Texto de: Pedro Gaião

A Batalha de Tours-Poitiers não tem o valor messiânico que a mídia e boa parte dos historiadores, alguns até mesmo historiadores militares, atribuem a ela. A campanha levantada pelos árabes que viria a culminar em Tours, não se tratava de uma campanha de conquista, mas de rapina.

Isso significa dizer que as hostes levantadas estavam interessadas em invadir, pilhar tanto quanto possível e depois ir embora. Este tipo de campanha é consideravelmente menos oneroso e, muitas vezes, mais rentável, pelo retorno financeiro.

É por isso que todas as civilizações da época, especialmente as mais primitivas, faziam mais campanhas de rapina do que de conquista. Um exemplo são os próprios galeses, que invadiam a fronteira inglesa por uma ou duas vezes ao ano.

Nestas temporadas, eles pilharam o que era de valor, queimavam casas e frequentemente fugiam antes do inimigo ter condições de levantar um exército para responder. Entre os povos celtas ou gaélicos da Grã Bretanha existia ainda outro gênero de campanha de rapina conhecida como “Cattle-Raiding”, ou “pilhagem de gado”, consiste em ataques surpresa à fazendas e feudos com o objetivo de roubar gado, além de queimar casas e plantações.

Como os celtas geralmente praticavam estas guerras entre si, eles já se preparavam para este tipo de fenômeno fugindo com o gado para florestas até o inimigo voltar para casa, depois era só reconstruir o que foi destruído e fazer a mesma coisa na próxima temporada de Cattle-Raiding.

Alguns chefes e senhores vizinhos também puniam campanhas de rapina com suas próprias campanhas de rapina, invadindo o inimigo enquanto eles estavam fora da sua própria terra. Era assim, por exemplo, que os ingleses faziam na Escócia, e vice-versa.

Isso pode parecer um verdadeiro inferno para a nossa realidade, mas, de forma geral, era algo tradicionalmente aceito pelas sociedades da época.

Na península ibérica, de onde vem o nosso interesse maior, as campanhas de rapina mais peculiares são o que chamamos de razia, uma palavra do árabe para atividade de guerrilha, envolvendo roubo de gado, de ovelhas e incêndio de plantações.

Os especialistas neste tipo de guerra se chamavam “Almogávares”, já que esses primeiros saqueadores vinham dos elementos muçulmanos, que invadiam zonas rurais de potentados cristãos nas vizinhanças. Isso, no entanto, ainda é diferente de uma campanha de rapina como a que aconteceu em Poitiers.

Por mais que seja óbvio agora, depois de tanta explicação, a maioria das pessoas, historiadores inclusos, não são capazes de distinguir uma natureza militar da outra, o que acabou levando a manutenção de um mito de construção nacionalista francesa de que os francos salvaram a Europa da conquista islâmica. E estamos falando de grandes nomes: Le Goff e Umberto Eco são exemplos perfeitos disso.

Que seja claro: Poitiers não salvou a Europa do Islã. Campanhas de rapina se sucederam a este episódio e, como no caso de Faxinet, piratas e bandos militares muçulmanos continuariam tendo presença em certas partes do que viria a ser a França.

É claro, não deve-se privar os francos da vitória na Batalha contra um dos exércitos mais eficientes do século VIII, mas é necessário dar ao evento o valor que lhe é, de fato, legítimo, não mais e não menos que isso.

Bônus de algumas verdades inconvenientes:

1-) Até a ascensão do Império Otomano nunca houve um projeto de invasão consciente pela conquista da Europa Cristã. Isso só surge pela consolidação do revanchismo entre o Papa e o sultão. Ainda assim, isso não impediu ambos de se unirem aos franceses para combater o Império Espanhol, no reinado de Filipe II. Noções comuns de inimigos imediatos podem mudar a forma como inimigos tradicionais se tratam

2-) Não foi o desarmamento civil que expôs o Reino Visigodo à conquista islâmica. Armar civis antes da revolução da pólvora e de Colt não causava nenhum efeito significativo na defesa de um território. O que venciam as guerras eram números de soldados treinados, coesão, disciplina, brilhantismo tático e política.