Para compreender a influência da música árabe na música nordestina, escolhemos remeter primeiramente ao fato de que esta influência já estava presente na
cultura europeia trazida pelos portugueses durante a colonização. O motivo para este peculiar sincretismo cultural entre mundos aparentemente não-relacionados aos olhos de um leigo, na verdade, tem bases históricas, mais especificamente na conquista islâmica da Península Ibérica. Executada por guerreiros mouros, um termo católico genérico para designar originalmente os indivíduos vindos do Norte da AfricaÁfrica, essa conquista, que foi feita ao menos nominalmente pela autoridade do Califado Omíada, resultou não só em uma mera anexação territorial e subtração de recursos, mas à uma verdadeira revolução cultural por onde a bandeira do Crescente se estendeu: agricultura, arquitetura, ciências, filosofia, comércio, tecidos, metais preciosos e toda a sorte de manufaturados adentraram em al-Andaluz – o nome dado aos conquistadores muçulmanos à Península Ibérica, gerando um vigor civilizatório à caduca Ibéria Visigótica que não deixava a desejar em nada quando comparada com a própria Hispania Romana.

É claro que um dos sucessos de curto-prazo dessa conquista islâmica necessariamente deve ser atribuído às próprias políticas de tolerância religiosa empregadas pela Fé Islâmica; que embora não desse uma paridade social à religiões alheias à religião oficial de Estado – como já a regra em qualquer domínio cristão pelo Mediterrâneo desde a conversão de Constantino, por outro lado desempenhava uma grande seguridade e tolerância com os direitos religiosos dessas comunidades não-privilegiadas – essa sim uma imensa diferença, protegendo não só a sofrida e numerosa comunidade judaica da Península Ibérica, mas também cristãos cujas doutrinas se encontravam em divergência da Igreja Oficial de Estado; e.g. arianos, miafisistas e nestorianos.

Embora o marco do fim da presença muçulmana na península tenha sido tomado como o ano de 1492, na Conquista de Granada, não só a presença religiosa islâmica perduraria como religião privada daqueles convertidos à força do Estado Católico, mas seus legados culturais e sociais perdurariam de forma mais indissociável, tornando-se uma parte vital da cultura e sociedade ibérica, ainda que por muito tempo tenha se tentado ocultar tais heranças.

Instrumentos Árabes trazidos para o Brasil

Embora Portugal não tivesse uma história tão dramática ou persecutória com o Islamismo nativo, isso não significa que a sua causa vem de uma influência reduzida e de uma cultura mais “pura” e cristã; muito pelo contrário, especialistas como o PhD David Nicolle afirmam que Portugal foi, dentre todos os reinos ibéricos da Cristandade, aquele onde mais se sentiu a influência andaluza.

Uma das heranças menos óbvias da civilização islâmica, mas igualmente fundamental na cultura portuguesa, são os instrumentos musicais.

O pandeiro, a rabeca brasileira, o violão e a viola sertaneja, instrumentos tipicamente brasileiros e fundamentais à nossa construção cultural, têm origem árabe-andaluza, tendo sido carregados pelos portugueses no processo de colonização do Brasil quando ainda já haviam sido assimilados pela própria população ibérica, tornando-se também instrumentos típicos da cultura brasileira.

O pandeiro que, atualmente, conhecemos sua estrutura, incluído no choro, no samba, no pagode, no baião, entre outros gêneros musicais, descende de um cordofone utilizado praticamente em todo oriente médio, esse pandeiro é chamado de Daff ou Tar. Seus materiais consistem em uma circunferência de madeira e uma pele de animal tencionada. Os primeiros pandeiros já tinham aparecidos na época anterior à Cristo, porém o contato dos Europeus com o pandeiro, dentre ele os portugueses, foi a partir de 411. Durante o período de escravatura no Brasil, os negros escravos utilizavam o pandeiro nos momentos de rituais religiosos, entretenimento e festas, como também era utilizado na capoeira. O pandeiro era utilizado com um princípio de esconder os jogos de capoeira, a qual era clandestina por conta da proibição das execuções de rodas de capoeira pelos senhores de escravo, com o pretexto de estarem executando músicas
com o pandeiro e o berimbau.

