Ao longo da História, diversos locais e pessoas se encontram em situações que eram ao mesmo tempo análogas, mas completamente distintas. Análogas, mas distintas, por se passarem algumas vezes em um mesmo local, por exemplo, e com um mesmo grupo de indivíduos, mas englobarem duas realidades distintas: o Muro de Berlim, que dividiu a cidade por 28, dividindo os berlinenses em duas realidades diametralmente diferentes e opostas. Do mesmo modo, é assim até hoje na Península Coreana: a “zona desmilitarizada da Coreia” divide o país em dois - Norte, comunista e Sul, capitalista - numa segregação espacial e societária de um povo que influencia até no idioma. Do mesmo modo que nascer de um lado de Berlim ou do outro definiria se você viveria num paraíso libertino e capitalista ou numa sociedade igualitária, mas sob o cruel olho da Stasi (o infame serviço secreto da Alemanha Oriental), nascer de um lado da DMZ determina se você viverá um paraíso capitalista ou no regime mais fechado da Terra.

Muros muitas vezes distinguem realidades opostas, mas nem sempre esses muros são visíveis.

É tendo essas situações em mente que iremos analisar o caso de duas mulheres judias sefarditas, oriundas de Portugal que, vivendo ambas no século XVI, tiveram destinos diferentes vivendo em lugares diferentes, embora em situações análogas e sempre movidas por um único desejo: poderem praticar livremente a religião de seus ancestrais.

Começaremos nossa história na Aragão do final do século XV, quando, após a conquista do último reino muçulmano da Península Ibérica - Granada - a tolerância religiosa para com muçulmanos e judeus sofreu um revés crítico: deveriam converter-se ao Catolicismo ou então enfrentarem o exílio (que incluía deixar seus pertences, propriedades e até mesmo filhos pequenos para o Estado e a Igreja) ou a morte. Muitos foram batizados forçosamente, ficando conhecidos como conversor, e dentre eles estavam os membros da família judia dos Nasi. No entanto, eles, como muitos outros, continuaram a praticar sua religião judaica secretamente. Em virtude disso, fugiram para Portugal, onde havia mais tolerância religiosa…, porém não por muito tempo, uma vez que em 1497, os judeus de Portugal foram, assim como na Espanha, forçados à conversão, com as mesmas consequências caso se recusassem.

A queda de Granada em 1492 marcou o início do fim das comunidades mourisca e sefardita da Ibéria.

Gracia (a versão espanhola do nome hebraico Hannah) Mendes (seu sobrenome conjugal) Nasi nasceu em Lisboa, em 1510. Batizada por seus pais, como era esperado que fizessem, recebeu o nome de Beatriz de Luna. Em 1528, ela se casou com Francisco Mendes, seu parente - portanto, também um converso - numa cerimônia católica na Catedral de Lisboa; em casa, sua família os casou numa cerimônia judaica, que incluía a assinatura do documento matrimonial judaico chamado ketubah. Francisco era um rico mercador lisboeta de especiarias, o que lhe deu posição como uma mulher rica e lhe deu a possibilidade de se inteirar nos negócios de seu marido, também.

Uma “ketubah” é um contrato de matrimônio religioso no Judaísmo. Sua feitura por Gracia e seu marido indicam o ímpeto de preservar a fé judaica em todos os seus aspectos possíveis.

Dez anos depois, Francisco veio a falecer, tendo sido enterrado primeiro em Lisboa, mas sendo transferido depois por Gracia até Jerusalém, mediante autorização da Igreja. A herança e a empresa de Francisco foram repartidas entre Gracia e seu irmão, Diogo, que passaram a tentar se estabelecer com seu negócio fora de Portugal para poderem retornar ao Judaísmo e escapar da recém-estabelecida Inquisição de Lisboa, cujo objetivo principal era caçar conversor relapsos e ‘hereges’ protestantes.

Estabelecendo-se em Antuérpia, na atual Bélgica, Gracia e Diogo prosperaram graças aos seus contatos comerciais diversos, que incluíam oficiais e comerciantes do Império Otomano, onde Gracia tinha ido enterrar seu falecido marido anos antes. Entretanto, cinco anos depois dessa mudança, Diogo veio a falecer, deixando Gracia no comando total da empresa da família. A enorme riqueza que adquiriu permitiu-lhe influenciar reis e papas, o que ela fez para proteger seus companheiros conversos. Acredita-se que ela foi também a força motriz por trás da publicação da Bíblia de Ferrara a partir de textos originais sefarditas, diretamente do idioma ladino, uma vez que a segunda impressão pública do livro foi dedicada a ela.

Dona Gracia não deixou nunca de ser uma “mecenas” do Judaísmo: provavelmente financiou a “Bíblia de Ferrara”, traduzida do Tanakh ladino, para que os judeus tivessem acesso às suas próprias escrituras, o que era vetado.

