Texto de: Pedro Gaião

Logo após os Cavaleiros Templários, a Ordem dos Cavaleiros Hospitalários é sem dúvidas a mais famosa das Ordens Militares dos tempos das Cruzadas. Embora mais antiga que a Ordem do Templo, a Ordem do Hospital de São João de Jerusalém não nasceu como uma fraternidade de cunho militar. Originalmente, ela era tão somente uma ordem monástica de auxílio caritativo aos doentes, pobres e feridos, fundada em 1099, pouco após a Conquista de Jerusalém pelos guerreiros da Primeira Cruzada (1095-99).

Contudo, a imensa popularidade do conceito de monge-cavaleiro trazido pela Regra dos Templários foi tão magnética que, por seu exemplo, diversas ordens monásticas da Terra Santa se militarizaram. Dentre estas, a Ordem do Hospital esteve entre os primeiros a aderir à essa tendência. Em não muito tempo, ela mesma já rivalizava com a sua análoga templária em poderio militar e, é claro, em terras.

A caótica sucessão de eventos trouxe resultados mistos para os Cavaleiros Hospitalários. A perda da Terra Santa foi sem dúvida um grande abalo moral para os cavaleiros que tinham o Outremer (ie. Oriente Médio) como seu objetivo último. Apesar disso, as tentativas do Papa de reformar todas as Ordens Militares da Igreja nos Hospitalários permitiu aos cavaleiros se apossar de uma série de propriedades de muitas outras ordens, especialmente das propriedades dos Templários, cuja dissolução no início do século XIV tornou a Ordem do Hospital incontestavelmente a maior força bélica do monasticismo católico; sendo geralmente responsáveis até mesmo pela guarnição e organização dos edifícios papais em Roma e Avinhão.

Seguindo o exemplo dos Cavaleiros Teutônicos, que no século XIII criaram seu próprio Estado soberano no Báltico, às custas dos povos pagãos que lá viviam, os Hospitalários também procuraram formar seu próprio Estado Independente. O local escolhido para ser invadido, porém, não era muçulmano ou pagão, mas cristão: Rodes, uma ilha grega sob domínio do decadente Império Bizantino.

A despeito do ideal cruzadista ter surgido alegando proteger o Império Bizantino, campanhas predatórias sobre domínio grego-ortodoxo de Rodes – considerados cismáticos pelos católicos – já haviam sido traçados ainda em 1299, quando o Papa Bonifácio VIII convidou o rei Frederico III da Sicília a conquistá-la [1]. Foi Sancho, o meio-irmão do Rei e ele mesmo um cavaleiro hospitalário, quem liderou as primeiras expedições contra ilhas bizantinas, em 1305 [2]. E apesar de haver diversos planejamentos católicos de conquistar Rodes durante uma Cruzada no Oriente, foi a determinação dos cavaleiros hospitalários, que lançaram uma série de campanhas contra Rodes desde 1306, que receberam o reconhecimento solene do Papado sobre os direitos da mesma, em 1307 [3][4]. Rodes foi finalmente conquistada em 1310, tornando-se o novo quartel-general da Ordem [5].

>Estados do Oriente Próximo em 1450. As possessões dos cavaleiros hospitalários são marcadas em azul, com Rhodes sendo a maior de todas as suas ilhas.

Rodes serviu como um importante ponto de contestação do poder islâmico no Mediterrâneo até sua conquista pelos otomanos, em 1522. Para compensar essa perda, o poderoso Carlos V da casa Habsburgo ofereceu à Ordem uma coleção de novas possessões, em 1530 [6].


Enclaves cedidos por Carlos V enquanto Rei da Sicília: as ilhas de Malta e Gozo, assim como a recém conquistada cidade portuária de Trípoli, tomada dos muçulmanos em 1510. Embora tais enclaves fossem tratados como vassalos do Reino da Sicília, a Ordem desfrutava de uma soberania de facto [6].

Embora Malta tivesse se mostrado uma possessão razoavelmente insignificante por séculos até sua doação à Ordem, ela desfrutava de uma posição privilegiada bem no eixo do Mediterrâneo. Quando os hospitalários passaram a fortificar a ilha e armá-la até os dentes com navios, canhões e homens, Malta se converteu num dos principais baluartes avançados da Cristandade Católica [7].

