrantes somalis (p.291, nota 184).
Se alguém quiser ter uma ideia razoável do livro de Morera sobre o que os estudiosos hoje sabem sobre al-Andalus, eles terão que ler os estudos que Morera canibalizou. Então descobrirão que a maior parte da vasta produção sobre a história do al-Andalus é constituída por análises eruditas – isto é, estudos que não são nem apologéticos nem polémicos – sobre aspetos que vão desde a condição feminina ao consumo de vinho, da fome à fortificação da fronteira, desde a evolução das normas de casamento até os sistemas de esgoto urbano. Uma ferramenta fácil para avaliar o número e a orientação dos estudos sobre al-Andalus é o catálogo da Escuela de Estudios Árabes de Granada. Nela, constatar-se-á que apenas algumas poucas obras condizem com a caricatura exagerada que Morera desenhou. Precisamente porque há tão poucos deste tipo, Morera deve fazer grandes esforços para forçar o resto deles a se encaixar em seu molde preconcebido, o que significa que qualquer pesquisador que não se refira a al-Andalus como um paraíso, mas também não escreve sobre isso em termos pejorativos – os únicos que para ele são válidos – torna-se objeto de seus ataques. Seu livro não levará a uma melhor compreensão de al-Andalus, mas certamente é útil para entender como al-Andalus é usado para travar as batalhas do presente.
Fonte: FIERRO, Maribel - AL-Qantara XXXIX-1, Reseñas, Enero-Junio 2018. Páginas 248 – 253.