No capítulo sobre as origens do violino, Damas dedica um trecho de sua obra para afirmar que os instrumentos semelhantes ao Kamancha, como o Ravanastron, foi a base da formação do violino e possivelmente a formação da rabeca. De acordo com François Joseph Fétis (Damas ​apud ​Fétis 2012, p.10): “nada existe no ocidente que não tenha sido originado no oriente”.

O kamancha, assim como outros cordofones de origem oriental, pode ser visto comominstrumento que deu origem à diversos cordofones ocidentais no processo histórico. Omkamancha consiste em uma caixa de ressonância e um braço com cordas friccionados pelo uso de um arco. O arco consiste em uma haste com clina ou rabo de cavalo presos em suas extremidades, similar a um arco de violino e violoncelo. O arco é constituído por uma lâmina de madeira com duas extremidades flexionadas ligadas por fios de rabo ou crina de cavalo. O Kamancha varia as quantidades de cordas, mas o instrumento típico da cultura azerbaijana possui três cordas. O seu braço de madeira passa por dentro da caixa de ressonância, entrando por um ponto até alcançar a extremidade da caixa em relação ao ponto de incidência. Sua afinação é variável, usam­-se intervalos musicais de 4° justa ou de 5° justa. A caixa de ressonância do Kamancha tradicional contém pele de animal em sua superfície.


Instrumentos populares que, atualmente, temos contato, como o violão, o cavaquinho e a viola, tem origem de um instrumento oriental, também popular no oriente, chamado Alaúde. O Alaúde em suas primeiras formas estruturais também tem origem no período a.C. Em sua maioria, possui cordas duplas e cravelhas, semelhante as cravelhas de um violino, o alaúde em sua estrutura possui uma caixa de ressonância com um formato distantes das caixas de ressonância dos cordofones próximos as nossas gerações, um formato de gota e com o tampo reto.

Os estilos e ritmos musicais os quais mais notamos as influências


Ermelinda (2008), em sua pesquisa​, ​argumenta que apesar dos musicólogos que pretenderam estudar tais ritmos não citarem tais semelhanças, é de se refletir que a influência tenha vindo de maneira ou de outra pelos imigrantes árabes e nossos colonizadores da portugueses. E cita em seguida cita o depoimento do cantor Leandro de Sa:

''O sistema árabe, os processos dessa música, seus efeitos chegaram através da própria integração, mas principalmente, dos substratos que havia na cultura portuguesa em função da dominação moura durante quase u milênio e, também, através dos negros islamizados. esta influência fica como algo quesubjazsempreapesardelanuncaaflorar como o objeto característico.''

A autora também faz menção de desenvolver uma boa base sobre essa influência no livro ​Ao som da viola do Rei dos Mouros de Gustavo Borroso onde o autor chama atenção também para os aboios dos vaqueiros, que lembrar a origem remota dos cantos árabes. (2008, p.21).

­Terça Neutra

Uma outra influência menos notada é a chamada erça neutra, um intervalo musical milenar usado na música árabe. Ela possui este nome por se tratar de um intervalo de 355 cents em média na escala EDO 53, muito perceptível na música nordestina, principalmente nas bandas de pífano.

Embora ela só tenha chegado formalmente no Brasil na década de 80, sua aplicação no Brasil têm raízes ancestrais, também ligadas à influência árabe que, presente na sociedade portuguesa, fez-se estabelecer no Brasil durante a colonização, perdurando nos ramos mais intocados da música brasileira: “as bandas de pífanos do nordeste, os aboios, as trovas dos repentistas, as toadas de caboclinhos, os forrós pé de serra, todo este vasto repertório é caracterizado pela terça neutra” (PINTO, 2001: 242)


­O Maltuf e o Baião


O ​Maltuf​ é um estilo árabe cuja célula rítmica é idêntica a do baião, a única diferença acontece na sonoridade pois o ​Baião​ possui as duas primeiras batidas mais graves e a última acentuada, enquanto no outro notamos somente a primeira batida grave e as outras duas acentuadas.