De monges guerreiros à comerciantes de escravos

Embora os cavaleiros hospitalários sejam exaltados pela sua cortesia cavalheiresca e pela dedicação às causas mais nobres, valentes e cristãs que já existiram no Oriente, pouco se fala sobre seu envolvimento profundo com a escravidão e a pirataria no Mar Mediterrâneo.

“O desenvolvimento dos Cavaleiros de Malta como uma potência naval, principalmente com base em sua atividade corsária, explica por que os Cavaleiros puderam se tornar o mais importante Estado escravista cristão dentro do Mediterrâneo. A pilhagem e os escravos que os Cavaleiros de Malta conseguiram obter com suas operações navais acabaram se tornando uma parte essencial da economia maltesa. A fortificação de Malta dependia principalmente de uma força de trabalho de escravos, as galés que constituíam quase toda a força naval dos Cavaleiros dependia de escravos para manobrar os remos. Resgates também eram um grande incentivo para os cavaleiros não hesitarem em negociar seus prisioneiros de volta para as forças islâmicas e, finalmente, a pilhagem foi uma importante fonte de renda. Então, levar em consideração a localização geográfica de Malta, na linha de frente entre a cristandade e o Islã, assim como o caráter guerreiro que os cavaleiros personificavam enquanto ‘defensores da cristandade’ contra o Islã, foram ingredientes importantes para o desenvolvimento do corso maltês e da empreitada pirata. O cerco de Malta em 1565 foi um ponto de viragem para os cavaleiros e uma vitória que foi celebrada dentro da cristandade. Além disso, a batalha de Lepanto também teve um efeito para os cavaleiros. Os otomanos, após seus reveses, decidiram se concentrar mais no Levante do que no Mediterrâneo Ocidental. Embora a Costa da Barbária ainda estivesse ativa, seus números diminuíam e eventualmente ela teria problemas para competir com os Cavaleiros de Malta.” [8]

É claro que, sejamos justos, os cavaleiros hospitalários não inauguraram nada que já não houvesse em Malta: pirataria e escravidão existem na ilha desde tempos antigos, sendo praticada pelo povo maltês e alinhadas com as políticas de seus soberanos, sejam eles romanos, muçulmanos, bizantinos ou tantos outros. Esses escravos, muçulmanos, judeus, negros pagãos [9] ou cristãos cismáticos [10] – ou seja, não-católicos – eram vendidos e possuídos por aristocratas e clérigos da sociedade maltesa medieval muito antes da chegada das Ordem. É claro, isso é uma refutação cabal do argumento de que “a Igreja acabou com a escravidão na Idade Média”, mas nosso ponto aqui é que os cavaleiros não trouxeram costumes exatamente estranhos à ilha.

Pilar moldado em forma de “escravo turco” na Igreja de Malta, Viena, Austria.

Contudo, se por um lado já existia pirataria e da escravidão na sociedade maltesa, a densidade dessas práticas após a chegada da Ordem alcançaria proporções inimagináveis, com a própria Malta sendo o maior mercado escravocrata da Cristandade Europeia. A própria colunista do Times of Malta, um jornal nativo, nota:

“O livro Corsairs of Malta and Barbary, de Peter Earle, de 1970, publicado pelo Instituto Naval dos Estados Unidos, descreve o mercado de escravos maltês como um dos quatro maiores do Mediterrâneo.” [11]

A própria área de estudo, além de ser razoavelmente recente, não recebe a divulgação que deveria:

“A escravidão no Mediterrâneo não é o tópico mais popular entre historiadores. O comércio transatlântico de escravos entre a América e a Europa sempre foi a escolha de tópico muito mais popular quando se trata de escravidão. No entanto, durante os séculos XVI e XVII, a escravidão no Mediterrâneo era um componente importante; na verdade, o tráfico de escravos do Mediterrâneo superou até mesmo o tráfico transatlântico de escravos durante os séculos XVI e XVII, e isso apenas em termos da Costa Bérbere. […] A maior parte das pesquisas sobre o assunto consistem em estudos sobre os escravistas muçulmanos, como os escravistas da Costa Bérbere. Embora naturalmente eles sejam um elemento importante do comércio de escravos na região, os escravistas cristãos não devem ser subestimados, pois desempenharam um papel importante dentro nessa atividade. Recentemente, historiadores parecem fazer progressos para remediar a situação, com obras como: Catholic Pirates and Greek Merchants: A Maritime History of Early Modern Mediterranean, por Molly Green. No entanto, ainda há muita pesquisa a ser feita para mapear as práticas de escravidão no Mediterrâneo.” [12]

