“Não toleramos oposição: se alguém tomar um campo nosso, tomaremos, em seu lugar, uma luxuosa cidadela; e para qualquer camponês nosso que for capturado, capturaremos mil guerreiros armados. Se eles destruírem o muro de uma casa, nós destruiremos os muros das cidades... Quem quiser provocar uma briga conosco deve saber o que está fazendo; e quem quiser tirar algo de nós, encontrará desastres como estes ordenados para ele.” – Baybars numa carta para um líder cruzado

Por volta do século XIII, a escravidão militar estava fortemente impregnada como uma instituição na maior parte do Mundo Muçulmano. Discuti em outros artigos que a escravidão militar foi única à história islâmica (a comparação mais próxima seria dos reis georgianos medievais que tinham guarda-costas túrquicos escravos e pagãos) e é muito diferente de outras formas de escravidão, especialmente aquelas praticadas na Europa e no Novo Mundo. Na verdade, chamá-lo de “escravidão” é problemático porque os homens que formavam as unidades de escravos militares se tornaram as elites sócio-militares e intermediadores do poder nos principados, impérios e sultanatos em que serviam.

É um tanto paradoxal pois esta forma de escravidão era uma das poucas formas através da qual uma pessoa poderia melhorar seu status social através de seu próprio mérito. Os escravos militares tinham a oportunidade de subir posições no exército através de promoções e recompensas para se tornarem oficiais e generais, para ocupar importantes posições na corte do governante, tornar-se governadores ou mesmo governantes de direito próprio. Adicionalmente, diferentemente de muitas outras formas de escravidão, os escravos militares eram sempre bem pagos e bem tratados por seus patrões. Naqueles casos em que seu pagamento não era recebido ou em que o mestre tratava seus escravos severamente, cruelmente ou desrespeitosamente, os escravos tendiam a mata-lo (sendo a elite militar e os “homens com espadas” essa reação não deveria surpreender).

Durante os séculos IX e XI, estes escravos militares eram conhecidos como ghulams (menino/jovem), mas por volta do século XIII este termo caiu em desuso e foi substituído pelo termo mameluco (aquele que é possuído). Apesar de o último termo poder se referir a qualquer escravo, na verdade era uma designação especifica para escravos montados de pele clara de origem túrquica/asiática ou caucasiana. Estes escravos eram adquiridos de mais de uma forma. Eles eram tomados como prisioneiros em guerras e incursões, comprados de comerciantes de escravos ou eram até mesmo vendidos por suas famílias. No último exemplo, famílias ou tribos pobres vendiam seus jovens à escravidão, especialmente para os governantes do Mundo Muçulmano, porque recebiam grandes somas de dinheiro por eles e também porque, costumeiramente (especialmente do século XIII em diante) eles sabiam que estes escravos tinham uma chance de ter uma carreira brilhante.

De fato, no período circassiano do Sultanato Mameluco (1382-1517), muitos dos escravos-soldados levaram suas famílias para o Egito após terem galgado posições no exército. Uma apresentação numa recente conferência sobre violência no Mundo Mediterrâneo exemplifica a diferença entre a escravidão militar no Mundo Muçulmano e a escravidão no Ocidente. Um dos apresentadores comparou os destinos de dois circassianos que foram escravizados no mesmo período, no século XV. Um deles acabou em Veneza e o outro no Cairo. O circassiano que acabou no Cairo teve uma carreira brilhante. Ele se tornou um mameluco e eventualmente subiu ao trono para governar o sultanato, era o Sultão Barsbay (que governou de 1422 a 1438). Por outro lado, o circassiano que foi vendido aos venezianos desapareceu dos registros e caiu na obscuridade, provavelmente vivendo sua vida como um escravo servil. De qualquer forma, devemos lembrar que estes escravos militares formavam uma pequena e exclusiva proporção de todos os escravos do Mundo Muçulmano e suas carreiras não exemplificavam as vidas dos outros escravos que eram procurados por outros motivos.

Os Kipchaks

Durante os séculos XII e XIII os kipchaks (chamados de cumanos pelos bizantinos e europeus; e chamados de polovtsianos pelos russos) eram tribos nômades pagãs de origem túrquica que habitavam as estepes do sul da Rússia e da Ucrânia. Eles eram procurados para servirem como soldados para os exércitos dos governos que governavam as diversas regiões do Mundo Muçulmano. Sua natureza marcial, habilidades equestres e a arquearia a cavalo fazia deles excelentes soldados. Eles serviam nos exércitos do Império Corásmio, do Império Bizantino, do Sultanato Aiúbida e como escravos guarda-costas dos reis georgianos. Robert Irwin afirma que eles eram “tão amplamente empregados fora de sua pátria como soldados, que eles poderiam ser chamados de ghurkas da Idade Média”.