Começando em Antuérpia, então sob o domínio Habsburgo, ela elaborou uma rede de fuga para cripto-judeus fugirem da opressão em Espanha e Portugal, onde estavam constantemente sob ameaça de prisão, tortura e cruel morte pela Inquisição. Esses convertidos em fuga foram primeiro enviados secretamente para navios de especiarias, pertencentes à família, que navegavam regularmente entre Lisboa e Antuérpia. Em Antuérpia, sua equipe dava aos refugiados instruções e dinheiro para viajar de carroça e a pé pelos Alpes até a grande cidade portuária de Veneza, onde foram feitos arranjos para transportá-los de navio para o Império Otomano. Naquela época, o Império Otomano, uma nação muçulmana sob governo do Sultão Suleiman, o Magnífico, acolhia os judeus em suas terras.

Com sua riqueza, advinda do comércio, Dona Gracia ajudou a resgatar e salvar centenas e quiçá milhares de judeus das garras das Inquisições ibéricas.

Após ela e sua família se mudarem para Veneza (1544), e depois para Ferrara (1459), na Itália, problemas com sua cunhada levaram-na a se estabelecer sozinha em Veneza, onde podia praticar o Judaísmo abertamente (segundo a legislação veneziana), mas tinha de morar no gueto judaico.

Depois de se acordar com sua cunhada, ela e sua filha Ana e uma grande comitiva se mudaram para Istambul, a capital dos domínios otomanos, onde ela arranjou para sua filha um casamento com seu sobrinho e sócio de seu falecido marido, Don Joseph Nasi. Além de casado com a filha de Gracia, Joseph posteriormente viria a ser agraciado pelo Sultão Selim II - o filho e sucessor de Suleiman I - como duque das ilhas de Naxos, em virtude de sua amizade de longa data com Selim desde que este era príncipe e os serviços de sua família ao Império.

Sultão Suleiman I, “o Magnífico”. Considerado o maior sultão do Império Otomano, recebeu de braços abertos milhares de refugiados judeus, inclusive os Mendes-Nasi, aos quais se achegou e se aliou.

Uma vez em terras muçulmanas, os Mendes-Nasi agora podiam praticar livremente sua fé judaica, sem precisarem se esconder ou morar em favelas e guetos. Dona Gracia vivia confortavelmente no bairro europeu de Gálata, na capital, levando seus negócios e, ainda, mantendo sua rede de rotas de refugiados sefarditas da Península Ibérica para terras otomanas.

Em 1556, logo após a chegada de Dona Gracia a Constantinopla, o Papa Pio V condenou à execução um grupo de conversos em Ancona, queimando-os brutalmente na fogueira; seu crime: supostamente ainda praticavam ritos judaicos. Em resposta, Doña Gracia organizou um embargo comercial do porto de Ancona nos Estados papais. Em Istambul, ela construiu sinagogas e yeshivas. Uma das sinagogas leva inclusive seu nome (“La Señora”). Essas instituições foram criadas principalmente para ajudar os refugiados a retornar (teshubah) ao Judaísmo.

Em 1558, Dona Gracia recebeu um arrendamento de longo prazo na região de Tiberíades na Galileia (parte da Síria otomana na época), do Sultão Suleiman, o Magnífico, em troca de garantir um aumento substancial nas receitas fiscais anuais. O Império Otomano, sob o sultão, havia conquistado aquela parte da Terra Santa alguns anos antes, mas era em grande parte um lugar desolado. Como resultado, ela obteve autoridade para governar a área de Tiberíades e desenvolvê-la e povoá-la com seus correligionários judeus.

A cidade de Safed, na Galileia, foi extensivamente reparada e melhorada durante o Sultanato de Suleiman I graças à intermediação de Dona Gracia na região. Safed se tornaria, décadas depois, o lar da mais reputada escola cabalista judaica, após ser lotada de yeshivas.

Com a ajuda do Sultão Suleiman, ela então começou a reconstruir as cidades abandonadas da área para disponibilizá-las aos refugiados para que eles pudessem se estabelecer lá se quisessem. Seu objetivo era transformar Tiberíades em um importante novo centro de assentamento, comércio e aprendizado judaico. Uma viajante judia que visitou Tiberíades nessa época menciona como ela apoiou a comunidade judaica de lá e como eles buscavam ajuda em outras comunidades, além de a receberem da Sublime Porta (o governo otomano). Este empreendimento tem sido frequentemente chamado de uma das primeiras tentativas de formar um movimento sionista moderno. Dona Gracia Mendes Nasi morreu em Istambul no início de 1569.

Dona Gracia Mendes Nasi: com a ajuda do Islã, repovoou a terra da Palestina com refugiados judeus.

