As artes marciais chinesas conhecidas como Qigong e, mais popularmente no Ocidente, Kung Fu, estão profundamente interligadas à história da China de diversas formas: com suas origens traçadas a tão longe quanto em 2700 Antes da Era Cristã, são e representam mais do que meramente formas de combate que poderiam ser utilizadas para a guerra, as artes marciais do Kung Fu tinha sua principal funcionalidade em dois objetivos: o aprimoramento do ego e a justiça social, isto é, o altruísmo. Trocando em miúdos, o Kung Fu era uma ferramenta de evolução pessoal nas diferentes esferas abrangidas pelas doutrinas que o influenciaram: o físico, o mental e o espiritual; além disso, é claro, ele deveria ser usado sempre para proteger os fracos, os pobres e desfavorecidos da opressão da sociedade feudal injusta.

Como podemos, então, deduzir, das o Kung Fu sempre teve, também, uma grande carga religiosa, na realidade, pode-se dizer que sua carga religiosa é a mais pesada de todas elas, tendo sido influenciado, inicialmente, por três grandes religiões chinesas: O Daoísmo, que, evoluindo da Religião Popular Chinesa para tornar-se uma religião distinta e refinada, com seu próprio sistema, preconizou a autotransformação do ser humano através da sua convergência alquímica com o Dao, isto é, o Absoluto... desse modo, podemos dizer que sua influência foi mais esotérica e teológica; o Confucionismo, por sua vez, teve principalmente influência na disciplina do Kung Fu, com seus mandamentos de obediência à hierarquia sociofamiliar e ao Estado, sem nunca deixar de zelar pela ordem e pela justiça social... desse modo, podemos dizer que sua influência se deu nas maneiras e atitudes sociais da arte marcial; quanto ao Budismo, este lhe acrescentou nos últimos dois quadros e, algo a amais: a influência budista foi tanto teológica quanto, também, social, e viu um sincretismo grande entre as (Pura) e a prática de Artes Marciais enquanto uma forma de meditação “nacional”, semelhante, contudo, aos diversos exercícios físicos que os yogis da Índia – de onde o Budismo se originou intelectualmente – realizavam.

Houve, todavia, uma quarta influência que, assim como o Budismo, muito sincretizou-se com o Kung Fu, criando sua própria versão deste. Estamos, sim, falando do Islã, que já estava presente nas terras da China desde tempos antiquíssimos, dos primórdios do Islã, com as primeiras presenças lá sendo documentados logo no Califado Rashidun. A presença muçulmana na China, como o é com várias religiões, é multiétnica: além de turcos e uigures, há a comunidade etnicamente chinesa (Han) que é adepta do Islam há mais de 1 milênio, os Hui (também chamados de Hui Hui). Os Hui, apesar de adotarem o Islã, não se “arabizaram” em virtude disso, exceto em seus nomes (que, depois de alguns séculos, foram sinificados novamente, com nomes como “Muhammad” tornando-se apenas “Ma”, e “Hassan”, “Há”, etc.). Eles continuaram tendo costumes chineses (exceto aqueles que, claro, iam contra a norma do Islã), vestindo-se como chineses, falando como chineses e construindo suas mesquitas – que não eram chamadas de mesquitas, mas sim de Templos, “Templos da Pureza e Verdade” (Qi Zhen Shi) – ao estilo chinês, de modo que apenas adentrando numa Qi Zhen Shi poderia notar alguém a diferença destes para com os templos daoístas, confucionistas e budistas.