A disponibilidade dos kipchaks como mercenários e escravos cresceu intensamente durante o início do século XIII por causa das invasões mongóis das estepes ocidentais. Genghis Khan invadiu o Império Corásmio em 1219 e por volta de 1221 tinha derrotado seus exércitos e o conquistado. Ele enviou dois de seus melhores generais, Subedai e Jebe, para perseguirem o foragido Khwarazm-Shah para o Norte do Irã.

Depois da morte do Shah, os dois generais mongóis obtiveram permissão de Genghis Khan para liderar uma missão de reconhecimento na região do Cáucaso. A força de 20 mil mongóis derrotou os muito maiores exércitos georgianos sob o Rei George IV Lasha e pilharam seu reino. Eles, então, derrotaram uma coalizão de tribos que vivia ao norte do Cáucaso composta por lezguianos, alanos e circassianos aos quais também se juntaram os kipchaks. Os kipchaks foram convencidos pelos mongóis a se tornarem seus aliados. Depois de derrotarem a coalizão, os mongóis atacaram os kipchaks. Aqueles que não foram mortos ou capturados fugiram para o norte. Eles se juntaram aos exércitos dos principados russos para enfrentar os mongóis. Mas mesmo este grande exército, supostamente beirando os 80 mil homens, foi derrotado pelos mongóis na Batalha do Rio Kalka em 1223.

Jebe e Subedai voltaram para a Mongólia. Tudo isso não passou de uma incursão, a verdadeira conquista mongol da Estepe Kipchak foi feita por Batu Khan, o neto de Genghis Khan, em 1236. Foram essas invasões mongóis nas décadas de 1220 e 1230 que levaram ao deslocamento de muitas tribos na estepe euroasiática. Estas guerras resultaram em penúria e conflitos intertribais por terra e recursos que, por sua vez, levaram a grandes suprimentos de escravos e mercenários que estavam disponíveis para compra pelos sultões do Egito e da Síria.  

Tornando-se um mamluk

Baybars nasceu neste caótico mundo das estepes do sul da Rússia (às vezes chamada de Estepe Kipchak neste período). De acordo com as fontes, o ano de seu nascimento foi 1221, 1223 ou 1227. Ele era membro da Tribo Barali (Burc Ogli, de acordo com Linda Northrup). Temendo serem atacados novamente pelos mongóis, a tribo de Baybars fugiu para a Península da Crimeia. Lá, buscaram refúgio com Anas Khan, um chefe tribal turcomeno. Na Crimeia, os refugiados se sentiram seguros e baixaram sua guarda apenas para serem traiçoeiramente atacados por Anas Khan. Grandes números de kipchaks foram mortos e escravizados. Dentre os cativos estava Baybars e outros jovens kipchaks que iriam, por mais improvável que parecesse na época, se tornar os magnatas e governantes do Egito e da Síria.

Pouco se sabe sobre os detalhes da viagem de Baybars para o Oriente Médio, como se educou e como treinou. No entanto, é possível reconstruir o processo baseado nas descrições dadas nas muitas crônicas, dicionários biográficos e manuais de furusiyya (manuais sobre artes equestres, artes marciais e treinamento com armas) que sobreviveram do período mameluco. Os escravos que se tornariam mamelucos eram tratados de forma muito diferente se comparados com outros escravos. Estes garotos estavam destinados a se tornar soldados de elite, oficiais, governadores e membros da corte do governante. Eles estabeleceram fortes relações com seus patrões. O primeiro patrão e protetor do jovem escravo era o mercador de escravos que o trouxe de sua pátria para seu novo lar.

No caso de Baybars, o caminho tomado provavelmente envolveu uma viagem de barco no Mar Negro e, então, a jornada continuou na superfície, passando pela Anatólia, Síria e Egito. Esta viagem foi repleta de perigos e foi o comerciante quem garantiu que seu jovem pupilo sobrevivesse e chegasse ao seu destino em boa forma. O comerciante certificou-se de que os jovens escravos estivessem protegidos de danos físicos, bem alimentados e saudáveis. O falecido David Ayalon afirma que o comerciante “era seu primeiro patrão e protetor das adversidades e perigos durante a longa viagem ao seu país adotivo. Ele também servia como o elo mais comum entre ele e sua pátria original, dessa forma, o mameluco geralmente estava ligado com fortes laços de afeto e veneração a esse comerciante.”