Retornando ao Portugal do início do século XVI, temos o nascimento de outra menina judia que se tornaria, assim como Gracia, uma ilustre “matriarca” do Povo de Israel. Estima-se que a senhora Branca Dias Coronel tenha nascido em 1515, na freguesia de Viana do Castelo, no norte do país. Oriunda, também, de uma família de converso, ela se casou com Diogo Fernandes, outro converso, que por sua vez ganhou de Duarte Fernandes a sesmaria de Camaragibe, na então primitiva e pouco desenvolvida colônia de Santa Cruz (Brasil), onde hoje é Pernambuco. Deixando sua família em Lisboa, Diogo partiu para o Novo Mundo em busca de sucesso e riqueza.

Todavia, acontece que a senhora Branca não era uma conversa comportada: como tantos outros, ela praticava o Judaísmo em segredo, e acabou sendo denunciada pela própria mãe e irmã (não se sabe ao certo o motivo) para a Inquisição de Lisboa. Tendo sido julgada e condenada pelo tribunal pelo “crime de judaísmo”, conforme consta no processo número 5736 do Tribunal do Santo Ofício, datado de setembro de 1543, à pena de “abjuração pública, dois anos de cárcere e hábito penitencial, ficando reservada a sua comutação e dispensa”. Sua mãe e irmã foram, ironicamente, presas sob a mesma acusação mais tarde.

Branca Dias foi forçada à humilhação pública no chamado auto-de-fé, além de ficar dois anos cativa

Passados dois anos, em uma petição, Branca Dias pediu dispensa do tempo que lhe faltava cumprir, ao que foi atendida, talvez em razão de ter filhos pequenos para criar, incluindo uma - Briolanja - que seu marido tivera com uma criada, à qual Branca acolheu como sua própria filha depois de perdoar o marido.

Uma vez livre, em 1545 Branca e sua família trataram de mudar-se de Portugal para o Brasil, onde a Inquisição ainda não havia chegado (mal tinham chegado os portugueses, naquela época). Lá chegando, ela se juntou ao marido, que tinha erguido um engenho de cana-de-açúcar, o produto-chave do Brasil Colônia em seus primórdios, tendo continuado, ainda, a praticar o Judaísmo, junto de outros conversos que também imigraram para a região. Há rumores até de que ela tenha erguido uma “esnoga” (sinagoga) clandestina para o culto judaico nas redondezas, fazendo de sua filha Brites - que era deficiente -, uma “guardiã da Torá”, coisa incomum às mulheres no Judaísmo.

Casa de Branca Dias em Pernambuco, enquanto passava por um processo de restauração após séculos de descaso.

Após um ataque de índios Tupinambás, o engenho do casal foi destruído e seu sócio, devorado num ritual antropofágico. Branca decidiu, então, criar uma escola para moças na cidade de Olinda para ajudar a sustentar sua grande família de 11 filhos.

Após a morte do marido em 1567, Branca tornou-se a primeira proprietária de engenho conhecida, permanecendo no comando do que restou do Engenho de Camaragibe e da Escola por dez anos, pois a maior parte das terras teve que ser vendida. Tendo que criar muitos filhos e enfrentando dificuldades, mudou-se definitivamente para Olinda. Assim, passou a dedicar-se inteiramente a educar as garotas na sua escola de etiqueta, ensinando-lhes boas maneiras, a lavar, costurar, bordar e cozinhar.

Senhora de engenho, professora, guardiã da tradição judaica e matriarca familiar: uma das mulheres mais notáveis de nossa história.

Branca morreu em 1574 e sua grande família - uma das primeiras do Brasil - hoje encontra-se na genealogia de muitos ilustres nordestinos, desde o cantor Belchior até o político cearense Ciro Gomes. Seu legado também vive nas lendas sobre sua pessoa, que abundam em Pernambuco e no Ceará. Apesar de sua morte tranquila, após o estabelecimento da Inquisição no Brasil nos anos 1590, para caçar os conversos relapsos, seu neto Jorge foi interrogado; todavia, seu único crime foi a sodomia.

Em 3 de agosto de 1603, Brites de Sousa e sua mãe Andresa Jorge, outra filha de Branca Dias, nascidas e residentes em Pernambuco, também foram investigadas e sentenciadas a ir ao Auto de Fé (humilhação pública) em Lisboa. Nessa mesma data, Briolanja Fernandes, filha bastarda de Diogo, mas criada como sua própria por Branca, foi sentenciada ao Auto de Fé realizado na Ribeira, em Lisboa, com as penas de ir ao Auto de Fé e prisão. Ela foi solta dos cárceres a 6 de setembro de 1603.

Bibliografia:

  • STADTLER, Bea (1969). "The story of Dona Gracia Mendes."
  • BIRNBAUM, Marianna (2001). "The Long Journey of Gracia Mendes."
  • DE LIMA, Cândido Pinheiro Koren (2012). Branca Dias. Fundação Gilberto Freyre.
  • NISKIER, Arnaldo (2017). Branca Dias: O Martírio. São Paulo: Consultor