Com o tempo, os muçulmanos foram ganhando fama e fortuna, além de serem sempre impelidos por sua religião e por seus contatos com o efervescente e intelectual Mundo árabe, a serem estudiosos e devotados. Desse modo, durante o governo do imperador mongol Kublai Khan, da Dinastia do “Grande Yuan”, os muçulmanos chegaram a uma de suas melhores épocas – senão a melhor –, ao lado das Dinastias Ming e Qing. No Grande Yuan, os muçulmanos eram coletivamente chamados (independentemente de sua etnia, fosse Hui, Turco ou Uigur) de "Dash'ma", que significa "aqueles bem-instruídos", evidenciando o destaque dos muçulmanos enquanto uma minoria não apenas bem-instruída, mas bem influente e e bem-capacitada para assumir cargos públicos e militares de alta confiança. Tal relação de confiança do establishment imperial continuou próspera quando Zhu Yuangzhang destronou os mongóis de Yuan e fundou a Dinastia Ming – a época de maior assimilação cultural para os Hui –. É dito por alguns estudiosos, inclusive, que Zhu e seu primo, Koh Shiao-Tze, eram ambos muçulmanos. A Imperatriz de Zhu, cujo nome era o suspeitíssimo Ma, era da família Ma de Chee Men, na província de Anhui, onde o clã Ma é bem conhecido por ser uma tradicional e poderosa família muçulmana. Isso parece ser amparado pelo fato de que, logo após a ascensão de Zhu e dos Ming, foi construída em Nanquim uma mesquita chamada Chin Juiyeh, (“Iluminação Pura”) ao qual dedicou um poema. Ao mesmo tempo, os muçulmanos foram empregados em vários campos do governo. Um exemplo é Chen You, um comandante militar muçulmano Hui e especialista em artes marciais que em 1447 financiou a restauração da Mesquita Dong Si de Pequim, também conhecida como “Faming Si” (“Templo da Propagação do Brilho”). Foi também um período em que houve a maior assimilação de Huis à cultura mainstream Han, culminando no fato de, também, ser a época em que os muçulmanos desenvolveram e praticaram as artes marciais em larga escala.

Nesse meio de assimilação, adoção oficial da língua chinesa, isto é, contexto de sinificação, os Hui tiveram uma sacada genial: para garantir que a língua árabe, que era inicialmente usada de forma ampla n comunidade Hui, nunca fosse esquecida, fez-se surgir de dentro do Wu-Shu (um dos nomes para o Kung Fu) a arte marcial do Tan Tui. Baseando-se no abjad, o alfabeto árabe, o Tan-Tui tinha um conjunto de práticas específicas para cada harf (letra) do abjad, cujo total de letras-consoantes eram 28, sendo criada e difundida especialmente no Xinjiang pelo mestre de Wushu Cha-Mi-Er (o nome árabe “Jamil” sinificado).

Como acima falamos sobre as influências das religiões chinesas sobre o Kung-Fu, agora vamos dar uma breve olhada em como o Islã casou-se tão bem com uma arte marcial com tantas influências “pagãs”. A resposta está no elemento mais universal, totalizador e conciliador que existe dentro do Islã: o Sufismo. Foi graças ao Sufismo – bem presente entre os Huis –, que os grandes Sheiks das tariqats (círculos e ordens sufis), puderam achar um terreno em comum entre os ensinamentos tradicionais do Kung-Fu e os do Islã Sufi.

Abu Hurayra (r.a) relatou que o Mensageiro de Allah (sas), disse: “O homem forte não é aquele que joga as pessoas na luta. O homem forte é aquele que se controla quando está com raiva.” [Muslim]

A partir deste único hádice, podemos derivar toda uma série de pontos em comum entre as religiões chinesas e o Islã: o Islã, mais especificamente através principalmente do Sufismo, busca, também, não apenas o aprimoramento do homem e a efetivação da justiça social, mas também busca o treinamento de suas capacidades psicofísicas. Isso envolvia um outro ponto em comum: o treinamento da energia e do espírito, chamado “qi” e “shen” em chinês, mas “nafas” e “roh” (respectivamente “ego” e “espírito”) em termos islâmicos. Isso pode ser visto, por exemplo, em técnicas sufis que existem nas tariqats chineses que dão uma grande ênfase ao zikr feito através da manutenção de uma frequência respiratória específica – prática comum, também, aos budistas, que pode ter tomada emprestada deles. Além, é claro, do Islã sempre ter preconizado os exercícios físicos e a postura robusta e guerreira, ao lado da postura intelectual: o Sheik Ibn Qayyim al-Jawziyya, aluno de Ibn Taimiyyah, em seu livro de Zad-al-Ma'ad,, destacou a importância do exercício e seu efeito no corpo, como ele fortalece, aumenta sua imunidade e o protege de doenças, além de falar sobre os exercícios da mente e do espírito; todas essas práticas foram congregadas no Wu-Shu Hui.