Que os cavaleiros hospitalários participaram do comércio escravocrata em Malta é simplesmente inegável [13]. No entanto, nem isso era uma novidade para os hospitalários; isto é, os cavaleiros não cederam, apesar do esforço, à força de prática escravista por influência maltesa ou islâmica; na verdade, eles já faziam isso pelo menos desde a época que ocupavam Rodes, de tal forma que a própria historiografia mais antiga cria que a invasão otomana da ilha hospitalária teria sido motivada, na verdade, “para extinguir um Estado-Corsário” [14]. Desta forma, a própria doação de Malta à Ordem já estava contextualizada no tipo de comportamento exibido anteriormente.

Na verdade, deveria ser claro para latino-americanos, e especialmente para brasileiros, que a Ordem têm um envolvimento consagrado com pirataria e corso. No Brasil Seiscentista, a própria “França Antártica” foi uma colônia fundada por um cavaleiro de Malta, Nicolas Durand de Villegagnon, corsário atuando pela Corte Francesa. Na América Central, durante o século XVII, a Ordem adquiriu quatro ilhas no Caribe. Ao passo que diversos exploradores e colonizadores franceses eram, também, cavaleiros da Ordem, atuando em empreitadas nos atuais Quebec (Canadá), Louisiana (EUA) e Guiana Francesa.

Possessões da Ordem de Malta no Caribe, durante o século XVII.

Mas se o corso já era uma realidade na vida da Ordem, a escravidão já lhes era conhecida desde os tempos das Cruzadas:

“Muitos feudos no Outremer levantavam dinheiro da indústria ou do comércio ao invés da agricultura, como na Europa Ocidental. Entre os mais ricos estavam feudos-monetários que incluíam engenhos de processamento de açúcar. Esta tecnologia foi copiada dos povos islâmicos no Oriente Médio mas, diferente dos seus vizinhos muçulmanos, a elite latina do Outremer frequentemente usava trabalho escravo para mover a pesadas prensas de pedra. Entre esses escravos estavam incluídas mulheres muçulmanas capturadas”. [15]

É claro que muitos poderiam tentar afirmar: “mas estes eram leigos, não homens da Igreja”. No entanto, não existe nada que sugira que as Ordens Militares da Igreja, como os Hospitalários, operassem de forma distinta. Na verdade, olhando com mais atenção, encontramos justamente essa equidade de uso de mão-de-obra escrava:

“Informação sobre o uso de escravos pelos Hospitalários emerge no século XIII, com estatutos da Ordem apresentando regras sobre sobre quando um irmão poderia comprar ou vender um escravo, se eles poderiam ser batizados e sob quais condições ele poderia ser liberto. McDermott nota que os Hospitalários estavam estabelecendo mais controle sobre o uso de escravos, de forma que cada vez mais eles pertenciam à própria Ordem ao invés de pertencer a indivíduos.

Enquanto alguns escravos poderiam ser usados como servos pessoais e outros poderiam ser vendidos a vários governantes europeus (incluindo o Papado), parece que a maioria iria ser encontrada trabalhando em plantações de cana-de-açucar. A produção de açúcar foi uma parte importante do rendimento hospitalário e a ordem era proprietária de numerosos latifúndios na ilha do Chipre. Registros de 1449 notam que uma dessas fazendas tinha 400 escravos trabalhando nela.

McDermott adiciona que escravos também eram mantidos na ilha de Malta, onde trabalhavam em trabalhos servis para a Ordem. Quando os Turcos Otomanos cercaram o quartel-general hospitalário em 1565, cerca de 1500 escravos estavam presentes, com cerca de 500 destes sendo mortos durante os combates.” [16]

Numeros da Escravidão

Malta era uma ilha esparsamente habitada. Apesar disso, durante os anos de 1600, cerca de 1.800 escravos viviam apenas nesta ilha, constituindo cerca de 8,5% de toda a população residente [17]. A reportagem do Times of Malta relata bem o cotidiano de senhores e escravos no Estado Hospitalário:

“Malta capturava regularmente milhares de turcos e norte-africanos para vender como escravos e os malteses eram participantes voluntários e beneficiários da indústria. Tínhamos uma economia bem estabelecida baseada na escravidão até que Napoleão nos arrastou para a Era Moderna em 1798, mas isto persistiu até os primeiros dias da era inglesa. Havia masmorras de escravos, mercados de escravos e agentes profissionais de resgate de escravos. `Malta como a Berbéria era um país permeado pela escravidão … quase todos os malteses eram servidos por escravos` (p. 170). O Sr. Earle descreve como `cavaleiros, sacerdotes e plebeus estavam todos presentes como compradores … esses escravos eram empregados como empregados domésticos, como escriturários e em lojas … existia um mercado interno ativo de escravos.` (p.171) e “o grande exército de escravos que se ocupava na construção das esplêndidas igrejas barrocas das aldeias de Malta seriam alimentadas pelas paróquias” (p.175).

Se a Sra. Vella olhasse para a história definitiva da escravidão em Malta por Godfrey Wettinger, ela encontraria mais informações especialmente sobre o tratamento brutal dispensado aos escravos e o desprezo por pessoas de outra cor de pele que persiste até hoje.” [18]

Alguns escravos tinham destinos mais miseráveis que outros:

“O pior predicamento para um escravo dos Cavaleiros Hospitalários era trabalhar nas galés como remador. A ordem militar geralmente mantinha 5 navios, cada um necessitando de cerca de 300 remadores. Quando a ilha de Rodes entrou sob controle hospitalário em 1310, eles conscreviam [ie. alistavam obrigatoriamente] locais para este serviço, mas por volta de 1462 esta prática foi abolida e substituída por um imposto. Após isto, parece que os escravos eram usados nos remos.

McDermott aponta diversos fragmentos de evidência que mostram como servir numa galé era considerado extremamente insalubre – por exemplo, era a punição para escravos regulares que cometeram algum tipo de infração. Ademais, os Hospitalários escreveram leis para disciplinar ou mesmo executar escravos que se mutilavam para evitar o trabalho nas galés.” [19]

Mas é claro que a Igreja, como uma instituição praticamente onipresente na sociedade, se preocupava com a questão dos escravos. Malta possuía uma Inquisição, a qual nos legou a maior parte dos pequenos detalhes sobre os escravos em terreno eclesiástico (afinal, a Ordem também era um braço monástico da Igreja Católica). Mas, ao contrário do que propangadistas católicos defendem, o interesse da Igreja não era condenar a escravidão, ao invés disso:

“As ações dos Hospitalários atraíram a atenção da Inquisição Católica, que começou a checar para ver se a Ordem estava usando cristãos como escravos, ou os impedindo de se converterem. No entanto, através de manobras diplomáticas, o Papa estabeleceu limitações sobre o que a Inquisição poderia fazer, permitindo aos Hospitalários continuar com suas práticas até Malta ser conquistada por Napoleão, em 1798.” [20]

Os registros da Inquisição, assim como os da própria Ordem, apontam que cerca de 20% de todos os seus escravos eram cristãos, provenientes da Grécia, Europa Central ou do Oriente Médio; isto é, “cismáticos”, o que permitia sua escravidão sob a leitura de que eles não seriam, em estrito senso, cristãos de verdade.

“Os gregos, como outros súditos da Sublime Porta [ie. Império Otomano], estavam sob risco de rapto e escravidão na Itália, especialmente se estivessem sob serviço otomano e manejassem seus navios. Como cristãos ortodoxos, eles eram qualificados como ‘cismáticos‘ e ‘meio-turcos’, razões consideradas suficientes para sua escravização. Lembremos que Caravaggio retornou a Roma com dois escravos gregos de Malta, como pagamento para suas pinturas na igreja de São João de La Valleta. Os cavaleiros-corsários da Ordem de Malta ou de Saint-Etienne não hesitavam em capturar gregos no mar ou na terra durante excursões em ilhas. Assim, os cavaleiros toscanos capturaram, na ilha de Negroponte, em maio de 1611, ’48 escravos, entre homens, mulheres, meninos e meninas’. Os judeus também se encontravam em situação comparável aos gregos” [21].

Vale lembrar ainda que diversos protestantes, alguns muito influentes, também foram usados como escravos pelos católicos no Mediterrâneo: em 1675, cerca de quarenta pastores e teólogos calvinistas húngaros foram escravizados em seu próprio país e deportados como escravos de galé no sul da Itália [22]. Tão conhecido é o caso que o próprio Papa João Paulo II pediu desculpas públicas em um ato solene, em agosto de 1991 [22]. Outro exemplo famoso é o do próprio John Knox, arquiteto da Reforma Protestante na Escócia, que serviu por 19 meses nesta condição servil [23].