Se um mameluco fosse sortudo o suficiente para ser comprado pelos aiúbidas e, mais tarde, pelos mamelucos do Egito, ele era transferido para o quartel (tibaq) situado na Cidadela do Cairo. Eram doze quartéis e cada um deles tinha uma seção especial para os noviços. Os mamelucos que eram comprados pelo governante iriam, um dia, se juntar às fileiras dos Mamelucos Reais (al-Mamalik as-Sultaniyya), que eram a elite e a espinha dorsal do exército. Os noviços recebiam duas formas de educação: o estudo do Islã e o treinamento militar. Na primeira parte, o jovem mameluco, além de ser iniciado na fé de seu novo lar, também aprendia árabe, a língua de seu mestre. Ele estudava o Alcorão, a escrita árabe, a lei e as orações islâmicas. A lealdade ao mestre também era suscitada nos jovens mamelucos, eles sentiriam gratidão eterna por seu patrão, que os tirou da pobreza para a riqueza e para o poder, e da anonimidade para a fama e para as fileiras da elite sócio-militar.

Os eunucos desempenhavam um importante papel na parte inicial da carreira do mameluco. Eles se encarregavam de grande parte da educação e criação do noviço e também eram disciplinadores rigorosos, aplicando punições por transgressões e insubordinação. Cada um dos quarteis da cidadela era comandado por um eunuco chamado Muqaddam al-Mamalik as-Sultaniyya (Comandante dos Mamelucos Reais) e outros eunucos (Khuddam) serviam sob seu comando. Estes eunucos de alto escalão frequentemente ocupavam altos cargos militares e exerciam uma quantidade considerável de poder no sultanato.

A segunda parte do treinamento de um noviço mameluco consistia em artes marciais, equitação e uso de armas. Coletivamente, eles eram conhecidos, nas fontes, como exercícios de furusiyya. Os mamelucos eram excelentes cavaleiros. Eles funcionavam tanto como arqueiros montados como quanto cavalaria pesada. Portanto, masterizar a equitação era algo fortemente enfatizado. Inicialmente, os formandos praticavam em cavalos de madeira. Os mamelucos eram ensinados a pular nas costas desses modelos corretamente sem armadura e depois totalmente equipados para a batalha. Uma vez que o mameluco tivesse masterizado sua habilidade, ele começaria a montar um cavalo de verdade. Ele tinha de masterizar sua condução com e sem uma sela e através de diferentes métodos de conduzir, montar, virar e usar adequadamente os equipamentos e apetrechos que acompanham o cavalo. Os mamelucos também aprendiam a cuidar de seus cavalos e de como tratar deles caso ficassem doentes ou se machucassem.

Os mamelucos também treinavam com uma série de armas. Uma das mais importantes era a lança. Eles passavam por vários exercícios diferentes, aprendendo a montar e desmontar enquanto seguravam uma lança, como atacar, aparar, desviar e estocar. Eles também aprendiam a se livrar de uma situação difícil e como se retirar. Durante o treinamento, os mamelucos jogavam o “jogo da lança” (birjas). O birjas era um alvo de madeira composto de sete segmentos com um anel fixado a ele. O mameluco tinha de cavalgar até esse objeto e arremessar ou enfiar sua lança através do anel. Outro jogo jogado pelos mamelucos para praticar suas habilidades com lança era uma em que cornetas ou cones eram espalhados pelo chão e os cavaleiros tinham que recolhê-los com suas lanças. Depois de dominar a equitação e o uso da lança, o mameluco era enviado para continuar seu treinamento em um dos hipódromos do Cairo. Lá, os mamelucos praticavam exercícios em grupo, avançando e recuando juntos e aprendendo a cavalgar e a lutar em formação.