Desse modo, houve, então, uma mistura entre os saberes islamo-sufis e aqueles que permeavam o mundo das artes marciais. Foi assim que o Kung-Fuu foi abraçado pelos Hui e tornou-se parte integrante do seu currículo escolar das madraças, tornando-se, juntamente, parte de sua vida social e religiosa, especialmente durante a as celebrações dos principais eventos religiosos e festivos do Islã, o Eid al-Fitr do Ramadã (a festa do desjejum), o Eid ul-Adha ( a Festa do Sacrifício) e Mawlid an-Nabawi (o dia do nascimento do Profeta sas). As comunidades Hui se reuném nos pátios da mesquita para celebrações e entretinham-se com demonstrações de Wu-Shu depois que as orações rituais foram oferecidas. Além disso, proeminentes sheiks sufis dentre os Hui frequentemente também disputavam (e venciam) monges budistas em várias competições, determinando através destes torneios qual poder espiritual seria o mais superior.

Ao longo do tempo, cada vez foi-se popularizando mais o Wu-Shu entre os Hui e, durante a Dinastia Qing – a última da China –, sucessora dos Ming, mais escolar foram fundadas e os Hui da província de Gansu, praticantes exímios de Wu-Shu, ficaram famosos por sua bravura e resistência durante o Levante dos Boxers em 1899 – 1901, quando lutaram – e derrotaram – muitos exércitos estrangeiros superiormente armados. Dentre os combatentes anti-estrangeiros ao lado dos boxers estavam muitos praticantes de artes marciais e membros de sociedades secretas que as praticavam (os Boxers, mesmo, eram uma), dentre os quais se destaca um dos maiores e mais recentes mestres do Kung-Fu/Wu-Shu Hui, Wang Zi-Ping (1881-1973), o “Leão do Kung-Fu Chinês”. Mestre Wang Zi-Ping, reconhecido como mestre de Wu-Shu, era também um homem culto em relação à Religião. Ele era conhecido por levantar pedras extremamente pesadas enquanto recitava o Alcorão, num verdadeiro powerlifting espiritual. Uma história notável fala de sua oposição às forças alemãs que tentaram obter as portas da mesquita de Qinzhou: Mestre Wang não era de deixar uma parte inestimável da identidade muçulmana ser tirada, e assim desafiou os soldados para uma competição de levantamento de peso; acabou vencendo com folga aos soldados alemães. Mestre de várias outras disciplinas, Wang Zi Ping foi uma inspiração para pessoas, muçulmanas e não-muçulmanas. Seu domínio de uma variedade de artes marciais lhe permitiu ganhar a vitória sobre vários oponentes estrangeiros, levando-o a obter um grande número de alunos, espalhando assim também o Islã entre o povo chinês.

Até os dias de hoje os muçulmanos Hui mantêm suas práticas marciais como parte militante e integral de sua identidade eminentemente sino-islâmica, com o Wu-Shu continuando a ser parte do currículo das madraças e sendo estendido para as próprias escolas religiosas para menores. Tão viva quanto esta tradição está o sufismo dos Hui, que até hoje permanece com suas práticas e zikers respiratórios distintos tanto quanto permanecem com suas práticas marciais que visam direcionar a energia potencialmente maléfica do nafs para um objetivo bom. A história do “Kung-Fu islâmico” não nos fornece apenas o vislumbre de uma história única de uma comunidade muçulmana ímpar, mas também uma história única de não apenas coexistência, mas valorização, seguindo o conselho do Amado Profeta Muhammad (sas), como narrado por Anas ibn Malik: “Busque o conhecimento, até mesmo na China” [Sunan ibn Majah].

Bibliografia:

  • Wu Shu among Chinese Muslims: Grandmaster Ma Xianda.