Estátuda de um escravo turco no monumento funerário de Nicolas Cotoner na Co-Catedral de São João, Valletta, Malta

Quando um indivíduo era capturado e escravizado por ação dos corsários de Malta, eram todos levados para Malta, onde passariam uma quarentena em navio, antes de desembarcarem. Neste período, os capturados eram classificados e avaliados de acordo com sexo, idade, porte físico e afins, determinando seu valor de mercado. Escravos capturados por navios da Ordem pertenciam aos cavaleiros para utilizá-lo, ou presenteá-lo, como bem entendesse. Mas caso o navio em questão fosse secular, isto é, um navio maltês licenciado pela Ordem, o capitão que escravizou essas pessoas deveria pagar um imposto à Ordem por cada indivíduo capturado, podendo então fazer dele o que bem entendesse [24]. Na lei da Malta Hospitalária, um escravo era considerado propriedade total do seu dono, o que o colocava, teoricamente, em condições muitíssimo mais inseguras e abusivas do que seria sob um regime escravocrata islâmico, por mais irônico que isso possa soar [24]. Esta condição do escravo como objeto e propriedade total do seu proprietário foi confirmada até revisões legislativas tão tardias quanto 1724 [25], em plena Era do Iluminismo.

Aquele capturados que não foram capturados pelos cavaleiros e nem encontraram um proprietário durante a quarentena eram vendidos no mercado público de escravos em Valleta, na praça de San Giorgio, em frente ao “Palácio da Justiça” [26]. Durante todo este período, a maioria dos escravos em Malta pertencia an Ordem.

Praça de São Jorge (Misrah San Gorg) em Valletta, o antigo mercado de escravos

Para ilustrar a abundância e os números de escravos que fluíam a cada excursão, em 1600 mais de 700 escravos desembarcaram de uma só vez, dos quais 538 foram vendidos rapidamente após o desembarque [27]. Estudos foram feitos para determinar a quantidade de escravos em Malta:

“A malha commercial pode ser dividida em duas partes: a muçulmana, consistindo de Algiers, Tripoli, Tunis, Istanbul e Cairo […] e uma cristã com Lisboa, Valetta (Malta), Livorno e Marselhas como os principais centros. […] Do lado cristão, os espanhóis e italianos (incluindo a Ordem de Malta) eram os principais escravocratas.

O historiador talian Salvatore Bono nos dá uma estimativa de que cerca de 50.000-60.000 escravos estavam na Itália. Levando em conta as taxas de atrito, que eram muito mais baixas do que na Costa Bérbere, Bono estima que cerca de 500.000 muçulmanos devem ter estado na Itália durante o período de 1500-1800. Para a Espanha, é mais difícil obter números sobre suas atividades no Mediterrâneo, pois eles também participaram do comércio de escravos no Atlântico. A evidência, entretanto, aponta para cerca de 30.000-50.000 escravos. Extrapolando as mesmas taxas de atrito que Bono encontrou na Itália e aplicando-as à Espanha, temos uma estimativa aproximada de 500.000 escravos entre 1500-1800. Então, levando em consideração a Reconquista e a escravidão dos mouros (e o comércio transatlântico de escravos), é justo pensar que os números na Espanha excedem um milhão. Valetta – ou Malta – desempenhou um papel importante na aquisição desses escravos, se tornando o bastião da cristandade no Mediterrâneo. O mercado de escravos de Valetta em seu auge poderia competir com os mercados expansivos de Istambul e Algiers, que totalizavam cerca de 20.000 / 30.000 escravos. Resumindo, os Cavaleiros eram um dos participantes mais importantes do comércio de escravos.” [28]

Não é atoa que “a propria Valleta se tornaria a maior cidade de comércio de escravos da Cristandade no Mediterrâneo” [28].