Ritmo árabe: Maltuf 

O ritmo do Baião 

Também há semelhanças nos modos utilizados em ambas as culturas, enquanto o modo ​mixolídio​ possui o sétimo grau menor numa escala maior, a estrutura modal mais próxima na música árabe é o ​Rast, que​ mantém um intervalo de ¾ de tom entre o segundo e terceiro graus, e ¾ de tom entre o terceiro e quarto de uma escala maior dividido o semitom em 2, também chamado por alguns estudiosos de meio bemol.

­Poesia e improviso na comparação do canto Zajal e com o Repente nordestino.

Outros ritmos árabes, como o​ Leff​ e o ​Ayyub​, também são similares ao ​Côco​ e ao ​Baião. Além do ritmo, temos os versos dos nossos repentistas que lá nos países árabes possuem algo parecido, chamado de ​Zajal​, também na forma de desafio poético. Assim comoaqui os repentistas duelam em cima de versos, os árabes também o fazem. Nesse estio o árabe quando canta também improvisa. Existe um ritmo e modo fixos e improviso é em cima dessa estrutura, como o repente nordestino.

­Conclusão

Que a música brasileira herdou não somente os instrumentos árabes, mas também um tanto de seus estilos e métricas, embora possa soar como uma afirmação extremamente ousada e inovadora prima facie, na verdade é bastante consagrada na academia brasileira há algumas décadas.

Seria necessário citar o trabalho seminal de Luis Soler del Campo, músico da Orquestra Armorial do ilustre Ariano Suassuna. Em seu Origens Árabes no Folclore Brasileiro, o autor espanhol mostrou decisivamente não somente a influência andaluza, tanto árabe quanto judia, na herança racial, cultural e até comportamental do brasileiro, com grande destaque à sua especificidade nordestina, onde tal herança se manteve mais intacta:

Foi precisa a fulminante explosão das técnicas modernas que revolucionou os meios de comunicação – veículos a motor e novas estradas, radiofonia, cinema, a televisão, finalmente – para que o sertão viesse, de fato, a ser invadido pela segunda vez, invasão relativamente recente e ainda em vias de execução, mas que inelutavelmente provocará básicas e irreversíveis transformações. Segunda invasão que tem trazido uma contrapartida fascinante para os invasores, fazendo com que um estranho mundo sobrevivente aparecesse aos olhos espantados do brasileiro moderno, mostrando em plena atividade e com insignificantes retoques, tudo o que constituiu o dinamismo e as atividades espirituais do homem medieval, na Ibéria arabizada: uma rara miscelânea de hábitos, tradições e valores estéticos ancorada numa mentalidade que mistura, a um sólido cristianismo doutrinal, um sentido mágico-crendeiro em relação à vida e ao próprio mundo. Contexto encantado, à margem do tempo, que explica a garrida vitalidade destas figuras lendárias, em relação aos nossos padrões atuais de comunicação artística, que são os violeiros, os rabequeiros, os repentistas e os poetas do sertão, em geral, arautos de um passado que neles, de alguma maneira e legitimamente, é presente ainda, continuadores de uma das manifestações mais esplêndidas que caracterizaram a cultura arábica em seus tempos de máximo esplendor. (SOLER, 1995)

 REFERÊNCIAS

DEL CAMPO, Luis Soler. Origens Árabes no Folclore Brasileiro, ed. GAIÃO, Pedro. História Islâmica, 21 de Maio de 2021. Disponível em: https://historiaislamica.com/pt/como-seculos-de-isl-em-portugal-deixaram-uma-forte-influencia-muculmana-na-cultura-nordestina/?fbclid=IwAR0TRqdYIryfjk71reyn5VRrxCPO5CqGH-xWOnwsYAPTksPcR6Dt74DEnS4. Acesso em 3 de setembro de 2021.

RAMOS, Alex. PEREIRA, Estevão. DIAS, Rômulo. EL DROUBI, Assaf. Dos Mouros ao Baião: a influência árabe na música do nordeste brasileiro.

CULTURA NORDESTINA. Como a Terça Neutra Árabe foi parar na musicalidade nordestina? Disponível em: https://historiaislamica.com/pt/como-a-terca-neutra-arabe-foi-parar-na-musicalidade-nordestina. Acesso em 2 de setembro de 2021.