Além de dominar o uso da lança, todos os mamelucos precisavam ser excelentes arqueiros. Dominar o uso do arco levava muito tempo e os mamelucos começavam usando arcos com peso de tração mais fracos e avançavam por uma sucessão de arcos, cada um mais pesado que o anterior. Era o quinto arco com o qual os mamelucos treinavam que era realmente usado em combate. Ao longo do treinamento, os mamelucos tinham de dominar o tiro ao alvo de uma variedade de distâncias, tanto a pé quanto montados no cavalo. Além de dominar o uso do arco, o aprendiz também aprendia sobre diferentes tipos de flechas e como fazê-las. Além disso, os mamelucos eram instruídos em como evitar ferimentos como bolhas e outros machucados que podiam ser causados pelas cordas do arco enquanto atiravam. Os mamelucos também jogavam um jogo de arquearia chamado qabaq. O qabaq era uma cabaça fixada em uma alta viga de madeira. Os mamelucos tinham que disparar flechas através de um círculo de madeira fixado na trave do alvo enquanto estavam a cavalo.


Manual de furusiyya do século XV que mostra mamelucos treinando. Bibliothèque Nationale de France. MS Arabe 2824 fol.20r

Os mamelucos também eram treinados na arte da esgrima e da luta com espadas. O treinamento com espadas era realizado tanto a pé quanto a cavalo. Antes de treinar como lutar contra um oponente, o mameluco tinha de praticar vários golpes com diferentes tipos de espadas. Ele tinha que treinar para aumentar a potência de seus golpes e aprender a controlar seus golpes com espada. O aprendiz tinha que cortar camadas de feltro, chumba e argila. Essas camadas eram reforçadas à medida em que o ataque dos mamelucos se tornava mais forte. Além disso, o mameluco tinha que dominar o controle dos golpes de espada. Ele tinha que ser capaz de cortar um certo número de resmas de papel, que eram colocadas em cima de um travesseiro, sem cortar mais resmas do que o instruído. Assim, o aprendiz aprendia a controlar seus golpes de espada e a desferir tanto golpes mortais quanto aqueles que apenas feriam o oponente. Ele também aprendia a atacar a cavalo enquanto cavalgava em um galope rápido. Para praticar esta habilidade o mameluco tinha que cortar a parte superior (cerca de um palmo) de um junco verde que era colocado em pé, no chão, enquanto passava por ele a todo galope. Este exercício também era repetido com múltiplas palhetas colocadas a certas distâncias umas das outras. Depois de o mameluco dominar estas habilidades, seu professor então o ensinava a usar sua espada em batalha contra os inimigos. Ele aprendia a atacar, defender, aparar e como lutar usando duas espadas ao mesmo tempo. Eles também praticavam com outras armas. Eles treinavam com cajado, adagas, maças, machados e bestas. Eles também aprendiam a lutar no chão e a cavalo.

Depois de completar seu treinamento, o mameluco se tornava um soldado de pleno direito. Numa cerimônia comunitária, ele e seus pares eram oficialmente alforriados, recebendo um certificado de alforria que atestava sua liberdade e seu status enquanto soldados profissionais e lhes dava direito a uma remuneração do tesouro. Estes mamelucos, agora homens livres, nunca mais voltaram para suas casas devido aos laços de amor e lealdade aos seus mestres e pares, a quem consideravam irmãos. Eles também não voltaram para sua terra natal porque eles tinham vidas muito melhores com padrões muito mais elevados vivendo como mamelucos. Como mencionado anteriormente, no Período Circassiano, os mamelucos levaram seus familiares para o Egito para compartilhar dos benefícios de uma nova vida como elite da sociedade.

O regime de treinamento mameluco produziu excelentes soldados. Os Mamelucos Reais do Egito e da Síria Medieval eram um dos melhores soldados de seu tempo. O histórico do exército mameluco no terreno é excelente (salvo alguns contratempos). Eles derrotaram tanto os cruzados quanto os mongóis e emergiram vitoriosos em todas as batalhas que eles lutaram contra os otomanos durante a Primeira Guerra Otomano-Mameluca (148-1491). Não está claro quanto tempo demorava todo o processo de treinamento, mas deve ter levado anos até que um novato se tornasse um soldado de pleno direito.