“Pode se dizer que, como os Estados Bérberes, os Cavaleiros de Malta se tornaram um Estado Corsário. O Corso dos cavaleiros se provou tão popular que o Grão-Mestre da Ordem estabeleceu um tribunal em 1605, conhecido como o Tribunale degli Armamenti, para estabelecer ordem entre os corsários. Expedições contra outros Estados foram frequentemente vistas como empreitadas privadas, onde cavaleiros e civis poderiam adquirir uma carta de marque e então levantar as velas do corso. Seus objetivos eram capturar e abordar quantos navios islâmicos quanto possível, tomando escravos enquanto o faziam. Estes eram trazidos de volta a Malta. Os cativos frequentemente eram oferecidos para resgate, ou mandados para trabalhar como escravos-remadores nas galés da Ordem. Os cavaleiros, ademais, não tinham problemas em vender seus excedentes de escravos à outros pontentados cristãos. Por causa do sucesso marítimo do corso maltês, os cavaleiros puderem se estabelecer como um importante participante no comércio de escravos.” [28]

Concluindo, nas palavras de Fontenay: “A instalação dos cavaleiros de São João de Jerusalém em Malta em 1530 fez da ilha o mais importante mercado de escravos do Mediterrâneo Cristão por quase três séculos” [29].

O Uso da Tortura e castigos

O aquartelamento de dois principais conspiradores escravos em 1749.

Se as condições dos escravos costumavam ser péssimas e incertas, as punições, sem dúvidas, não fugiam do padrão de desumanidade, com direito a um curioso fenômeno conhecido como ritual de punição: “do uso de tortura para arrancar confissões de culpa ao desfile do condenado pelas ruas para servir de exemplo aos acusados, concluindo com a execução” [30]

O escravo Imselleti torturado por pinças aquecidas a caminho da execução, 1749.

“Um evento, que foi bem descrito nos anais da história maltesa, é a fuga falha e rebelião dos escravos em 1749, que testemunhou mais de 30 escravos sendo brutalmente executados. Alguns foram torturados no seu caminho para forca, o que incluía arrancar pedaços da carne com pinças aquecidas. As feridas eram, então, cobertas com alcatrão para impedir que os condenados sangrassem até a morte antes de serem enforcados. Os dois principais líderes do golpe foram poupados da forca, mas encontraram um fim ainda mais cruel. Eles foram deitados com as costas em duas jangadas, com cada um dos seus braços e pernas amarrados a um bote separado. Os botes remavam para longe da jangada, esticando os corpos dos escravos até que seus braços e pernas fossem estraçalhados enquanto ainda estavam vivos. “ [30]

Mas a despeito do sadismo das execuções públicas em Malta, ela não foi dura apenas para escravos, como o jornal Times of Malta nos revela:

“Antonio Cachia, também conhecido como Biscarello, deve ter ficado com muitas saudades de casa depois de meses no mar. Então ele quebrou a quarentena, que era compulsória para todos os navegantes que chegavam, para poder estar com seus parentes. O rapaz de 19 anos permaneceu em casa em Żurrieq por pouco tempo, porque foi capturado e enforcado na Ilha de Manuel, onde seu corpo foi deixado para apodrecer até o Grão-Mestre, que pescava naqueles arredores, ter se cansado da vista do cadáver.

60 anos depois, outro jovem teve o mesmo fim por roubar um crucifixo de prata da igreja paroquial de Żebbuġ como uma ‘piada’. Saverio Galea, que estava realizando estudos clericais, foi sentenciado para servir nas galés perpetuamente pela corte, mas o Estado – nesse caso o Grão-Mestre – mudou a sentença e ele foi enforcado. Cachia e Galea são dois de centenas de pessoas condenadas à forca quando os cavaleiros governavam a ilha” [31].

Os escravos Judeus

Como se não bastassem os cristãos não-católicos, os negros e os muçulmanos, a Ordem de Malta também escravizava judeus.

“Em 1530, Carlos V transferiu Malta para os cavaleiros Hospitalários da Ordem de São João, que havia sido expulsa de Rodes nove anos antes pelos muçulmanos. Toda a razão de ser da Ordem e de seu mandato em Malta residiam em um estado contínuo de hostilidade entre o mundo muçulmano e a cristandade, da qual os membros da Ordem constituíam, em certo sentido, cavaleiros errantes. Consequentemente, eles travaram uma guerra marítima contínua, dificilmente distinguível da pirataria, contra as potências muçulmanas. Portos marítimos foram invadidos e seus habitantes capturados.

O transporte marítimo era atacado indiscriminadamente, com os navios capturados trazidos para Malta e a tripulação e os passageiros vendidos em cativeiro. Ao longo do governo dos Cavaleiros, que durou até sua capitulação aos franceses em 1798, as ilhas foram, portanto, o último refúgio europeu do tráfico e do trabalho escravo.

[…]

As ilhas tornaram-se aos olhos dos judeus um símbolo de tudo o que era cruel e odioso no mundo cristão. Qualquer que seja a verdade do boato contemporâneo de que os judeus financiaram o grande cerco turco de Malta (1565), certamente eles assistiram com olhos ansiosos ao desenrolar do mesmo; e seu desapontamento com o fracasso turco deve ter sido grande. ‘Os monges de Malta ainda hoje são um laço e uma armadilha para os judeus’, lamenta um cronista judeu ao final de seu relato sobre o cerco. Uma profecia messiânica recorrente no início do século XVII expressou ainda mais a amargura do sentimento judaico, contando como a Redenção começaria com a queda dos quatro reinos de impiedade, o primeiro entre os quais estava Malta.

Uma captura típica, e uma das primeiras mencionadas na literatura judaica, é relatada no ‘Vale das Lágrimas’, de Joseph ha-Cohen:

‘No ano de 5312 (1552), os navios dos monges de Rodes, da ordem de Malta, navegando para encontrar espólio, encontraram um navio vindo de Salônica, onde se encontrava setenta judeus. Eles o capturaram e voltaram para sua ilha. Essas pessoas infelizes tiveram que apelar para terceiros para coletar o dinheiro do resgate exigido por esses monges miseráveis. Somente após o pagamento eles puderam continuar sua viagem. ‘

Em 1567, um grande número de judeus, fugindo para o Levante da perseguição do [Papa] Pio V, foram vítimas dos cavaleiros. ‘Muitas das vítimas afundaram como chumbo nas profundezas do mar antes do ataque furioso. Não foram apenas aqueles que estavam no que sofreram essas agressões. Dos marranos de Ancona, que foram vítimas do fanatismo e da traição do [Papa] Paulo IV, trinta e oito que escaparam à fogueira foram enviados acorrentados às galés de Malta, embora tenham conseguido escapar no caminho.

Chegados a Malta, os cativos estavam apenas no início de seus problemas. Um relato muito gráfico das condições é dado pelo viajante inglês, Philip Skippon, que visitou o local por volta de 1663:

ʻA prisão dos escravos é um edifício quadrado, claustro, onde a maioria dos escravos em Malta são obrigados a se hospedar todas as noites e a estar lá por volta da hora de Ave Maria. Eles têm aqui vários tipos de negócios, como barbeiros, alfaiates etc. Existem cerca de 2.000 que pertencem à Ordem, a maioria dos quais agora estão nas galés; e há cerca de trezentos que são criados de particulares. Sendo este lugar uma ilha, e difícil de escapar, eles usam apenas um anel de ferro ou correntes nos pés. […] Judeus, mouros e turcos são feitos escravos aqui e são vendidos publicamente no mercado.

[…]

Os judeus se distinguem dos demais por um pequeno pedaço de pano amarelo em seus chapéus ou bonés, etc. Vimos um judeu rico que foi levado cerca de um ano antes, que foi vendido no mercado naquela manhã em que visitamos a prisão por 400 escudos; e supondo-se livre, em razão de um passaporte que tinha de Veneza, agrediu o comerciante que o comprou; quando ele foi enviado para cá, sua barba e cabeça foram raspadas, uma grande corrente foi colocada em suas pernas e ele foi espancado com 50 golpes de porrete. ‘. “[32]

Bibliografia:

[1] LUTRELL, Anthony. The Hospitallers of Rhodes Confront the Turks, 1306–1421. ed Gallagher, P. F. Christians, Jews, and Other Worlds: Patterns of Conflict and Accommodation. New York and London: University Press of America. p. 282.

[2] ibid.

[3] ibid. p. 285.

[4] FAILLER, Albert. L’occupation de Rhodes par les Hospitaliers. Revue des études byzantines, vol. 50, 1992. p. 113–135.

[5] ibid. p. 119-121.

[6] DIAMOND, J. The Knights of Malta 1530 – 1798. Disponível em: < https://www.jimdiamondmd.com/malta_history.html>. Acesso em 5 de novembro de 2020.