Uma indicação da natureza elitista do exército mameluco era seu tamanho relativamente pequeno em comparação com outros exércitos do final da Idade Média, como aqueles que poderiam ser invocados e mobilizados pelos mongóis/ilcânidas, timúridas, os Aq Qoyunlu, otomanos e safávidas. Os números dos Mamelucos Reais raramente excediam a faixa dos 10 ou 12 mil, e costumava estar na faixa dos 3 mil e 6 mil homens. A estes poderíamos acrescentar os mamelucos dos emires e algumas outras unidades regulares de menor qualidade e auxiliares tribais. O regime mameluco teve uma política defensiva pela maior parte de sua existência: ou seja, travavam guerras para manter o status quo, ao invés de travá-las para se expandir. Uma das razões por trás desta política era o fato de que levava muito tempo para educar e treinar soldados mameluco. Além disso, o investimento financeiro era consideravelmente alto. Isso significava que repor grandes perdas era tanto difícil quanto custoso, e os sultões e emires raramente arriscavam suas tropas em aventuras de expansão imperial.

A Batalha de Mansura

As fontes não nos falam da aparência de Baybars na juventude, mas descrições posteriores dizem que ele era alto, moreno, tinha uma voz poderosa e olhos azuis, com um deles possuindo um pequeno ponto branco. Ele foi inicialmente vendido para alguém chamado Imad ad-Din as-Sa’igh pelo baixo preço de 800 dirrãs. Ele foi prontamente devolvido ao comerciante devido à mancha branca no olho. Baybars foi, então, levado para Hamah, onde o governante local, al-Malik al-Mansur Muhammad quase o comprou. No entanto, sua mãe o convenceu a não adquirir Baybars porque “havia algo maligno em seu olho”.

Ele foi, eventualmente, adquirido por um emir, Ala ad-Din Aydakin as-Salihi al-Bunduqdar, um dos oficiais de Najm ad-Din Ayyub, o sultão do Egito. Aydakin, que já mantinha relações instáveis com seu mestre, provocou a ira de as-Salih quando se casou com a concubina de outro emir. O sultão lhe baniu e confiscou sua propriedade, incluindo seus mamelucos. Foi assim que Baybars passou a servir as-Salih Ayyub. Ele acabaria por se juntar ao regimento de elite do sultão, a Bahriyya. Esta unidade era composta, inicialmente, por 800 a 1000 homens e na época da morte de as-Salih, chegava a quase 2000 mamelucos. Baybars foi capaz de se distinguir cedo, através de suas qualidades de destreza, inteligência e liderança. Ele foi promovido e recompensado por seu patrão até que ele se tornar um dos oficiais mais importantes do regimento.

Baybars é mencionado nas fontes muito antes de ele tomar o sultanato em 1260. As-Salih Ayyub fez uma oferta pelo trono egípcio após a morte de seu pai, al-Kamil, em 1239. Ele ocupou Damasco e partiu para invadir o Egito com seu exército. Esta força teria cerca de 6000 homens e era composta por membros de tribos e mercenários que eram em sua maioria turcomenos, curdos, corásmios, além da guarda pessoal de mamelucos de as-Salih. Durante a campanha ele foi traído e maioria de sua tropa o abandonou. Ele foi deixado para trás com apenas seus leais mamelucos. Ele foi aprisionado por seu primo em Kerak por seis meses. Durante seu encarceramento, Baybars dividiu sua cela com sua concubina favorita, Shajar ad-Durr (que também era uma turca kipchak). Os outros mamelucos de as-Salih permaneceram esperando fora de Kerak, fosse pela soltura de seu mestre, fosse pela oportunidade de resgatá-lo.

As-Salih foi libertado da prisão em 1240 e capturou o Sultanato do Egito. Baseado em suas experiências, ele começou a comprar mamelucos em grandes números e baseou seu poder nestes leais soldados de elite. Ele criou vários regimentos, dos quais a Bahriyya e a Jamdariyya eram as mais poderosas e elitistas. Como oficial do regimento Bahriyya, Baybars e seus camaradas estavam em próxima associação com seu patrão e muitos deles ocupavam as posições mais importantes da corte real.

Baybars também teve bastante experiência em campo de batalha antes de se tornar sultão. Ele provavelmente esteve na Batalha de Gaza/La Forbie em 1244 (as fontes mencionam um Baybars, mas não especificam se era “o” Baybars) onde as-Salih Ayyub e seus mamelucos e aliados corásmios infligiram uma impactante derrota sobre o exército aliado de cruzados e aiúbidas da Síria. Esta foi a última vez em que os cruzados do Levante foram capazes de colocar uma força significativa no campo. As-Salih derrotou os corásmios, que se rebelaram contra ele e devastaram a Síria, em 1246, numa batalha próxima de Homs. As fontes não mencionam se Baybars estava lá, mas é provável, pois as-Salih não deixaria seu regimento de elite Bahriyya para trás numa campanha tão importante.