[7] NOBLE SLAVERS: A closer look at slavery and the Knights of Malta within the Mediterranean of the 16th and 17th century. Blue Networks. Disponível em: < https://networkedmediterranean.weebly.com/noble-slavers-the-knights-of-malta-and-slavery-in-the-1617th-century.html?fbclid=IwAR0IukwdSQ3v5dwj20QvER9pjJWynRt9pXuoZY3sl4lNOzrBI9aJKGc55H4>. Acesso em 5 de novembro de 2020.

[8] ibid.

[9] MOUREAU, François. Captifs en Méditerranée (XVI-XVIIIe siècles): histoires, récits et legendes. Paris: Presses Paris Sorbonne, 2008. p. 141.

[10] DALLI, Charles. Malta, The Medieval Millennium. Malta’s Living Heritage. Malta: Midsea Books Ltd, 2006. p. 320

[11] AQUILINA, Carmelo. Malta’s slave trading past. Times of Malta, junho de 2007. Disponível em: <https://timesofmalta.com/articles/view/maltas-slave-trading-past.15273?fbclid=IwAR18zCzMe2oJlqHJ72iWd9IcV2KZaDj4XxztlSEV-Pv7MUSMWSFwNgGuGig>. Acesso em 5 de novembro de 2020.

[12] NOBLE SLAVERS. Ibid.

[13] ibid.

[14] VANN, Theresa. Hospitaller and Piracy on Rhodes, 14th-16th centuries. Seraub im Mittelmeerraum, p. 251.

[15] NICOLLE, David. Knight of Outremer 1187 – 1344 AD. Sussex: Osprey Publishing, MAA 018, p. 58.

[16] KONIECZNY, Peter. How the Hospitallers used slaves. Karwansaray Publishers, 2017. Disponível em: <https://www.karwansaraypublishers.com/mwblog/hospitallers-used-slaves/>. Acesso em 6 de novembro de 2020.

[17] BROGINI, Anne (2002). L’esclavage au quotidien à Malte au XVI. Cahiers de la Méditerranée , 65. p. 137–158.

[18] AQUILINA. Ibid.

[19] KONIECZNY. Ibid.

[20] ibid.

[21] BOTTE, Roger. STELLA, Alessandro. Couleurs de l’esclavage sur les deux rives de la Méditerranée (Moyen Âge-XXe siècle). Karthala Editions, 2012. p. 203.

[22] LÁZÁR, György. The story of Debrecen galley-slaves. Hungarian Free Press, setembro de 2018. Disponível em: <https://hungarianfreepress.com/2018/09/18/the-story-of-the-debrecen-galley-slaves/>. Acesso em 5 de novembro de 2020.

[23] CAPTIVE FAITH. John Knox (1510–1572) Pulls an Oar as a Galley Slave. Disponível em: <https://www.captivefaith.org/reformation/knox/>. Acesso em 6 de novembro de 2020.

[24] MOUREAU. ibid.

[25] CASSAR, Paul. A medical service for slaves in Malta during the rule of the Order of St. John of Jerusalem. Med Hist. 12 (3): 270–277

[26] FRELLER, Thomas; CILIA, Daniel (2010). Malta, the Order of St John. Midsea Books. p. 172.

[27] FONTENAY, Michel. Pour une géographie de l’esclavage méditerranéen aux temps modernes. Cahiers de la Méditerranée, 2002. 65 (65): 17–52

[28] NOBLE SLAVERS. Ibid.

[29] FONTENAY, Michel. The slave market in Malta at the time of the Knights of Saint John of Jerusalem (1530-1798). Quaderni storici 36(2):391-413.

[30] CARABOTT, Sarah. New Research shed light on punishment by hanging in Malta. Times of Malta, janeiro de 2017. Disponível em: < https://timesofmalta.com/articles/view/new-research-sheds-light-on-punishment-by-hanging-in-malta.638059?fbclid=IwAR2KO9UCXh6je2KyY4qapbr8ctUScfLOJixfgzeBqCYsBJrPHjmWd1OGK50>. Acesso em 6 de novembro de 2020.

[31] ibid. [32] LAWRENCE, A. B. The Jewish Slave Community of Malta. Disponível em: < http://www.angelfire.com/al/AttardBezzinaLawrenc/Slaves/Slave.html?fbclid=IwAR2TDMYLOK6gk3yiMl_H_waG1yU2RtF09BX4cKlVH2TvtLK6kNeDENkYmj4 >. Acesso em 6 de novembro de 2020