Foi na Batalha de Mansura, em 1250, durante a Sétima Cruzada de Luís IX que Baybars realmente se distinguiu. Baybars estava no comando efetivo do regimento Bahriyya nesta batalha. O sultão morreu por causa de complicações médicas durante a campanha; sua morte foi mantida como um segredo por Shajar ad-Durr (que era, agora, sua esposa) e um pequeno círculo de líderes. O comandante do regimento Bahriyya, Faris ad-Din Aqtay foi enviado de Hisn Kayfa (no sudeste da Turquia) para trazer de volta o herdeiro de as-Salih, Turanshah.

A Batalha de Mansura parecia ser uma vitória para os cruzados. Roberto de Artésia e seu contingente de cavaleiros cruzaram o canal de Ashmum em um ponto pouco vigiado com a ajuda de um beduíno. Ele lançou um ataque surpresa sobre o acampamento militar egípcio que ficava a cerca de 3 a 5 quilômetros de Mansura, forçando a maioria das forças ali estacionadas a se retirarem e matando Fakhr ad-Din, o comandante do exército. Os cruzados, então, entraram na cidade de Mansura. Joinville afirma que foi ideia de Baybars deixar os portões da cidade abertos para atrair o inimigo para as ruas estreitas e, assim, perder coesão. Baybars e os Bahriyya reuniram as outras unidades em retirada, restauraram a ordem e as posicionaram em vários pontos da cidade. Roberto e seus homens avançaram profundamente em Mansura, enquanto sofriam ataques vindos dos becos e telhados.

Quando chegaram no palácio, foram recebidos pelos Bahriyya, dispostos em formação de batalha. Estes mamelucos estavam tão fortemente armados quanto os cavaleiros francos e eram mais do que páreo para eles. Roberto de Artésia morreu na luta com centenas de cavaleiros e quase todos os templários que acompanhavam a expedição de Luís IX. Pouco depois do desastre em Mansura, Luís IX e o restante de seu exército começaram a retirar-se para Damieta. Cerca de dois meses após a Batalha de Mansura, os cruzados sofreram outra derrota devastadora na Batalha de Fariskur, em 6 de abril. Neste momento, Turanshah tinha chegado para tomar o comando do exército egípcio. O exército de Luís foi destruído; aqueles soldados e cavaleiros que não foram mortos foram feitos prisioneiros junto ao rei.

Turanshah não governou por muito tempo. Ele desprezava os Bahriyya por seu poder e influência sobre o Egito e procurou substituí-los por seus próprios mamelucos e apoiadores. Ele até ameaçou executar seus líderes e confiscar sua propriedade e riqueza. Os Bahriyya não esperaram e atacaram Turanshah preventivamente. Eles o atacaram em seu acampamento e um mameluco feriu a mão do sultão com sua espada. Turanshah fugiu para uma torre de madeira próximo do Nilo. Os mamelucos queimaram a torre e expulsaram o inimigo. O sultão tentou correr para o rio, mas foi ferido por uma lança que foi enfiada em suas costelas enquanto tentava escapar. Ele tentou chegar na água, mas os Bahriyya estavam logo atrás dele e atiraram flechas contra ele a partir da margem do rio. Alguns relatos dizem que foi o próprio Baybars quem entrou no rio para desferir o golpe mortal no infeliz monarca enquanto ele implorava por sua vida; outros relatos afirmam que foi Aqtay quem acabou com ele.

A Batalha de Ayn Jalut

A próxima década foi uma de caos na história do Egito. As várias facções e homens fortes não conseguiram decidir quem seria o próximo sultão. Inicialmente, os Bahiryya elevaram Shajar ad-Durr à posição de sultana. No entanto, uma mulher no trono do Egito não foi bem visto pelo Califa Abássida em Bagdá. Izz ad-Din Aybak, um oficial de patente intermediária foi elevado ao cargo de atabek (comandante do exército) e sultão, apenas para ser substituído cinco dias depois por Ash-Ashraf Musa, um descendente da Casa de Ayyub de apenas seis anos. Ash-Ashraf foi sultão titular do Egito até 1254. Aybak permaneceu na posição de atabak e também foi regente. Ele era o poder por trás do trono junto a Aqtay, o líder dos Bahriyya.

Durante este período, Baybars apoiou seu comandante Aqtay na promoção de seus interesses e dos de seus companheiros de Bahriyya. Em 1250, pouco depois da vitória em Mansura, as tribos beduínas do Alto Egito se revoltaram. Eles se recusaram a ser súditos de “escravos”. Baybars estava na expedição enviada contra eles. Ibn Abd az-Zahir, secretário de Baybars e autor de sua biografia, afirma que ele comandou 200 mamelucos contra um exército de 13 mil rebeldes. Houve também um número não especificado de auxiliares que se reuniram com Baybars para reforçar seus números e equilibrar a batalha. A rebelião foi reprimida de forma muito sangrenta.

Em 1254, ash-Ashraf foi deposto. No mesmo ano, Aqtay, que estava confiante de que podia tomar o sultanato, informou a Aybak de que ele estava se mudando para a cidadela com sua noiva, uma princesa aiúbida. Aybak convidou Aqtay para a cidadela para terem um encontro. Quando ele chegou, os mamelucos de Aybak, liderados pelo futuro sultão Sayf ad-Din Qutuz, cercou Aqtay e o matou. Como seu líder não retornou, os Bahriyya foram até a cidadela. A cabeça de Aqtay foi atirada por cima do muro em direção a seus seguidores, que se reuniam na portaria. Muitos dos Bahriyya, cerca de 700 a 800, fugiram para a Síria sob a liderança de Baybars. Eles serviram os príncipes aiúbidas al-Mughith de Kerak e an-Nasir Yusuf de Damasco como mercenários. Outros do Bahriyya fugiram para a corte seljúcida na Anatólia. Outro grupo de cerca de 130 mamelucos do Bahriyya se tornaram salteadores de estrada no Vale do Jordão. Quanto aos que permaneceram no Egito, foram mortos ou presos; alguns eventualmente fizeram as pazes com Aybak, que se autoproclamou sultão e assumiu o título real de al-Muizz.

Em 1257, Aybak foi assassinado por Shajar ad-Durr. Ela se casou com ele e foi sua co-governante, assim como foi com seu ex-marido, as-Salih Ayyub. No entanto, após assassinar Aybak, nenhuma das facções mamelucas a apoiou. Ela e seus cúmplices foram presos na Torre Vermelha da cidadela. Aqueles que participaram do assassinato de Aybak foram crucificados e Shajar ad-Durr foi morta. De acordo com alguns relatos, ela foi espancada até a morte pelas concubinas de al-Muizz Aybak. Seu corpo foi jogado numa vala fora dos muros da cidadela. O filho de 15 anos de al-Muizz Aybak foi elevado ao trono, mas foi o seu tenente, Qutuz, quem deteve as verdadeiras rédeas do poder.

Em 1259, Qutuz tomou o sultanato para si, usando a necessidade de se ter uma liderança forte contra as invasões mongóis como desculpa. Enquanto isso, Baybars estava ocupado na Síria. Ele liderou duas invasões do Egito em nome de al-Mughith, o emir aiúbida de Kerak em 1257 e 1258. As duas invasões fracassaram, mas Baybars e seus camaradas se destacaram contra números superiores nessas batalhas. Baybars se saiu muito melhor na Síria lutando contra os outros príncipes aiúbidas e tornou-se conhecido como um guerreiro feroz e um excelente comandante militar.

Em 1260, Baybars fez as pazes com Qutuz. Ele estava desapontado com an-Nasir Yusuf, o príncipe damasceno a quem servia, porque o último não estava disposto a lutar contra os mongóis e, em vez disso, se submeteu a Hulagu Khan. Na Batalha de Ayn Jalut, em 1260, Baybars liderou a vanguarda do exército egípcio contra os mongóis. Mais uma vez, ele e os Bahriyya se destacaram e foram um importante elemento que assegurou a derrota das forças mongóis. Baybars e um grupo de emires conseguiram isolar Qutuz na viagem de volta ao Cairo e o assassinaram. Se o relato de Ibn Abd az-Zahir puder ser confiado, foi mais uma vez Baybars o responsável pelo golpe mortal. Baybars foi proclamado como novo sultão por seus seguidores e todo o exército fez o mesmo.

O Sultão

Baybars passou todo o seu reinado (1260-1277) reforçando o exército mameluco e se preparando para outra inevitável invasão mongol. Durante seu reino, o exército regular cresceu significativamente. Sob os aiúbidas, o número de cavaleiros regulares mantidos no Egito era de cerca de 10 a 12 mil. Sob Baybars, este número ficou entre 30 a 40 mil, incluindo os mamelucos reais, os mamelucos dos emires e a Halqa (uma unidade de cavaleiros livres profissionais). Baybars também recrutou turcomenos, beduínos e curdos como auxiliares e os empregou como batedores, guardas de fronteira e invasores contra os mongóis do Ilcanato e como patrulheiros de rodovias para manter as estradas seguras.

Ele também estabeleceu uma efetiva rede de espionagem que o alertava sobre quaisquer ataques mongóis iminentes. Sob Baybars, o exército sempre estava em estado de alerta. Ele realizava revisões militares frequentemente para garantir que todos os soldados mantivessem seus equipamentos e estivessem prontos para o combate. Em um caso, o historiador al-Maqrizi afirma que Baybars ordenou que todos os mamelucos fabricassem flechas e praticassem tiro com arco; ele também participou dessas atividades.

Baybars continuou a luta contra o que restou dos Estados Cruzados. Ele sitiou e conquistou Cesareia, Arçufe, Safed, Jafa, Antioquia e a Fortaleza dos Cavaleiros. Ele enfraqueceu os francos do Levante a tal ponto que seus sucessores, Qalawun e seu filho, ash-Ashraf Khalil, facilmente os derrotou, conquistando seus dois últimos redutos: Trípoli e Acre.

Ao longo de suas campanhas, Baybars participou ativamente tanto no planejamento, liderança e combate nas batalhas e cercos. Por exemplo, durante o sítio de Cesareia, Baybars examinou pessoalmente o trabalho de mineração avançando para as mulheres sob a proteção de uma dabbaba (máquina de cerco medieval). Ele, junto à sua comitiva pessoal, também escalou uma alta torre de igreja adjacente à cidadela e jogou flechas nos defensores que estavam na parede. Baybars também participou pessoalmente dos combates e do ataque à cidadela.

A última campanha de Baybars ocorreu em 1277. Ele invadiu a Anatólia, governada, naquele período, pelos Seljúcidas de Rum, que foram conquistados pelos mongóis e se tornaram seus vassalos. Na Batalha de Elbistan, ele derrotou um exército mongol. Os dois exércitos tinham entre 10 e 15 mil homens. Os mongóis deslocaram um tumen junto a 3 mil tropas vassalas georgianas e alguns auxiliares seljúcidas. Apesar de repelir a ala esquerda do exército de Baybars, o exército mongol foi esmagado na batalha. O tiro com arco mais preciso e de maior alcance dos soldados mamelucos, suas armaduras pesadas e seus cavalos de guerra maiores e mais fortes contribuíram para o resultado da batalha, em que cerca de 6 a 10 mil mongóis e georgianos foram mortos, em oposição a um número relativamente pequeno de mamelucos. Baybars liderou pessoalmente um pequeno bando de mamelucos num contra-ataque à ala direita mongol que estava repelindo sua ala esquerda.

Baybars ocupou a capital seljúcida de Cesareia na Anatólia após a sua vitória, se autoproclamou sultão e cunhou moedas em seu nome. Ele morreu na Síria no mesmo ano, em sua viagem de retorno ao Cairo. Há várias especulações acerca de sua morte. Ele pode ter bebido qumis (leite de égua fermentado) envenenado; pode ter morrido por causa de um ferimento de batalha; ou pode ter morrido por causa de uma doença. Na época de sua morte, Baybars deixou um sultanato estável com um forte exército que estava pronto para a próxima grande invasão mongol. Ele estabeleceu o modelo para a organização do exército e seu treinamento, que foi seguido por gerações após sua morte.

A história de Baybars é exemplar das carreiras de muitos soldados-escravos do Mundo Muçulmano Medieval e Moderno. Ele deixou de ser refugiado e escravo para se tornar soldado, oficial e, depois, governante. A maioria dos governantes mais bem-sucedidos do Sultanato Mameluco passou por um período similar de escravidão, treinamento e promoção na hierarquia. Apesar de nem todo soldado-escravo se tornar um sultão, muitos deles se tornaram oficiais, administradores e governadores. Eles (mesmo os mamelucos comuns_ gozaram de um status especial na sociedade e tiveram a oportunidade de ascender à riqueza e ao poder através do mérito, numa época em que subir na escala social não era muito comum entre os povos nascidos livres, tanto da Cristandade Europeia, quanto do Mundo Muçulmano.

Texto original em Medievalists.